Por Vladimir Safatle.*
2011
será um ano lembrado, entre outras coisas, como aquele no qual o Brasil
se viu assombrado por seu passado. Durante décadas, o País tudo fez
para nada fazer no que se refere ao acerto de contas com os crimes
contra a humanidade perpetrados pela ditadura. Isso o transformou em um
pária do direito internacional, objeto de processos em cortes penais no
exterior. Contrariamente a países como Argentina, Uruguai e Chile, o
Brasil conseguiu a façanha de não julgar torturador algum, de continuar a
ter desaparecidos políticos e de proteger aqueles que se serviram do
aparato de Estado para sequestrar, estuprar, ocultar cadáveres e
assassinar.
Nesse
sentido, não é estranho que convivamos até hoje com um aparato policial
que tortura mais do que se torturava na própria época da ditadura.
Aparato completamente minado por milícias, grupos de extorsão e
extermínio, assim como pela violência gratuita contra setores
desfavorecidos da população. A brutalidade securitária continua a nos
assombrar. Este é apenas um dos preços pagos por uma sociedade incapaz
de dissociar-se dos crimes de seu passado recente.
Outro preço é
o tema que mais assombra certos setores da classe média brasileira, a
saber, a corrupção. Esquece-se muito facilmente como a ditadura foi um
dos períodos de maior corrupção do Brasil. Basta lembrar-se de casos
como Capemi, Coroa-Brastel, Lutfalla, Baum-garten, Tucuruí, Banco
Econômico, Transamazônica, Ponte Rio-Niterói, entre tantos outros. Eles
demonstram a consolidação de um modus operandi na relação entre
Estado e empresariado nacional que herdamos da ditadura. Talvez não
seja por acaso que boa parte dos casos de corrupção que assolam o País
tenha participação de empresas que praticam negócios escusos desde a
ditadura. Empresas que tiveram participação ativa, por exemplo, no
financiamento da Operação Bandeirantes.
Corrupção e
violência policial são apenas dois aspectos do que restou da ditadura.
Poderíamos lembrar ainda do caráter imperfeito da democracia brasileira.
Temos leis herdadas de períodos totalitários que se esconderam em nosso
ordenamento jurídico. Ou seja, esperamos por uma reforma jurídica que
racionalize nosso direito a partir de princípios gerais de liberdade
social. Seria bom lembrar como temos uma lei constitucional que legaliza
golpes militares. Basta lermos com calma o Artigo 142, no qual as
Forças Armadas são descritas como “garantidoras dos poderes
constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da
ordem”. Ou seja, basta, digamos, o presidente do Senado pedir a
intervenção militar em garantia da lei (mas qual? sob qual
interpretação?) e da ordem (social? moral? jurídica?) para que um golpe
militar esteja legalizado constitucionalmente.
Diante desse
cenário de desagregação normativa da vida social por causa da
incapacidade da sociedade brasileira de elaborar seu passado, poderia
esperar-se que a instalação de uma Comissão da Verdade servisse para
iniciar um real processo de reconciliação nacional. Temos, porém,
sólidas razões para -duvidarmos disso.
Um dos
pontos mais aberrantes da comissão é a indicação de que seus integrantes
devam ser pessoas “isentas”. Uma piada de mau gosto. Há de se perguntar
quem seria suficientemente amoral para ser isento diante de crimes
contra a humanidade e atos bárbaros de violência estatal contra setores
descontentes da população. Quem pode ser isento diante da informação de
que integrantes do Exército, no combate à Guerrilha do Araguaia, jogavam
camponeses de helicópteros e estupravam mulheres da região? Há algo de
profundamente intolerável em pedidos de “isenção” nesse contexto.
Um dos
exemplos pedagógicos de tal isenção pode ser encontrado no próprio dia
de anúncio da criação da Comissão da Verdade. Diante da pressão dos
militares, Vera Paiva, filha do deputado desaparecido Rubem Paiva, não
pôde ler seu discurso, deixando os parentes de desaparecidos sem voz.
Não poderia haver gesto mais simbólico e prenhe de significado. Não
haverá voz para enunciar demandas de Justiça que não são apenas de
familiares, mas de toda a sociedade brasileira.
Em crimes
como os cometidos pela ditadura, não estamos a lidar com o sofrimento
individual. Este é um erro cometido inclusive por setores de esquerda
que querem “resolver tudo isso o mais rápido possível”. Eles compraram a
ideia de que se trata apenas de encontrar reparação adequada para o
sofrimento individual, seja por meio de compensações financeiras, seja
por meio de anulação de atos que portaram prejuízo a um grupo reduzido
de pessoas. Estamos, no entanto, lidando neste caso com um sofrimento
social. Ou seja, toda a sociedade sofreu e ainda sofre por meio do
“corpo torturável” desses indivíduos. Ela sabe que a violência estatal
ainda paira como uma espada de Dâmocles por sobre nossas cabeças. Ela
pode explodir de maneira a mais irracional, como um conteúdo recalcado
que retorna lá de onde menos esperamos.
Por outro
lado, é claro que tais demandas de “isenção” escondem o pior dos
raciocínios, a saber, a defesa de que a violência de um Estado ilegal
contra a população equivale à violência de setores da população contra o
aparato repressivo do Estado. “Temos de julgar também os terroristas”, é
o que dizem.
Aqui talvez
seja o caso de se perguntar: Para que serve a verdade? Alguns acreditam
que a verdade serve principalmente para reconciliar. Ou seja, sua
enunciação forneceria o quadro de um reconhecimento dos danos
ocasionados no passado. Tal reconhecimento, por mais simbólico que seja,
teria a força de produzir conciliações e versões unificadas da história
nacional.
Não creio
que isso possa ocorrer. Sempre teremos leituras divergentes e
irreconciliáveis do que foi a ditadura. Sempre haverá os que dirão que
os militares nos salvaram da transformação do Brasil em uma ditadura
comunista. Por isso, talvez seja o caso de dizer que a enunciação da
verdade não serve para conciliar. Ela serve para romper. Ela rompe com o
medonho exercício de desresponsabilização que foi colocado em marcha no
Brasil. Rompe com a tentativa de colocar no mesmo patamar quem usurpa o
poder e cria um Estado de medo e aqueles que se voltam contra tal
situação. Desde o Evangelho sabemos isso: a verdade não tem o poder de
unir. Ela tem a força de cortar.
É importante
dizer isso porque corremos o risco de ver a Comissão da Verdade se
transformar em uma macabra validação da famosa “teoria dos dois
demônios”. Certamente haverá a tendência em colocar em circulação a
necessidade de investigar os “crimes feitos pelos terroristas de
esquerda”. Por isso creio ser mais que necessário perder o medo de dizer
em alto e bom som: toda ação contra um governo ilegal é uma ação legal.
Um Estado ilegal não pode julgar ações contra si por ser ele próprio
algo mais próximo de uma associação criminosa. Esta era a situação
brasileira.
Pois podemos
dizer que dois princípios maiores fundam a experiência de modernização
política que caracteriza a tradição da qual fazemos parte. O primeiro
desses princípios afirma que um governo só é legítimo quando se funda
sobre a vontade soberana de um povo- -livre. O segundo princípio afirma o
direito à resistência. Mesmo a tradição política liberal admite, ao
menos desde John Locke, o direito que todo cidadão tem de assassinar o
tirano, de lutar de todas as formas contra aquele que usurpa o poder e
impõe um Estado de terror, de censura, de suspensão das garantias de
integridade social. Nessas situações, a democracia reconhece o direito à
violência.
Costuma-se
dizer que o direito à resistência não pode ser aplicado ao caso
brasileiro já que a repressão caiu exclusivamente sobre os ombros de
integrantes da luta armada que procuravam criar um governo comunista e
totalitário no Brasil. Mas a afirmação é falsa. A repressão agiu contra
toda forma de resistência, não só aquela da luta armada. O deputado
Rubem Paiva, assim como vários sindicalistas e estudantes não faziam
parte da luta armada e foram brutalmente mortos. Diz-se que estávamos em
uma guerra e “efeitos colaterais” são produzidos. Mas, mesmo em
situações de guerra, abusos são punidos.
Por outro
lado, contrariamente ao que ocorreu na Argentina, os grupos de guerrilha
apareceram no Brasil a partir do golpe militar, ou seja, se não
houvesse ditadura não haveria grupos de guerrilha, a não ser focos
isolados e completamente irrelevantes. É bom lembrar que boa parte
daqueles que se engajaram na guerrilha tinha apenas uma vaga ideia do
que queria, mas tinha uma ideia muito clara do que não queria. Lembre-se
ainda que o direito à resistência não se anula pelo fato de defender
outro regime de governo. Não por outra razão, líderes comunistas ainda
são vistos como heróis da resistência na Europa.
Por essas
razões, a única reconciliação possível ocorrerá quando aplicarmos no
Brasil o que foi feito na África do Sul. O que queremos não é a cadeia
para generais octogenários. Queremos que os responsáveis pelos crimes da
ditadura peçam perdão, em sessão pública, diante dos familiares e
torturados. Se o perdão é o gesto que reconcilia e apaga as feridas do
passado, há de se lembrar que só pode haver perdão onde há
reconhecimento do crime. Que a Comissão da Verdade não sirva para, mais
uma vez, tentarem nos extorquir uma falsa reconciliação.
* Artigo publicado originalmente na revista CartaCapital.
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Livros de Vladimir Safatle
Cinismo e falência da crítica, de Vladimir Safatle * PDF (Livraria Cultura)
O que resta da ditadura: a exceção brasileira, organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle * PDF (Livraria Cultura | Gato Sabido)
Bem-vindo ao deserto do Real!, de Slavoj Žižek (posfácio de Vladimir Safatle) * ePub (Livraria Cultura | Gato Sabido)
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Vladimir Safatle é
professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP, bolsista
de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), professor visitante das Universidades de Paris VII e
Paris VIII, professor-bolsista no programa Erasmus Mundus. Escreveu A paixão do negativo: Lacan e a dialética (São Paulo, Edunesp, 2006), Lacan (São Paulo, Publifolha, 2007), Cinismo e falência da critica (São Paulo, Boitempo, 2008) e co-organizou com Edson Teles a coletânea de artigos O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010), entre outros.
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