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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

DE MAQUIAVEL PARA JOAQUIM BARBOSA


por LUIZ FLÁVIO GOMES

Eis o maior risco que corre Joaquim Barbosa na presidência do STF: o do "impeachment". E não é preciso fazer muita coisa não
A mídia, tanto nacional como internacional, soube reconhecer o significado ímpar da posse do Ministro Joaquim Barbosa na chefia do Poder Judiciário brasileiro. O Brasil vai se notabilizando por fatos que, aos olhos da burguesia e dos saudosos monarquistas, pareciam impossíveis: um metalúrgico virou Presidente da República, um menino negro e pobre se transformou em Presidente do STF etc. Que conselhos Maquiavel daria para Joaquim Barbosa, agora na chefia do Poder Judiciário?
Desde logo Maquiavel diria para ele que é melhor "ir atrás da verdade efetiva do que das aparências" (Capítulo XV, do livro O Príncipe). De outro lado, ele diria que o julgamento de todo príncipe (de todo homem público, de todo juiz) é feito de acordo com algumas qualidades que lhe valem ou censura ou louvor. "Alguns o chamarão de liberal, outros de mesquinho; pródigo ou ganancioso; cruel ou piedoso; desleal ou fiel; efeminado ou pusilânime ou feroz e destemido; modesto ou soberbo; lascivo ou casto; íntegro ou astuto; inflexível ou brando; austero ou leviano; religioso ou ímpio". Não tema incorrer na infâmia dos defeitos, se tal for indispensável para salvar o estado (o poder). Mas, muito cuidado!
Todo poder, sobretudo o institucional, gera inveja e ódio. Quem exerce o poder conquista muitas amizades (a posse festiva de Joaquim Barbosa deixou isso muito evidente), mas também muitas inimizades. Há três espécies de inimigos (sobretudo dos juízes): os pessoais, os funcionais e os institucionais.
Inimigos pessoais são os decorrentes do próprio relacionamento pessoal de cada juiz. Cada um tem sua maneira de ser. Há aqueles que se identificam com o tipo Carlos Ayres Britto (calmo, tranquilo, que levam o barco devagar) e há também os de pavio curto, conflitivos, aguerridos. Joaquim Barbosa, como todos sabemos, se enquadra nesse segundo grupo. Em virtude disso já angariou muitos inimigos ou antipatias dentro do próprio STF (Levandowski, Marco Aurélio, Gilmar Mendes...).
Inimigos funcionais são todos os que ficam contrariados com as decisões e posicionamentos do juiz. A atual cúpula gerencial do PT, por exemplo, não está nada satisfeita com a autonomia e independência demonstradas por  ele ao longo do processo mensalão. Na primeira oportunidade, vem a represália.
A terceira categoria de inimigos (muitos gratuitos) são os institucionais. Todos nós que já integramos alguma instituição (no meu caso: Ministério Público, Magistratura e Advocacia) sabemos bem disso. Quem se destaca dentro de qualquer instituição acaba constituindo uma ofensa para muitos colegas. O brilho de um ofusca o outro, ofende o invejoso. Não é que todos os demais colegas se comportem assim, não, é apenas uma parcela, mas bastante considerável.
Maquiavel aconselha que o príncipe deve abster-se de praticar tudo aquilo que o torne detestado ou desprezível (Capítulo XIX). Não invadir os bens alheios nem se apoderar das mulheres alheias são vedações elementares (Capítulo XIX). Mas há uma coisa dentro das instituições que Joaquim Barbosa vai vivenciar na própria carne: a fama. Muita gente não suporta a fama do outro, o seu destaque, o seu brilho. Cada louvação, sobretudo midiática, afunda mais ainda o ego do invejoso.
Quem vivenciou isso recentemente foi o juiz espanhol Baltazar Garçon. Por uma interceptação telefônica (de duvidosa ilegalidade) ele foi punido a 11 anos de afastamento do Judiciário. A instituição tinha ódio do seu destaque nacional e internacional, praticamente diário. Na primeira oportunidade, eliminaram-no (fulminando sua carreira).
Esse é o maior risco que corre Joaquim Barbosa: o risco do "impeachment". E não é preciso fazer muita coisa não. Quanto maior a quantidade de inimigos conquistados e quanto mais diversificados os interesses contrariados (eliminação da Justiça Militar Estadual etc.), maior o risco. Por falar em interesses contrariados, não é difícil prever uma rota de colisão entre o que pensa Joaquim Barbosa (com suas teses includentes, defesa das minorias, ideologia político-social) e a mídia conservadora (Veja, Globo, Estadão etc.). Que a lua de mel de Joaquim Barbosa com essa mídia neoliberal dure bastante e que seu mandato seja exemplar e histórico. Mas, se alguma tempestade ocorrer, não foi por falta de previsão.
Fonte: http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/86454/De-Maquiavel-para-Joaquim-Barbosa.htm

A Realidade da conspiração


A mídia do capital, existente hoje e no passado, é um instrumento de manipulação da sociedade utilizado pela direita.

Na maioria das vezes, a versão dominante na sociedade sobre qualquer tema é estabelecida pela mídia do capital, composta pelos grandes jornais, revistas, rádios e televisões, com raras exceções. São os manipuladores de informações, que vivem nos bombardeando com armas linguísticas, quando não são tendenciosos ou mentem. O objetivo principal da mídia do capital não é ter um cidadão bem informado sobre as múltiplas visões de um tema, mas um cidadão alienado, crente que a única visão apresentada sobre o tema, coincidente com a visão de interesse do capital, é a correta. Proponho-me a mostrar, a seguir, versões pouco divulgadas de alguns fatos históricos e algumas manipulações da população pela mídia, colhidos a esmo na memória.

A quase totalidade dos países da América Latina vinha sofrendo, desde as suas independências, com golpes militares, seguidos por ditaduras. Corroborando a tradição, nos anos 60 e 70 do século passado, ocorreu uma onda golpista no continente, que espalhou ditaduras de duração variável, dependendo do país. Os golpes tinham a aprovação do governo dos Estados Unidos, quando não eram planejados por ele, em um mundo dividido basicamente em dois blocos. A elite econômica de cada um desses países SE instalou, com o apoio do capital internacional, nos governos de tais países militares com a incumbência de permitir a usurpação do esforço do trabalho do povo e dos recursos naturais do país. Contudo, nada disso teria ocorrido se a mídia do capital não tivesse colaborado ativamente.

Como outro exemplo de participação nefasta da mídia do capital na dominação do povo e da nação, posso mencionar o caso do suposto “mar de lama do Catete” de 1954, imputado a Vargas. E um exemplo menos distante é o famoso caso da Proconsult sobre a eleição do Rio de Janeiro de 1982, onde a mídia teria um papel relevante de manipulação. Pouco comentado, mas bem característico do que esta mídia pode fazer, em 1984 um grande canal de televisão noticiou o comício de no mínimo 300 mil pessoas do movimento “Diretas Já”, em São Paulo, como sendo parte das comemorações dos 430 anos desta cidade, aproveitando a coincidência do dia do comício com o aniversário da cidade.

Continuando na lista de fraudes na comunicação, que infelizmente nunca resultaram em condenações, em 1989, poucos dias antes da eleição presidencial, a superexposição das imagens dos bandidos que sequestraram o empresário Abílio Diniz com camisetas do PT deve ter retirado votos deste partido. Também em 1989, ocorre o mais clássico caso de manipulação de informações, já muito comentado, que consiste da edição do debate entre Collor e Lula. Em 2006, na véspera da eleição para o governo do estado do Paraná, um canal de TV aberta mostrou uma fila de caminhões na estrada indo para Paranaguá, como sendo um engarrafamento que ocorria devido à má administração do porto. As imagens não eram daquele momento, mas de época passada.

Nos anos 90, após as ditaduras já terem sido varridas, anos antes, da América Latina, chegou a avalanche neoliberal por imposição de forças econômicas e políticas estrangeiras, com a complacente aceitação do empresariado desta região. Tudo ocorreu com o firme apoio e a constância tradicional da mídia do capital. Foi uma época de triste recordação, pois nunca tantos foram enganados, chegando a ponto de tomarem decisões que prejudicavam a eles próprios. Todas as sociedades dos países da região sofreram, pois as riquezas foram dilapidadas, as empresas fechadas ou vendidas para estrangeiros, os mercados usurpados, os empregos exterminados e a miséria aumentada, além De os pobres fenecerem e as pátrias esmaecerem.

Nos anos 2000, mais uma vez, acontece na América Latina uma nova onda política, desta vez com impacto social positivo. Nesta década, os povos da maioria dos países da região tomam posse da condução dos seus destinos, rejeitando os candidatos da direita, para desespero desta, da mídia do capital e de muitos profissionais de marketing político. O governo do presidente Lula e outros desta parte do continente conseguiram inclusões sociais, que eram consideradas como impossíveis de serem alcançadas, a ponto de o índice de Gini da região, que havia crescido de 0,50 em 1980 para quase 0,54 em 2000, retornar para o nível de 0,50 em 2010 (Fonte: The Economist e Carta Capital).

Tudo leva a crer que a população desta região passou a identificar melhor os candidatos, não significando que nunca mais votará em conservadores. Mas não deverá mais votar por questões supérfluas, e nunca mais candidatos maquiados a convencerão. Não é por outra razão que Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai (até bem pouco tempo), Bolívia, Equador, Venezuela, Peru e outros países têm governos bem mais próximos do povo do que tinham mais de uma década atrás. Restam, para os conservadores da América Latina, novas e criativas artimanhas, para as quais continuam contando com a inseparável aliada mídia do capital. Apesar dos eventuais erros do presidente Lugo do Paraguai, o golpe legislativo ocorrido lá é o caso de um novo tipo de artimanha usada pela direita para chegar ao poder. Pois, pelo voto popular, agora mais consciente, se tornou difícil.

Assim, é extremamente elucidativo analisar o caso do desvio de dinheiro público ocorrido no Brasil e que está em julgamento. Um bando de usurpadores, utilizando o esquema do senhor Marcos Valério, se locupletou. Para os que existem provas comprobatórias dos desvios, a condenação é o caminho inequívoco a seguir. Entretanto, neste momento, a direita vislumbrou uma forma de golpear o voto popular, pois esperar no mínimo uns dez anos para que os antigos 40 milhões de miseráveis famintos esqueçam quem foi eleito e não os esqueceu, irá demorar muito.

Para tanto, a direita arquitetou o estratagema, no qual a obsequiosa mídia do capital voltava a ter participação especial. Na sua nova tarefa, ela tinha que criar na grande massa, principalmente na classe média, o conceito de que acontecia algo inteiramente novo no país, ou seja, todos os integrantes de um mesmo partido tramaram suas permanências no poder pela corrupção. Recuso-me a lançar argumentos contra acusação tão desprovida de nexo. Tampouco irei me ater à falta de isonomia no tratamento de questões deste partido relativamente a outros em situação análoga. Nem sobre a coincidência do julgamento com a véspera das eleições municipais. Não quero me ater a essas questões, porque tudo isto é de uma imensa mesquinhez.

A pressão da mídia na classe média funcionou muito bem, uma vez que ela passou a acreditar que todos, criminosos comprovados e supostos criminosos, deveriam ser condenados. O instituto da “presunção da inocência” foi jogado prazerosamente no lixo, para angústia dos humanistas. Peço às forças maiores do universo que poupem os atuais verdugos de terem um filho no local errado e na hora errada. O ódio com que algumas pessoas se manifestavam com relação ao caso indicou para mim que elas estavam se vingando, não julgando de maneira isenta. 

 Obviamente, um ódio incentivado.

Tenho mais uma observação. No nosso país, felizmente, a homofobia diminuiu e a aceitação dos afrodescendentes melhorou. Contudo, a aceitação de pessoas de esquerda por algumas instituições de governo e pela elite econômica não aconteceu, nem um pouco. Isto explica por que pessoas de esquerda só têm suas opiniões divulgadas na mídia do capital em questões como direitos humanos, cultura, comissão da verdade etc. Pessoas de esquerda nunca são chamadas a opinar nesta mídia sobre política econômica, direito de greve, privatizações e concessões, política externa (questões de economia, soberania etc.), política industrial, apoio às empresas nacionais genuínas, política mineral, lei do petróleo, renovação das concessões de hidroelétricas e outras questões relacionadas ao capital.

A mídia do capital, existente hoje e no passado, é um instrumento de manipulação da sociedade utilizado pela direita. 

Os golpes militares, eleitorais, legislativos e de outros tipos requerem o preparo inicial da sociedade, feito por esta mídia. Pode-se até dizer que ela é a única responsável pela fase do pré-golpe, tendo participação também nas demais fases.

A “realidade da conspiração” consiste do capital internacional, uma parte da elite econômica brasileira e a mídia do capital tramarem diuturnamente formas de manterem o povo brasileiro desinformado, alienado e votando contra seus próprios interesses.


Paulo Metri é conselheiro da Federação Brasileira da Associação de Engenheiros e do Clube de Engenharia. Blog do autor: http://paulometri.blogspot.com.br/

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Férias de dois meses e debate improdutivo


Por  Claudio Weber Abramo, Diretor Executivo da Transparência Brasil:
Participei, na semana passada, de painel de debates durante congresso que a Associação dos Magistrados Brasileiros promoveu em Belém (PA).

Após frisar que o Judiciário brasileiro é unanimemente considerado abaixo da crítica na literatura comparada, sendo incapaz de entregar à população o serviço da justiça, passei a descrever por alto alguns dos números relativos ao tempo de espera para a resolução de processos no Supremo Tribunal Federal, coligidos no âmbito do projeto Meritíssimos (www.meritissimos.org.br), da Transparência Brasil.
Aludi a algumas causas para a lentidão do STF e do Judiciário em geral. Seria impossível não mencionar, entre tais causas, os privilégios da magistratura, entre eles a prerrogativa de gozar de férias de dois meses por ano.
Ao abordar a questão, disse que os magistrados se consideram merecedores de férias tão prolongadas porque, alegadamente, trabalhariam à noite e nos fins de semana. Disse que, sem dúvida, deve haver magistrados que fazem isso, mas que, de forma a considerar a circunstância como predominante na atividade, seria necessário que a alegação fosse acompanhada de números — os quais inexistem.
Ante a falta de medidas objetivas quanto à produtividade de magistrados, fiz a pergunta: “Por que alguém deveria acreditar no que os juízes afirmam?”
Foi o suficiente para transformar a ocasião num suceder-se de lamentações indignadas a respeito de quanto cada qual trabalha e as decorrentes consequências familiares, de saúde e assim por diante.
Houve quem exprimisse que, na verdade, juízes mereceriam férias de 90 dias. Não faltou quem tivesse atribuído a crítica aos privilégios da magistratura como “inimizade” em relação a juízes.
O ponto mais baixo foi atingido quando alguém declarou que números não exprimem a realidade da magistratura, afirmação recebida com aplausos particularmente entusiasmados da plateia.
Não é extraordinário que juízes procurem defender seus privilégios. Qualquer categoria defenderá ferrenhamente suas vantagens, por mais descabidas que sejam. O extraordinário, no caso, foi a total ausência de argumentos objetivos.
Ainda que não se possa considerar que o público presente à discussão tivesse sido representativo da magistratura brasileira, a completa falta de objetividade e a incapacidade de encarar a questão friamente dá pistas sobre o que se pode esperar de uma categoria que tem suas benesses contestadas.
Se a história encerra alguma moral, é que o problema dos privilégios da magistratura (como de qualquer categoria de funcionários públicos) jamais poderá ser solucionado levando-se em conta as opiniões dos beneficiários.
Afirmar-se que o encaminhamento do problema passaria, por motivos “democráticos”, por debates com juízes, é a melhor forma de garantir que o assunto permancerá estacionado.
O que deve governar a questão é a avaliação sobre se é de fato democrático permitir-se que uma categoria de agentes do Estado goze de privilégios que ninguém mais (exceto, naturalmente, os promotores públicos) goza.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

PORTA-VOZ DA DIREITA ASSUME DESEJO DE GOLPE

:

Uma das vozes da ultradireita no Brasil, brigadeiro Ivan Frota diz em entrevista concedida em Goiânia que “há uma forte vontade para tirar este governo sem-vergonha que está aí”. O presidente do Clube da Aeronáutica afirma que a Justiça no Brasil é comprada, que onda de violência em São Paulo é para desestabilizar o governo Alckmin e que Comissão da Verdade é "revanchismo inaceitável"

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Se o tribunal veste a camisa de um lado, quem julga os confrontos entre os lados?


Na posse do ministro Joaquim Barbosa na presidência do STF, houve mensagens nos discursos que soaram preocupantes.  O ministro Luiz Fux fez um discurso razoavelmente entusiasmado, defendendo o ativismo político no Tribunal, o que pode ser entendido como judicialização da política ou politização do Judiciário.
Nada contra juízes serem politizados e pró-ativos, mas como cidadãos – e cada cidadão é igual a um voto para eleger representantes na construção de pactos sociais traduzidos em leis. Quem quiser legislar, que se licencie da toga e se candidate ao parlamento, submetendo suas ideias e propostas ao voto popular.
Os tribunais de Justiça são uma conquista da civilização para resolver conflitos, seja na discórdia da compreensão das leis, seja no cumprimento delas. O juiz, para ter legitimidade como mediador entre partes, não pode ser ativista de um dos lados.
Para as pessoas ou grupos em conflito se submeterem conscientemente ao Judiciário, não apenas pela força coerciva, mas por compromisso com os pactos sociais firmados como cidadão, os juízes devem ser isentos, sem escolher previamente por uma das partes. Mesmo tendo convicções prévias no íntimo (o que é natural da condição humana), juízes devem colocar à prova estas convicções, deixando as partes de um processo tentarem convencê-lo de suas respectivas convicções, e decidir pelo que melhor encontra respaldo com os pactos sociais firmados em leis, sem deixar dúvidas.
Espero que seja apenas uma frase infeliz e enviesada, mas preocupa quando Fux disse que "a Corte está preparada para os julgamentos mais árduos e para eventuais confrontos de forças contrárias a suas decisões. Nós, juízes, não tememos nada nem a ninguém”, afirmou.
Como pode um juiz enaltecer um preparo para confrontos, se seu papel é resolver confrontos? Nos tribunais é natural que quem perca não fique feliz, mas a função de um julgamento é conciliar também o derrotado com a lei. Se a sentença é suficientemente justa e clara para demonstrar que um cidadão ou grupo está errado diante do próprio pacto social que ele participa para conviver em sociedade, todos saem com o sentimento de que a justiça foi feita.
É o que se chama julgamento técnico. Se a sentença resulta em confronto, como diz Fux, em algum ponto o ato de fazer Justiça falhou, ao não conseguir pacificar a questão julgada, ao não conseguir provar que a sentença está correta. Em geral acontece quando o julgamento é político, pendendo para um lado por preferência do juiz, e não por determinação da lei. Para quem tem vocação para confrontos, repito, o bom combate se faz é na política, no parlamento.
A ambição é natural em pessoas vocacionadas para o poder, e pode ser saudável se usada com sabedoria e respeito aos limites delegados pela sociedade. Mas quando um dos poderes busca conquistar espaço na área do outro, é o cidadão quem perde poder, pois seu voto vale menos na influência sobre os rumos da sociedade. Basta lembrar da história recente do Brasil quando o poder Executivo invadiu o espaço do Legislativo e do Judiciário, com os atos institucionais da ditadura.
Fonte: http://www.redebrasilatual.com.br/blog/helena/se-o-tribunal-vestir-a-camisa-de-um-lado-quem-julgara-os-confrontos-com-o-outro-lado

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Para onde vai esse asno?

Duas obras, duas épocas. Ao aproximar-se de A balsa da “Medusa”, de Théodore Géricault, o asno fotografado sobre um barco por Paola Pivi revela algumas características do mundo real: amorfo, fragmentado, resignado. Um mundo que numerosos artistas se contentam em refletir, sem instaurar uma distância crítica
por Ikonotesk Grupo
(O asno de Paola Pivi em exposição no Centro Pompidou, em Paris)

Para onde vai a economia num espaço de especulação financeira? Para onde vai a democracia em um Estado que abdica de seu poder de intervenção econômica? E para onde vai esse asno colocado em um barco à deriva no mar?
Mistério.
Pelo menos no que se refere ao asno, sabe-se que foi Paola Pivi, artista de renome internacional, que em 2003 o colocou em um barco, fotografou e o vem mostrando para nós há anos, sem que possamos saber onde ele está.
Mas por que se interessar por um asno errante, quando parece que a época oferece outros temas de preocupação? Talvez porque, ao examiná-lo cuidadosamente, nossa visão ganharia acuidade, inclusive em relação a outras áreas de interesse.
Para fazer isso, devemos colocar lado a lado a fotografia de Pivi e a representação de outra embarcação: A balsa da “Medusa” (1818-1819),do pintor Théodore Géricault.
É pouco provável que o asno suba em um barco e levante as amarras. Com toda certeza, Pivi fez que o colocassem no barco, afastou-o da beira da água e tirou fotos; fotos de verdade (não fotomontagens digitais). Por outro lado, A balsa da “Medusa”refere-se a um acontecimento real: o naufrágio da fragata Medusa na costa da atual Mauritânia, em julho de 1816. Ela retrata o momento em que um grupo de sobreviventes em uma pequena balsa percebe ao longe o brigueArgus. Para realizar essa obra, Géricault reuniu numerosos documentos, fez diversos desenhos e construiu um modelo em tamanho menor da balsa. O quadro pretende expor, por meio de uma reconstituição imaginária, um evento real. Ao contrário, a foto de Pivi é um registro visual fiel de uma realidade fictícia: ficar à deriva nas ondas não é a condição usual dos asnos. O asno flutuante é realista, mas enigmático. Afinal, o que pode significar essa construção de imagem?
Em Pivi, o horizonte é vazio. Em Géricault, percebemos um barco a distância. Os passageiros da balsa, apesar de seu sofrimento, são ativos, agitam-se, enviam sinais, olham ao longe. O asno é passivo; seu olhar, fleumático. Os náufragos, mesmo à deriva, buscam um caminho que poderia colocá-los ao abrigo do perigo; sua vela está içada. Ao contrário, o barco e o asno estão sem piloto, não têm direção nem destino, deslocam-se na água ao sabor das correntes, mas não vão a lugar algum. O conceito misterioso do asno em um barco mostra esse espírito nômade: ausência de direção e de destino, em um mundo sem projeto, sem propósito, o concreto do asno em um universo supostamente abstrato, desapego e indiferença, características talvez de uma sabedoria primordial. Mas esse nomadismo não se aplica à economia, à sociedade, aos sentimentos, ao emprego e aos bens?
Os camarões noruegueses são descascados no Marrocos e vendidos na Alemanha. A água mineral irlandesa é distribuída em Stuttgart, na Alemanha, e a água mineral italiana é enviada a Sydney, na Austrália. Os botões dos pijamas fabricados e vendidos na Suíça são costurados em Portugal. Sim, para onde vai esse asno e para onde vão nossos postos de trabalho? O asno compreendeu: em seu barco sem amarras, ele sabe que é ilusório pensar em controlar seu destino, e não há uma meta a atingir. A racionalidade é uma ilusão: flutuemos, flutuemos, acompanhemos a instabilidade, o futuro é incerto.
Mas o asno não acabou de entregar sua mensagem. A obra combina uma encenação (artefato) a uma representação (a fotografia) que se considera autêntica. É uma das características do pós-modernismo: ele se apresenta como uma reunião de pensamentos e de atividades despedaçadas, espontâneas, fragmentadas, para se camuflar, por trás de uma aparência afavelmente modesta, o caráter doutrinário de uma abordagem que ataca as “ideologias” como totalitárias.
Isso não teria relação com a doutrina liberal, que contesta dirigismo e centralismo em benefício da constelação fragmentada e dispersa das instituições financeiras privadas? O fragmentismo intervém na economia e no espaço social como um preceito primordial: tudo deve ser temporário e desagrupado. Viva o inclassificável, o movente, o que está fora do centro... Mais classes sociais, mais a multidão, as tribos, os ajuntamentos excêntricos. Uma parte da arte contemporânea amplia essa linha de pensamento instituída como princípio formal.
Assim, Claude Lévêque instalou dois grandes pneus de trator nos escritórios de um banco.1 Sua presença é suficiente: é inútil indagar sobre o porquê. As coisas enunciam sua verdade pela simples presença e somos confrontados com a evidência delas: não há nenhuma necessidade de teoria, de causalidade ou de generalização. Se nos situamos nesse plano, uma locomotiva, uma árvore, uma taça, mas também um conceito ou um desejo e, por que não, uma cotação da Bolsa, quando eles se manifestam para nós, exprimem igualmente por sua presença sua verdade, e é desnecessário se perguntar sobre sua pertinência: importa apenas sua imanência. Reencontramos esse princípio, próprio das instalações de Lévêque, “bolsões de sensações”,2 aplicado ao sistema das validações financeiras, especialmente em operações da Bolsa chamadas autorrealizadoras: mais as cotações de um título sobem, mais esse título é comprado; mais ele é comprado, mais as cotações sobem. Acredita-se e valida-se uma verdade nascida de nossas projeções e que não mantém nenhuma relação com o valor econômico real do objeto visado.
Naturalmente, o mercado de ações não esperou Lévêque para desenvolver suas possibilidades. Mas o dispositivo doutrinal da arte contemporânea conforta, valoriza, estetiza esse sistema de pensamento. A retórica lírica sobre a criatividade e a arte libertadora, ainda muito disseminada, faz sorrir. A arte pode contribuir para a emancipação da mesma forma como pode colaborar para a alienação. Uma obra não é apenas uma expressão desse ou daquele artista. Toda expressão artística se desenvolve em circunstâncias históricas, refere-se a um quadro conceitual, fornece descrições, antecipa afirmações e formula propostas. O quadro pós-moderno pode propor obras que expressem rigorosamente a visão de mundo dos artistas e seu alicerce teórico; mas essa visão de mundo está em ressonância com a ordem existente.

Ikonotesk Grupo
Coletivo de artistas plásticos


Ilustração: Herminie Philippe / AFP / Getty Images

1 Claude Lévêque, La rumeur des batailles [O rumor das batalhas], Lab-Labanque, Béthune, 2008.
2 Dossiê de imprensa do Frac-Haute Normandie a propósito de Down the street [Descendo a rua], de Claude Lévêque, 2008.

Fonte: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1306

domingo, 25 de novembro de 2012

Brasil - como criar as condições para a ‘Grande Transição’?






Cândido Grzybowski*
da Adital


Há alguns anos foi constituído um grupo de trabalho internacional –"The great transition initiative: visions and pathways for a hopeful future”– para pensar propostas e práticas de transição para uma civilização planetária enraizada na solidariedade, na sustentabilidade e no bem-estar humano. Tratava-se de definir como, em cada situação, desencadear processos, aqui e agora, que gestem a necessária transformação dos impasses a que nos levou o desenvolvimento capitalista industrial, produtivista e consumista, gerador de exclusões e desigualdades sociais eticamente inaceitáveis e, ao mesmo tempo, da destruição ambiental que ameaça todas as formas de vida e a integridade do planeta Terra. Como definir e criar as condições para isso no Brasil, hoje uma das festejadas potências emergentes?
Nunca é demais lembrar o quanto o Brasil é ainda um país profundamente injusto. Apesar de ser a sexta economia capitalista do mundo e dos enormes avanços recentes, induzidos por ativas políticas distributivistas dos governos do PT, temos mais de 16 milhões de pessoas vivendo como miseráveis, com menos de meio dólar per capita por dia, e outros mais de 30 milhões com no máximo 1 dólar por dia. São aproximadamente 20% da população total na pobreza e extrema pobreza, segundo critérios do Banco Mundial, sem contar que o critério de meio dólar ou 1 dólar por dia é simplesmente ridículo num país que pratica preços iguais aos dos países desenvolvidos.
Poderia enumerar várias gritantes desigualdades sociais em todos os campos, incluindo desigualdades de gênero e raciais. Mas talvez o maior contraste, revelador do tamanho das contradições, seja o dado revelado por O Globo, um jornal de perfil bem conservador, no dia 15 de outubro passado. Segundo o jornal, 4.640 milionários brasileiros (aqueles que têm ao menos US$ 30 milhões em conta bancária), têm riquezas que somam US$ 865 bilhões (em reais, R$ 1,764 trilhões). "É mais do que as reservas internacionais de todos os países da União Europeia juntos”, segundo o jornal. A renda per capita por dia de cada membro dessas riquíssimas famílias é de milhares de dólares! Esse é o Brasil, usando o critério tão ao gosto de um mundo dominado por mercados e dinheiro.
A questão da pobreza funciona como um divisor político no processo de democratização do Brasil e nas opções de desenvolvimento. O debate sobre o desenvolvimento no Brasil é dominado pela visão e pela proposta em relação ao quanto, como modelo e estratégia, ele é distributivista e se é capaz ou não de enfrentar a enorme pobreza. O debate da destruição ambiental, na arena pública, quando existe, tende a ser dominado pela questão da justiça social. O grande jogo político se faz em torno da justiça social, em que até amplos setores tradicionalmente predadores e conservadores se valem do argumento social para continuar o seu negócio.
Considero ainda embrionárias e até aqui com pouca capacidade de incidência política as demandas por aliar a dimensão da justiça social e a dimensão ambiental como faces da mesma questão. No Brasil, é ainda bem marginal o debate de alternativas ao desenvolvimento, de mudança de paradigma, de transformar processos. Fundamentalmente –e ainda mais nos governos sob hegemonia do PT, dos últimos 10 anos–, quer-se mais e mais desenvolvimento, do mesmo desenvolvimento produtivista e consumista, só que com inclusão social. Hoje estamos diante de um "novo desenvolvimentismo”, na verdade do velho modelo de desenvolvimento com raízes da Cepal combinado com políticas sociais mais ativas em termos distributivos… do crescimento. E tal crescimento, para praticar a inclusão social, precisa ser de 5 a 7% ao ano, como disse a nossa presidente Dilma no Fórum Social Temático, em Porto Alegre, em janeiro de 2012.
Esse é o ponto de partida, duro e difícil, de onde devemos partir para então pensar em mudar, definindo as propostas e analisando se e como é possível politicamente viabilizá-las. Devido à urgência que a mudança climática levanta, fixo meu olhar na questão energética, na questão do agronegócio e, para finalizar, no que é preciso criar em termos de imaginário mobilizador e de incidência no debate público para viabilizar um processo de transição para outro paradigma civilizatório.
A questão energética
O Brasil caminha a passos grandes, de verdadeira potência emergente, para soluções energéticas que vão torná-lo muito mais poluente do que é hoje. Na energia elétrica, devido às hidrelétricas, temos uma matriz de produção relativamente "limpa”, se não for contabilizado o passivo ambiental e social que as grandes barragens criaram ao serem implantadas e continuam criando hoje. Pensando o futuro e a demanda crescente por energia –pois, como nos dizem oficialmente, estamos longe do padrão de consumo de energia elétrica dos países desenvolvidos–, novas hidrelétricas precisam ser feitas. Hoje, o grande potencial de nova energia desse tipo se concentra nos grandes rios da Amazônia. Dá para imaginar o que significa construir de 40 a 60 hidrelétricas de médio e grande porte num território como a Amazônia? Quanta terra inundada, mata destruída e impacto no clima e na biodiversidade? Quantos territórios e povos indígenas devastados? Quantos ribeirinhos, posseiros e coletores de frutos da floresta perderão seu modo de subsistência?
O drama atual em torno de Belo Monte é revelador do que pode acontecer. Tenho dito, e repito aqui: com energia e mineração, com exploração da madeira e gado, depois soja, a Amazônia é o território brasileiro de espoliação e colonização. Colonização interna, do poder e da economia existente sobre o próprio povo brasileiro, de brasileiros sobre brasileiros, por setores sociais dominantes de outras áreas e grandes grupos empresariais, com olho no mercado mundial e, sobretudo, seu próprio bolso.
No debate político interno, se não for possível implementar o projeto de tornar a Amazônia um grande fornecedor de energia elétrica "sustentável”, o argumento bramido como ameaça é que vamos ser obrigados a construir mais e mais termoelétricas a carvão ou gás! Na prática, no entanto, o ritmo de construção de termoelétricas no país mostra que a estratégia prioritária dos promotores do desenvolvimento a pleno vapor é essa, independentemente de mais ou menos hidrelétricas.
Está claro que a opção do tal "novo desenvolvimentismo” é o binômio hidrelétricas e termoelétricas, como, aliás, está no Plano Decenal de Energia 2021. E, como fantasma, ronda a ameaça da energia nuclear. A moratória no nuclear, depois do grande desastre no Japão, é apenas temporária. O incrível é que, tendo o dobro de insolação da Alemanha, sejamos tão reticentes em utilizar essa dádiva e avançar estrategicamente na energia solar. A mesma atenção damos aos ventos que fazem tremular nossas palmeiras nos mais de 8 mil km de litoral; mas,... pouca energia elétrica geram.
No centro da questão energética, é preciso destacar o lugar estratégico das grandes construtoras. Fazem-se grandes barragens e usinas porque é um bom negócio para empreiteiras. Já existem estudos que mostram o potencial de pequenas hidrelétricas, voltadas às necessidades locais, sem grandes impactos ambientais e sociais para a sua implantação e posterior transmissão da energia gerada. Contabilizando tudo, as pequenas geradoras hidrelétricas em rede são muito menos invasivas e muito mais produtivas e democratizadoras da economia, alimentando a sustentabilidade nos territórios. Só que não é exatamente isso que se busca com o desenvolvimento que temos. O olhar sobre rios é sobre um recurso natural a explorar, e não aquela bacia integradora, bem comum compartido por quem aí vive. Nunca é demais lembrar que a opção por grandes barragens hidrelétricas no Brasil nunca foi por ser energia renovável, mas porque era frente de expansão para grandes negócios, induzida pelo Estado desenvolvimentista em aliança com grupos empresariais.
Mas o ‘calcanhar de Aquiles’ energético do Brasil emergente são as jazidas de petróleo do pré-sal. Ao mesmo tempo que no mundo cresce o debate sobre como sair da dependência da matriz energética fóssil – principal fonte de emissão de gases que ameaçam o clima –, nós estamos caminhando a passos largos para mergulhar dedos, mãos e a própria cabeça no petróleo. É emblemático que o petróleo seja visto e saudado como a nossa carta de alforria para entrar no seleto clube dos desenvolvidos. Vejo na questão do petróleo nosso grande desafio político para pensar como sair dessa armadilha do desenvolvimento. O pior de tudo é o senso comum que se forjou, que aponta o petróleo como a base para o grande salto do Brasil ao tal desenvolvimento; isso, sobretudo, no meio da "classe batalhadora” – os mais de 30 milhões que saíram do limiar da pobreza com as políticas distributivas recentes.
As estimativas atuais das reservas de petróleo do pré-sal são de 50 a 100 bilhões de barris. Estão espalhadas ao longo de 800 km, a cerca de 300 km da costa brasileira; estão entre 5 e 7 mil metros abaixo do nível do mar. Tudo isso revela que o desafio tecnológico da extração de tal petróleo é enorme, ainda mais depois do grande acidente no Golfo do México. Mas o governo brasileiro decidiu enfrentar esse desafio, e uma enorme arquitetura legal, institucional, financeira, industrial e operacional está sendo construída para passar de um pouco mais de 2 milhões de barris de petróleo/dia atuais para mais de 6 milhões em 2020. Claro, a maior parte para exportação. O Brasil vai contribuir com mais de 3 milhões de barris/dias para… Tudo continuar na mesma no mundo dependente de energia fóssil.
A questão é trágica, mas não é simples. Até recentemente (menos de 10 anos), o Brasil era um país em processo de industrialização dependente de petróleo. Ainda nos anos 1950 do século passado, uma grande mobilização em torno da campanha "O petróleo é nosso” levou o então presidente Vargas a criar a Petrobras e o monopólio do petróleo. Muita coisa se passou desde então, mas até hoje a Petrobras é vista como modelo de Estado empreendedor e facilitador do desenvolvimento, além de símbolo de uma cidadania que quer controlar o seu futuro. E é a Petrobras que, no arranjo institucional feito pelo governo do PT, está no centro da operação do pré-sal, revertendo a tendência de concessões para empresas privadas de lotes de exploração adotada pelo governo anterior. Também desde o Governo Lula, foi fixado um percentual de "componente nacional” nas enormes demandas de navios, sondas e tudo o mais da Petrobras, fazendo renascer uma agressiva indústria naval. Só para o pré-sal são mais de 60 navios petroleiros de grande porte –dada a distância da costa– e mais de 60 sondas para extração de petróleo em alto-mar. O movimento sindical, berço do PT, especialmente a Central Única dos Trabalhadores (CUT), é hoje a principal força de apoio ao projeto petrolífero.
Mas tem mais. O debate no Brasil não é se vale a pena explorar o petróleo ou deixá-lo onde está; pelo contrário. O debate é sobre como distribuir as rendas do petróleo... Foi proposta uma nova lei regulatória para todo o setor, a que volta botar a Petrobras no centro das operações. Na mesma lei se instituiu um fundo soberano, sob a administração federal, sobre o principal das rendas do petróleo, um pouco em sintonia com o que se fez na Noruega para fins sociais. Mas existem os royalties. Até agora, só os estados e municípios das áreas de extração e refino recebiam royalties. Com o pré-sal, instaurou-se uma disputa federativa, pois todos os Estados do país querem participar do butim. A confusão da disputa dos ovos de ouro de uma galinha petrolífera, que ainda não está produzindo, está na praça. O Rio de Janeiro, principal estado produtor, teve em 2011 uma gigantesca mobilização, de mais de 100 mil pessoas, em defesa dos royalties do petróleo! Vale a pena sinalizar que, de um ponto de vista capitalista, o Rio de Janeiro, em particular a cidade do Rio, está sendo transformada em cidade global pelos investimentos diretos dos grandes grupos, especialmente petroleiros. Como enfrentar isso? Existe ampla coalizão de forças, hoje, pró-petróleo.
No debate energético e em sua relação com a questão climática, importa observar de perto o papel do etanol para carros de passeio, área em que o Brasil foi pioneiro. Antes de tudo, deve ser registrado aqui que a motivação inicial para desenvolver a tecnologia e produção de etanol a partir da cana-de-açúcar não foi de ordem ambiental, mas comercial. Devido à crise do aumento dos preços de petróleo nos anos 1970 do século passado, que afetou enormemente o frágil equilíbrio das contas externas brasileiras, o regime militar decidiu apostar num substituto viável à gasolina para mover os carros e, com isso, dar condições de expansão para a indústria de automóveis instalada no Brasil, importante setor de empuxe do então "milagre econômico brasileiro” e, diga-se de passagem, berço do combativo movimento sindical, do PT e da CUT.
O etanol foi importante nos anos 1980 e início dos 90, mas sofreu com a redução relativa dos preços do petróleo e, sobretudo, com a descoberta do petróleo na costa brasileira, permitindo reduzir a dependência de importações. O bom, em termos ambientais, foi a manutenção da mistura de etanol à gasolina –algo em torno a 20%, em média–, que tem claros impactos positivos nas emissões dos carros, especialmente nas cidades. Mas a invenção dos carros flex –movidos a gasolina, álcool ou com uma mistura dos dois–, no começo dos anos 2000, permitiu que a produção de etanol desse um grande salto, a ponto de o governo brasileiro começar alardear que tinha encontrado a fórmula ideal para enfrentar um dos vilões das emissões, a frota crescente de carros de passeio no mundo. Na verdade, o etanol e o biodiesel, como seu correlato, não passam de agronegócio, uma das mais importantes bases do desenvolvimento do Brasil emergente. Seu impacto ambiental, do ponto de vista de emissões, até pode ser positivo, mas seu impacto social é devastador. Isso me remete à próxima questão.
A questão do agronegócio
Conta-se que um chinês, respondendo a uma pergunta sobre os emergentes agrupados no BRIC –o bloco, ainda emergente em termos geopolíticos, formado por Brasil, Rússia, Índia e China–, afirmou que, sem dúvida, esses países tentavam embarcar e tomar o leme do navio do poder, mas estava difícil. Em todo caso, havia possibilidades, dado que a China poderia ser a indústria do mundo; a Índia, a prestadora de serviços; a Rússia, a petroleira; e o Brasil, a fazenda. Trágica, mas boa imagem! Lembro isso para destacar uma verdade: o Brasil hoje depende muito do agronegócio como força de sua presença no mundo. Claro que isso significa transformar em "vantagens comparativas” – segundo a regra pétrea da competição capitalista nos mercados – o enorme patrimônio natural de que o Brasil é dotado, mas que deve ser conservado para o equilíbrio ambiental do planeta como um todo. Se acrescentarmos ao agronegócio o extrativismo mineral, temos somado, nas tais commodities, uma dependência crescente das exportações brasileiras da natureza (terra + minas + água + sol), em última análise. Existe, sim, capital e trabalho, mas tributários da natureza.
Ao menos na pauta de exportação, o Brasil claramente reprimariza a sua economia como estratégia de desenvolvimento. Nos últimos anos, tal dependência de produtos primários vem aumentando. Somados, só seis produtos primários (minério de ferro, soja, petróleo, carnes, açúcar de cana e café) chegam a mais de 44% das exportações brasileiras de janeiro a agosto de 2012 (fonte: O Globo, 15/10/12). Dizer que se trata de "extração” natural altamente tecnificada –no caso do agronegócio, uso de sementes transgênicas e raças melhoradas, maior consumo de agrotóxicos por hectare, muitas máquinas, aumento de produtividade– não resolve o fato de que estamos diante de um extrativismo baseado nas tais "vantagens comparativas”, destruidor da biodiversidade, de florestas, contaminador, produtor de alimentos processados de qualidade duvidosa e dependente de modernos latifundiários, parte da tradicional elite brasileira, vivendo nas cidades, ou de grandes grupos empresariais nada identificados com o mundo rural. Afinal, vantagens para quem?
Estamos, na verdade, diante de uma bomba social e ambientalmente devastadora. São menos de 70 mil os grandes proprietários de terras, num universo de quase 4 milhões de proprietários rurais, controlando quase 200 milhões de hectares, 25% do território nacional, o equivalente a mais de 2.800ha cada um, em média. Diante deles, quase dois milhões de famílias sem terra e outros dois milhões com pouca terra. Existe negócio mais excludente?
O agronegócio depende do controle da terra e da sua exploração livre de controle social e ambiental. O recente debate e luta em torno ao novo Código Florestal no Brasil é revelador do poder político do agronegócio. A "bancada ruralista” no Congresso Nacional tem poder de impor o que quer, tendo derrotado o Governo Dilma em todos os rounds. Isto num país onde os grandes proprietários rurais são 0,0... alguma coisa da cidadania!
É nesse ambiente que floresce o agronegócio, etanol de cana bem no centro, apesar do pouco peso nas relações externas até aqui (não é o caso do açúcar, a alternativa a produzir etanol, de que o Brasil goza de enorme vantagem comparativa). Estamos diante de um modelo de desenvolvimento da produção agrícola e pecuária que pouco espaço deixa aos agricultores familiares. Eles existem – e até em grande número. Resistem, apesar de tudo.
Por conquista deles, existe hoje o Pronaf –(Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar), basicamente na forma de crédito subsidiado, numa escala do mais precário ao mais viável economicamente. Esses créditos diferenciados começaram nos anos 1990, depois de grande mobilização. Com o Governo Lula e, agora, Dilma, essa linha de crédito público cresceu muito, chegando a mais de R$ 18 bilhões/ano. Também desde o Governo Lula está vigente uma política de compras oficiais pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) de produtos da agricultura familiar para os programas públicos de alimentos (asilos, centros de atenção especial etc.), com grande impacto econômico e social, sem dúvida. Foi instituída ainda a obrigatoriedade de comprar 1/3 dos alimentos para a merenda escolar (são 48 milhões de refeições gratuitas por dia nas escolas do país) da agricultura familiar da região. São medidas no sentido da "grande transformação”. Mas até onde estão mudando a agricultura brasileira? Basta lembrar aqui que o agronegócio merece mais de R$ 120 bilhões de crédito agrícola; são muitas vezes mais do que a agricultura familiar.
Mais um aspecto relevante dessa questão deve ser mencionado aqui: a reforma agrária. Depois do crescimento das lutas e de uma memorável campanha no início dos 1980, a reforma agrária entrou na agenda política. Desde a Nova República –o regime que fez a transição da ditadura para a democracia, instaurado em 1985–, temos no Brasil ensaios de reforma agrária. A Constituição democrática de 1988 estabeleceu princípios legais para realizar a reforma agrária, por pressão popular e de movimentos sociais dos mais importantes do país, como o Movimento dos Sem Terra (MST). A realidade política do país, porém, é mais dura. Pouco se fez em termos de reforma agrária nestes anos. É duro dizer, mas nos governos petistas ficamos patinando, dando preferência ao crédito de apoio ao invés de um efetivo programa de desmonte da bomba antissocial do latifúndio predador social e ambiental. Enfim, fica claro que o agronegócio é parte do poder estabelecido, difícil de mudar numa perspectiva de bases mais democráticas, includentes e sustentáveis.
Pensar agricultura familiar, agroecologia e o direito humano ao alimento como pilares alternativos está na agenda de muitos sujeitos, sejam movimentos e organizações de agricultores, sejam entidades de cidadania e direitos que lutam por justiça social e já incorporam substantivamente a questão ambiental como marco redefinidor da própria luta por igualdade e participação. No entanto, há uma profunda assimetria de poder com o agronegócio, de visibilidade na agenda pública e de incidência nas políticas. Nunca é demais lembrar que a arquitetura política para acomodar contradições nos levou a ter dois ministérios: o Ministério da Agricultura, entregue ao agronegócio, e o Ministério do Desenvolvimento Agrário, próximo a movimentos sociais e organizações camponesas.
Para a questão alimentar temos o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), órgão de assessoramento e monitoramento de políticas públicas, com maioria da sociedade civil em sua composição, talvez o melhor conselho dos muitos criados pelos governos petistas. Algumas conquistas foram feitas, como a já citada aquisição de alimentos da agricultura familiar pela Conab, a extensão da merenda escolar e a obrigatoriedade de 1/3 de alimentos que devem ser adquiridos da agricultura familiar da região. Tudo isso é possível, mas ocorrendo sob intensa disputa, onde os interesses do agronegócio frequentemente predominam.
Como criar as necessárias condições de transformação
Um primeiro aspecto a reconhecer aqui é o fato de que estamos diante de um Brasil que vem mudando. Não estamos mais naquela fase de capitalismo selvagem, da ditadura, sem contrapesos. Fizemos, sem dúvida, incríveis avanços sociais por meio de políticas ativas, como Bolsa Família (com apoio direto, em termos de renda, a mais de 13 milhões de famílias), aumento substancial do salário mínimo legal (de cerca de US$ 100 para mais de US$ 300), criação de milhões de empregos com direitos trabalhistas (algo como 15 milhões nos governos petistas), ampliação da cobertura previdenciária, expansão fenomenal do crédito para compra de bens de consumo e, sem dúvida, o controle da corrosiva inflação. Mas – isso também é forçoso reconhecer – fizemos sem mudar fundamentalmente a lógica do processo de desenvolvimento capitalista, sua estrutura social concentradora de ativos e sua base técnica industrial, produtivista e consumista, altamente predatória de recursos naturais; mercantilizando tudo; privatizando, se necessário. O Brasil é um exemplo de social-democracia de bem com o capitalismo nos dias de hoje, num contexto em que o neoliberalismo e, agora, sua crise põem em questão a viabilidade de tal modelo, especialmente na Europa.
Como mudar um quadro assim?
Na origem da recente "bonança” do Brasil está o movimento cidadão multifacetado e forte que impulsionou a democratização e que teve no PT a sua expressão política máxima, mas não a única. Sou dos que pensam que essa onda democratizadora está se rebentando e esgotando na praia. Não dá para esperar outra coisa da atual coalizão. Não vou entrar na análise específica de como o DNA político do PT mudou ao fazer aliança com os grandes grupos empresariais emergentes, em torno de um projeto de Brasil emergente. O fato político relevante é que a onda democratizadora, impulsionada mais pelas questões sociais que ambientais, está esgotando sua capacidade transformadora. Nova onda precisa ser reinventada, recriada.
Aí estamos diante de hipóteses e apostas políticas. Existem alternativas reais? Elas são viáveis? Que condições políticas precisam ser criadas? O bom é que cresce no Brasil a consciência ambiental. O quanto ela se alia à inevitável questão social, sem o que não há solução viável, ainda não está clara, ao menos no debate público, aquele que importa como ideário mobilizador para criar movimentos políticos capazes de realizar mudanças. Mas estamos longe de uma agenda coerente de mudanças viáveis. Temos ideias, mas elas são desarticuladas.
Em minha opinião, precisamos voltar às bases, fazer o que se fez na resistência e ao finalmente derrotar a ditadura. Trata-se de um trabalho de educação popular e cidadã, na visão libertária de Paulo Freire. Temos um enorme contingente da população "contaminada” pelo ideal do consumo, pois, afinal, é a primeira vez que o experimentam. Além do mais, é um grupo que busca a sua própria identidade emergente, por assim dizer, por meio de religiões pentecostais, muitas vezes. Que a religiosidade popular é um elemento fundamental sabemos há muito tempo. Mas agora enfrentamos religiões que não necessariamente são nossas aliadas, ao menos até aqui, no espectro político brasileiro. Como agir? Que papel devem desempenhar as organizações de cidadania ativa nesse particular? Ou outras entidades precisam ser inventadas? Que métodos políticos a inventar? Que pedagogia política?
O desafio maior para a democracia e a sustentabilidade, na perspectiva de uma transformação que importa, no Brasil, é conquistar corações e mentes para tal agenda. O imaginário mobilizador é o primeiro desafio. Precisamos ouvir, literalmente escutar, as ruas para entender e transformar as suas demandas. Nosso problema e maior desafio é de ordem cultural: falar para o que as pessoas sentem. Transformação só é possível com cidadania motivada e em ação.

Cândido Grzybowski é sociólogo, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).