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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O pós-humano



Amália Safatle, para a Página 22

Jamais seremos os mesmos desde que a técnica e a máquina atravessaram nosso caminho civilizatório. A filósofa Marcia Tiburi discorre nesta entrevista sobre a construção de um novo homem e suas relações, definitivamente mediadas por aquilo que chama de artificial – segundo ela, próteses que cada vez mais substituem nosso arcabouço natural e as capacidades de realizar trabalhos pelo próprio corpo, de pensar e de produzir conhecimento.
O alerta é para que as tecnologias sejam usadas como meio a serviço do homem, e não como fins em si mesmos, de modo que sejam preservados a palavra, a narrativa, o diálogo e, por conseguinte, a ética. Marcia teme que os meios de comunicação nesta era da imagem técnica pouco contribuam para fazer a sociedade questionar as formas como os sistemas dominantes enredam o ser humano. “A tarefa da filosofia nesta época é tentar colocar diálogo no mundo”, diz.
 
Você já afirmou que, desde a invenção da fotografia, vivemos a era da imagem, e que desta era surge um pós-humano. Que pós-humano é esse?

A gente fala em era da imagem técnica. A relação dos seres humanos com as coisas é sempre mediada por imagens. Eu só me relaciono com você porque estou vendo sua imagem. Se não tivesse a sua imagem visual, teria a sua imagem sonora – a sua voz –, ou, então, a imagem táctil. Quando falamos da era da imagem técnica, intensificamos a discussão para o lado dessa imagem produzida pela fotografia, que tem início no começo do século XIX e depois se transforma na imagem do cinema, no começo do século XX. E que em 1950 se transforma na imagem da televisão. A partir dos anos 80, com o boom do personal computer, passamos a ter também a imagem que está na tela do computador. As imagens técnicas, por definição, são produzidas por aparelhos e chegam por meio de aparelhos. Não é mais a imagem natural, essa que eu tenho de você neste momento.
A pintura, que antecede a fotografia, não seria considerada uma imagem técnica?

A pintura tem as suas técnicas mas, no campo dos estudos visuais, chamamos de imagem técnica aquela produzida por aparelhos que desenvolvem tecnologia, máquinas, ciência, e artificialmente produzem a imagem. A gente vai chamar o nosso corpo de natural – ainda. Fiquei cinco anos fazendo televisão (como participante do programa Saia Justa) e fiz um livro (Olho de Vidro) estudando a questão da televisão. Fui investigar toda a história do olhar e do processo histórico da “evolução”, muito entre aspas, do nosso olhar.
Há vários autores conversando sobre isso, segundo os quais a gente pode dividir a história humana entre o tempo do ícone, em que o ser humano se relacionava com a imagem da parede da caverna, com a imagem do santo, do fundo da catedral. Depois vem o tempo da arte, da pintura, que é muito curto, porque até a pintura medieval tem muito mais relação com o ícone – em que a imagem serve de meio para acessar o sagrado. O tempo da arte relaciona-se com a nossa modernidade, aquilo que, na Europa, chamou-se de Renascença, e descoberta dos outros continentes pelos europeus. E, depois, vem a era do visual, da imagem técnica, inaugurada com a fotografia até os dias de hoje.
A relação que nós, seres humanos, desenvolvemos com as telas – da fotografia, do cinema, da televisão, do computador – virou uma característica da nossa cultura, nos últimos dois séculos. Em Olho de Vidro, quis trabalhar a ideia de que essas telas todas são próteses de conhecimento e a TV é uma prótese muito especial, porque não é só uma tela, é um verdadeiro olho de vidro, como se, por meio da TV, nós tivéssemos substituído a nossa capacidade de ver as coisas. Como se a TV nos oferecesse um olhar sobre as coisas que nós mesmos não nos esforçamos em ter.
E o que muda com a entrada dessa técnica versus o “natural”? Que consequências isso traz?
A gente sai do tempo em que o ser humano tinha de trabalhar e produzir com a sua própria força corporal e a sua imaginação, usado sua própria capacidade de “pensar”. Ele tinha de produzir os meios de sua subsistência e inclusive os meios de acesso ao próprio conhecimento. É dessa época a pintura, a arte de um modo geral, e também o livro. Era um tempo do trabalho, no sentido de fazer coisas com as próprias mãos. Já neste novo tempo, não precisamos mais do nosso corpo. Podemos dizer tranquilamente que existe um adeus ao corpo. Você pode perguntar: “Adeus ao corpo em uma sociedade que cultua o corpo?” Mas veja que esse culto é, na verdade, um sacrifício do corpo. O corpo que a gente deseja não é o corpo vivo, orgânico, e, sim, o corpo plástico, manufaturado pela indústria do corpo, produzido pela academia e pela medicina.
O corpo de antes era o das vicissitudes da vida, que vivia as doenças, a morte, muitos limites que a tecnologia do nosso tempo modificou. A tecnologia atravessou nossa vida a ponto de que podemos viver uma existência completamente desincorporada – isso é o virtual. Eu, você, ele (o fotógrafo) podemos entrar no Facebook agora, e existirmos no Facebook. Lá resolvemos todos os nossos problemas emocionais, as nossas questões relativas ao nosso desejo, expomos nossas teorias e sentimentos. A gente pode criar um nível de relação com os outros avatares ali colocados que não é um nível nunca atual, real, mas é sempre um nível virtual.
Podemos inventar um personagem.

Sim, e viver dentro dele. E isso implica que você abandonou seu próprio corpo e sua existência. Imagine que você está vivendo em uma comunidade concreta. Vamos pegar aqui o Tião Santos (estampado em um exemplar de Página22), figura fantástica que ficou famosa a partir do filme do Vik Muniz, Lixo Extraordinário. Imagine o Tião vivendo na comunidade dele, as demandas em relação à reciclagem, sofrendo todas as intempéries econômicas que as pessoas colocadas na margem sofrem, imagina se o Tião ficasse o dia inteiro no Facebook resolvendo fantasmagoricamente seus problemas e nunca colocasse em prática suas potencialidades. Imagine se ele não tivesse criado aquela associação de catadores.
Estou querendo dizer que os problemas podem ser percebidos pelas pessoas em qualquer um dos universos, mas a maneira como elas vão resolvê-los é diferente: será real ou ilusória. Acho ótimo que exista Facebook, Twitter, eu mesma uso. O que vejo de complicado é que as pessoas muitas vezes percam noção de que tudo aquilo que diz respeito a computador, televisão, cinema é meio, e não fim. Essa sociedade hipertecnologizada parece nos oferecer uma solução imediata para todos os nossos problemas. Essas redes funcionam como vulcões teóricos. Muitas ideias, muitas delas ruins. Quando não têm ideias, contam que acordaram agora, que vão dormir agora. A perda da compreensão de que esses meios são apenas meios é que acho complicado.
E como entra (Marshall) McLuhan nessa história, para quem “o meio é a mensagem”?
Dizer que meio é a mensagem é dizer que a forma é conteúdo. É verdade: você olha para uma pintura e olha para a televisão, e muita coisa está sendo dita pelo fato de que foi dita daquela maneira. Mas por que é que existe a TV, por que é que existe o computador? Não existe para o computador, e sim para o ser humano que se serve dele. Essa é uma pesquisa a ser feita: o que as pessoas acham que estão realizando em um lugar como o Facebook?
Sem dúvida, o meio é a mensagem, mas, nessa era da imagem técnica, pensa só: as pessoas olham para a televisão, o filme, e não refletem sobre o que isso significa. Você olha para uma vitrine e, se não for capaz de pensar, não faz a leitura do que significa a disposição daqueles manequins, com aquele tipo de corpo. Mesmo na vitrine mais banal existe um significado, e é preciso aprender a ler esse significado. Essa leitura não vem com o meio. A televisão não nos ensina a ler. O cinema é um pouco melhor que a TV, porque tem outras camadas, tem a questão ficcional, a narrativa que na TV raramente tem. A televisão, entre todos esses meios, é um dos mais perigosos e muito parecido com o da internet.
Mas a internet oferece a interação, a troca, o compartilhamento que a televisão não tem.
Sem dúvida, é muito melhor. Mas é tão ruim no aspecto de acabar com a nossa imaginação, porque oferece a imagem técnica pronta. Não tenho que trabalhar nisso, não tenho que elaborar uma outra imaginação. E eu só vou aprender a refletir se tiver o contato com o universo das palavras – o que vem pela leitura, pelo diálogo. Vem por contatos humanos que se dão dentro do território da língua falada ou escrita. Enfim, contatos humanos.
Mas existe uma conversa, uma interação e um diálogo na internet e nas redes sociais.

 Eu diria que existe uma conversa, não um diálogo.
Qual a diferença? É a qualidade, a profundidade?
Pensa na palavra diálogo: é uma palavra grega, antiga. Dia significa confronto, dois; e Logus, linguagem, experiência, racionalidade, palavra, língua. Claro que tem que ter um aprofundamento. Se eu for dialogar com você, a gente vai gastar tempo, vai ter de prestar muita atenção, colocar-se uma no lugar da outra, perceber os argumentos e os níveis de consideração que uma está fazendo daquilo que está sendo falado. É diferente de uma conversa – e também de uma entrevista. Na conversa, a gente fala: “Sabe, eu faço tricô”, “Tenho uma filha”. “Eu gosto muito de plantas, estou muito interessada em fazer uma horta na minha área de serviço”. A gente pode ficar falando qualquer coisa. A conversa é jogada fora.
Tem um filósofo de que gosto muito: o Harry Frankfurt, que escreveu um livrinho chamado Sobre Falar Merda. Esse cara é ótimo. As pessoas falam, falam, falam, estão sempre falando! A internet é cheia disso. Mas o que é que elas estão falando? Por que, para quem, qual o sentido dessa fala? Elas falam sobre nada. Não tem problema: isso também faz parte dos rituais de convivência dos seres humanos. Mas acho bem bacana a gente distinguir essas camadas de banalidade, que são importantes para o cotidiano, das camadas mais fundamentais das relações humanas que envolvem a capacidade de dialogar.
E aí qual seria o lugar e os meios para esse diálogo acontecer?

Pois é. A minha vida com a filosofia sempre me fez pensar muito nisso. Que a gente conversa demais e dialoga de menos. E que a tarefa da filosofia nessa época é tentar colocar diálogo no mundo. O diálogo é malquisto. Desde que eu era menina se falava “papo-cabeça, garota enxaqueca”. Virou essa coisa: quem quer falar sério já virou um chato. Existe, digamos assim, um conjunto das práticas discursivas que foram fundadas dentro um sistema econômico e político, que as pessoas introjetam em si mesmas, porque é assim que conseguem sobreviver dentro desse sistema. Essas práticas denigrem sempre a elaboração intelectual séria e atenta. Por exemplo, quem inventou o “ecochato”? E por que chamar de ecochato? Não me autodefino como ecologista, mas os chamados ecochatos por acaso xingam as peruas consumistas?
Imagino que foi cunhado de ecochato porque é o cara que vem avisar que a terra tem limites, que não dá para continuar consumindo o mundo desvairadamente.

Então, se ele vem questionar esse conforto predatório, as pessoas se insurgem contra ele e criam a figura do ecochato. E existe uma força nesse discurso, porque tem muita gente falando, enquanto os ecologistas contam com uma força numérica menor, e não são capazes de chamar os alienados de plantão de…
Alienados de plantão.
É. Então você é um imbecil, mas você tem razão.

Isso acontece porque a gente vive nessa era, nessas condições de superficialidade, de discurso fragmentado, de pouca linearidade?
A gente vive numa era, no meu entendimento, de um sistema econômico e político muito predatório. Infelizmente, o nome desse sistema é capitalismo, que também é um sistema filosófico, porque implica um modo de pensar e de agir. Esse mesmo sistema define que o modo de pensar não importa, importa o fazer. No entanto, esse discurso é feito para que as pessoas não prestem atenção no modo de pensar, não prestem atenção nem mesmo no fato de que existe um modo de pensar, pois esse sistema precisa se autoacobertar para poder funcionar. E as pessoas acreditam que, dentro desse sistema, ter sucesso profissional depende apenas do indivíduo, quando a gente sabe que depende de muitos fatores socioeconômicos, históricos, institucionais.
Introjetaram a ideia de que a culpa é delas. Que, se eu estou lá – para voltar ao Lixo Extraordinário – catando lixo no Jardim Gramacho, é porque fui incompetente, fui eu que não trabalhei, eu que não estudei, ou eu que não dei sorte. Quando, na verdade, existe um sistema econômico-político organizado para que alguns se deem muito bem. E para que isso aconteça, alguns terão de se dar muito mal. Se uma sociedade não se preocupa com o que vai acontecer com a massa de pessoas das classes sociais menos favorecidas, o que vai acontecer?
E como isso se liga com o que falamos sobre o pós-humano que decorre da era da imagem técnica?

Em uma sociedade tecnológica, há um descaso com o humano. Se eu puder, na minha fábrica, colocar um monte de robôs e tirar as pessoas, melhor para mim. Menos pessoas, menos problemas. É assim que esse sistema se organiza, prevendo que, quem não puder ser encaixado, que morra. Eu não morrendo, tudo bem.
E desde que não morra também o consumidor do produto…

Sim. Mas vamos produzir bastante gente, porque terá bastante consumidor, e aí você vê o papel da Igreja mancomunada com esse sistema querendo que as pessoas cresçam e se multipliquem para fazer aqueles serviços que ninguém quer fazer.

Parece meio conspiratório tudo isso, não?
Mas acho que existe isso sim. Eu vejo pessoas falando: e quem vai trocar os pneus do meu carro? E quem vai lavar a roupa? E quem vai limpar as ruas? Quem vai separar o lixo que na minha casa eu não separo? Dizer que é teoria conspiratória pode ser também a estratégia do discurso do próprio sistema para desabonar esse tipo de reflexão que, a meu ver, é bem lúcida.
Não acho, no entanto, que exista a malignidade intencional, pelo menos não em escala universal. Já existiu: Hitler, Pol Pot. Mas no nível mais banal existe uma destruição da vida humana, da condição humana e das potências dessa coisa humana – inventada pelos próprios intelectuais, pelos filósofos, pelos grandes seres humanos que ficaram muito preocupados com esse projeto que envolve seres pensantes, animais que possuem uma linguagem diversificada como a nossa. Eles tentaram fazer com esse projeto humano fosse incrível. Acho que é uma invenção bacana, mas não sei até onde se sustenta. Quando eu e vários autores falamos em pós-humano, o pós-humano é o que resta, é esse ser humano que sobra depois da lavagem tecnológica que nós vivemos. O que é o nosso corpo depois da tecnologia? O que é o nosso pensamento, nossa ação depois da tecnologia?
Qual seria o jeito de conviver com as tecnologias de modo que elas nos sirvam para o nosso próprio bem – afinal, foi para isso que nós as inventamos? O modo, no meu entender, seria voltar a ver as tecnologias como meios e não como fins. Um carro, se eu quiser ter um, deve ser para me servir. Mas já pensou que no Brasil há pessoas que passam anos ganhando um dinheiro muito difícil, se sacrificando para pagar por um carro que elas nem precisavam ter? Fins são seres humanos. Meios são coisas que criamos para nos ajudar a viver melhor.
E o que você vê de bom na internet e nas redes sociais? em que momento elas cumprem o papel de meios a serviço da sociedade?

O que vejo de bom é a difusão da informação. Que é algo legal na televisão também, quando ela é séria – o que é raro. E que é a coisa importante do jornalismo. A informação também sempre tem de ser questionada, porque qualquer meio de comunicação recorta e estrutura informação de acordo com suas conveniências. Mas acho que a internet, com todos os seus defeitos, reforça um valor que, levado a sério, é o mais honesto e necessário para a gente ter uma vida minimamente justa, que é a democracia. A internet sustenta a democracia. E na internet, diferente de na TV, a gente tem um pouquinho mais de noção, pelo afluxo radical de informações que existe ali, que a informação é produzida (artificialmente). Enquanto na TV, a impressão que as pessoas têm é de que a informação é simplesmente verdadeira, embora tenha sido construída também.
Esse mundo mais tecnológico, mais máquina e menos homem, mais imagem e menos palavra, seria, recuperando uma fala sua (assista o vídeo), um mundo com menos ética (um robô não tem ética) e, por decorrência, sem política, em que se desaprende a dialogar. Isso, portanto, vai contra a democracia. Então não existe uma incoerência quando se fala que uma tecnologia como a da internet ajuda a sustentar a democracia?
As tecnologias podem ser usadas para o bem das pessoas. Isso é claro. É o mau uso das tecnologias que prejudica a vida das pessoas. É nesse mau uso que a gente encontra a questão da ética. O que é ética? É a minha reflexão sobre aquilo que faço. Do jeito que se usa a internet, a tecnologia, os carros, as roupas, qualquer coisa que exista, não existe ética, pois ninguém está pensando no que está fazendo. Se começamos a pensar, a ver as implicações, as responsabilidades, os efeitos, o que está por trás e aonde tudo isso vai nos levar, quando a gente consegue se perguntar qual é o futuro disso tudo, nessa pergunta é que a gente começa a chegar perto da questão da ética.
Para os antigos, é uma palavra que se traduz por casa, lugar onde se habita. A ética é como eu me porto em relação a você, é a convivência. Então, numa sociedade megavisual como a nossa, em que as tecnologias produzem visualidade, o que se coloca em questão é: como essas tecnologias podem ajudar as pessoas?
Assim, é possível que a imagem técnica produza um mundo melhor abrindo janelas de emancipação para as pessoas. O cinema faz muito isso, mas não sozinho: ele depende do cineasta, da produtora, então a questão da ética volta sempre. A gente está inventando quinhentas coisas, mas o que nós vamos fazer com isso? O que queremos com isso? Para onde estamos nos encaminhando? Essa pergunta sobre o futuro não está sendo feita, e isso faz parte de como se arranjou viver dentro desse sistema. A publicidade, a televisão, o estado da ideologia geral não coloca para as pessoas a sensação da ameaça, ou seja, da mortalidade, da finitude. Do futuro.
Sobre isso eu queria engatar uma pergunta. Você tinha falado sobre o abandono da linguagem discursiva e da linearidade, da narrativa com começo, meio e fim. Na internet, passa a haver um novo tempo que não é mais linear e, sim, simultâneo, ou mesmo suspenso.
É quase uma ausência de tempo.
E que efeitos traz essa dissolução do tempo, que é um dado fundamental quando falamos em futuro e em sustentabilidade?
De um lado, a gente tem de pensar no campo individual: como as pessoas fazem a experiência do tempo. De outro, pensar no tempo coletivo, político, em escala social. Em um sistema econômico-político como o nosso, o tempo foi sempre tratado como dinheiro e, no campo do trabalho, as pessoas são compradas no tempo. A luta contra as excessivas jornadas de trabalho sempre foi uma grande questão, porque, se eu tenho meu tempo, eu tenho minha vida, minha liberdade. E, se eu quiser dominar e explorar você, vou dominar e explorar usando o seu tempo. Então o sistema sabe que, para funcionar, precisa devorar o tempo do indivíduo. E esse indivíduo não vai ter justamente aquilo que vende, que é o seu tempo junto com a sua força de trabalho.
Pensa em uma cidade como São Paulo, em que o indivíduo passa três horas da periferia até o centro para ganhar aquele salário. Três na ida, três na volta e oito no local de trabalho, no mínimo. O que sobra? E muitas vezes o que ela faz não é interessante. Como a gente gesta a nossa questão do tempo como indivíduo e como a sociedade gesta o tempo geral para que os próprios indivíduos possam ser respeitados na sua questão de pessoas humanas que têm direitos?
A questão do futuro retorna, como fundamental. Mas sempre abafada na nossa cultura, em que é quase errado pensar no que vai acontecer, porque vai se deparar com questões graves como morrer, envelhecer, perder. Mas pensar no tempo nunca vai nos deixar muito felizes mesmo. E também acho que ficar muito feliz não é algo que a gente precisa. A gente precisa mesmo é pensar, porque, mesmo que isso não nos deixe feliz, nos deixa em paz.
Talvez a gente consiga abandonar a angústia desse mal-estar geral que está presente em nossa cultura contemporânea que tem a ver com esses valores malignos como consumir, ter, poder, aparecer, ver, ser visto. Que tipo de ser humano a gente quer ser? Isso não está em pauta e tem pouquíssima gente se preocupando com isso.
E as massas de pessoas que são levadas no roldão dos meios de comunicação, da religião, das instituições, das verdades, da moral, as pessoas não tem a menor chance de pensar nisso. Fico pensando no pobre do indivíduo que não enxerga o que está acontecendo com ele, na classe social que for. E dessa maneira não consegue fazer um projeto de vida bacana pra si mesmo. Porque não consegue perceber em que tipo de teia está enredado. E essa falta de lucidez é um mal desse nosso tempo, hipertecnológico, hiperinformatizado, hiperdigital, e cheio de informação. As pessoas têm muita informação, mas pouco espaço para pensar.
Você encaixaria os movimentos como Occupy Wall Street, indignados, Primavera árabe no rol de momentos de lampejos de lucidez, de questionamento sobre aonde estamos indo?
No mínimo, esses movimentos têm uma intuição de que alguma coisa está errada. Não podermos querer que as pessoas tenham uma explicação teórica absoluta e científica. Essas intuições são maravilhosas, e o fato de que as pessoas se manifestem mostra que está incomodando um pouco mais que simplesmente perceber isso e ficar quieto. Mesmo na internet, as pessoas já falam mais. Quando as pessoas falam mais, elas vão ficando mais inteligentes e lúcidas. Claro que, se não tentarem aprofundar essas intuições, é provável que fiquem naquele estágio de indignação que não leva para muito longe. Mas da indignação é possível partir para a ação ética. As primeiras feministas, por exemplo, eram altamente intuitivas, se incomodavam, deixavam suas ideias por escrito. Depois, aos poucos, foram se unindo, fazendo coisas.
Então, nesse caso, a internet e as redes sociais ajudam muito.

Sim. No evento do Egito é uma coisa, foi bem importante, ajudou. Naquele contexto, o uso que as pessoas fizeram para abrir, para fazer o estardalhaço é uma coisa. Outra coisa é o uso que um tanto de personagens, de atores sociais conservadores e acomodados fazem, por exemplo, no Brasil. Elas acham: estou aqui no Facebook então estou no mundo, não preciso fazer mais nada. Então a gente tem que ter noção disso e saber como usar esses meios.

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