I. A década de ouro
O objetivo deste artigo é compreender por que vem ocorrendo uma
relativa desmobilização da sociedade brasileira e, em particular, dos
organismos de representação da classe trabalhadora? As respostas são
complexas e nos remetem aos ciclos das lutas travadas nas últimas
décadas no Brasil.
Poderíamos começar lembrando que, ao longo dos anos 1980, o Brasil
esteve à frente das lutas sociais e sindicais, mesmo quando comparado
com outros países avançados. A criação do PT em 1980, da CUT em 1983, do
MST em 1984, a luta pelas eleições diretas em 1985, a eclosão de quatro
greves gerais, a campanha da Constituinte, a promulgação da
Constituição em 1988 e, finalmente, as eleições de 1889 são exemplos
vivos da força das lutas daquela década. Houve avanços significativos na
luta pela autonomia e liberdade dos sindicatos em
relação ao Estado, através do combate ao Imposto Sindical, à estrutura
confederacional, cupulista, hierarquizada e atrelada, instrumentos que
se constituíam em alavancas utilizadas pelo Estado para controlar os
sindicatos. Aquela década conformou também um quadro nitidamente
favorável para o chamado novo sindicalismo, que caminhava em direção contrária à crise sindical presente em vários países capitalistas avançados.
Entretanto, no final daquela década já começavam a despontar as
tendências econômicas, políticas e ideológicas que foram responsáveis
pela inserção do sindicalismo brasileiro na onda regressiva, resultado
tanto da reestruturação produtiva do capital em curso em escala global
como da emergência da pragmática neoliberal, que passaram a exigir
mudanças significativas.
A partir de 1990, com a ascensão de Collor e depois com FHC, o receituário neoliberal deslanchou. Nosso
parque produtivo estatal foi enormemente alterado pela política
privatizante, afetando diretamente a siderurgia, telecomunicações,
energia elétrica, setor bancário, dentre outros, o que alterou o tripé
que sustentava a economia brasileira (capital nacional, estrangeiro e
estatal), redesenhando e internacionalizando ainda mais o capitalismo no
Brasil. O setor produtivo estatal era fagocitado ainda mais pelo
capital monopolista estrangeiro.
Com um processo tão intenso, a simbiose nefasta entre neoliberalismo e
reestruturação produtiva teve repercussões muito profundas na classe
trabalhadora e em particular no movimento sindical. Flexibilização,
desregulamentação, terceirização, novas formas de gestão da força de
trabalho etc. tornaram-se pragas presentes em todas as partes. No apogeu
da era da financeirização, do avanço técnico-científico-informacional,
do mundo digital onde tempo e espaço se convulsionam, o Brasil vivenciou
mutações fortes no mundo do trabalho, alterando sua morfologia, da qual
a informalidade, a precarização e o desemprego ampliavam-se
intensamente.
Esta nova realidade arrefeceu o novo sindicalismo que se
encontrava, de um lado, diante da emergência de um sindicalismo
neoliberal, sintonizada com a onda mundial conservadora, de que a Força Sindical é
o melhor exemplo. E, de outro, diante da inflexão que vinha ocorrendo
no interior da CUT, que cada vez mais se aproximava do sindicalismo
social-democrata. A política de “convênios”, “apoios financeiros”,
“parcerias” com a social-democracia sindical, especialmente européia,
levada a cabo por décadas, acabou contaminando o sindicalismo de classe
no Brasil, que pouco a pouco se social-democratizava, num contexto, vale
lembrar, onde a social-democracia se aproximava do neoliberalismo.
II. O sucesso do social-liberalismo e o advento do sindicalismo negocial de Estado
Foi neste contexto que Lula sagrou-se vitorioso nas eleições
presidenciais em 2002, depois de um período de enorme desertificação
social, política e econômica do Brasil, vitória que ocorreu em um
contexto internacional e nacional bastante diferente dos anos 1980. A
vitória da “esquerda” no Brasil ocorria quando ela estava mais
fragilizada, menos respaldada nos pólos centrais que lhe davam
capilaridade, como a classe operária industrial, os assalariados médios e
os trabalhadores rurais.
Se pudéssemos lembrar Gramsci, diríamos que o transformismo já havia convertido o PT num Partido da Ordem.
Quando Lula venceu as eleições, em 2002, ao contrário da potência
criadora das lutas sociais dos anos 1980, o cenário era de completa
mutação. Ela foi, por isso, uma vitória política tardia. Nem o PT, nem o
país eram mais os mesmos. Como já pude dizer anteriormente, o Brasil
estava desertificado e o PT havia se desvertebrado.
Quais são as explicações para esse transformismo? Aqui
podemos tão somente indicá-las: 1) a proliferação do neoliberalismo na
América Latina; 2) o desmoronamento do “socialismo real” e a prevalência
equivocada da tese que propugnava a vitória do capitalismo; 3) a
social-democratização de parcela substancial da esquerda e sua
aproximação à agenda social-liberal, eufemismo usado para “esconder” sua
real face neoliberal.
E o PT, partido que se originou no seio das lutas sociais e
sindicais, aumentava sua sujeição aos calendários eleitorais, atuando
cada vez mais como partido eleitoral e parlamentar, até tornar-se um
partido policlassista. Lula passou a cobiçar a confiança das principais
frações das classes dominantes, incluindo a burguesia financeira, o
setor industrial e o agronegócio. Um exemplo é bastante esclarecedor:
quando, ao final do governo FHC, em 2002, houve um acordo de “intenções”
com o FMI, este organismo exigiu que os candidatos à presidência
manifestassem sua concordância com os termos do referido acordo. O PT de
Lula publicou, então, um documento, denominado como a Carta aos Brasileiros, onde evidenciava sua política de subordinação ao FMI e aos setores financeiros internacionais e nacionais.
O resultado de seu governo é conhecido: sua política econômica
ampliou a hegemonia dos capitais financeiros; preservou a estrutura
fundiária concentrada; deu incentivo aos fundos privados de pensão;
determinou a cobrança de impostos aos trabalhadores aposentados, o que
significou uma ruptura com parcelas importantes do sindicalismo dos
trabalhadores, especialmente públicos, que passaram a fazer forte
oposição ao governo Lula.
A sua alteração mais significativa, no segundo mandato, foi uma resposta à crise política aberta com o mensalão,
em 2005. Era necessário que o novo governo ampliasse sua base de
sustentação, desgastada junto a amplos setores da classe trabalhadora
organizada. Foi então que ocorreu uma alteração política importante: o
governo ampliou o programa Bolsa-Família, uma política social
de perfil claramente assistencialista, ainda que de grande amplitude,
que atinge mais de 12 milhões de famílias pobres com renda salarial
baixa e que por isso recebiam um complemento salarial. E foi esta
política social – assumida como exemplo pelo Banco Mundial – que ampliou
significativamente a base social de apoio a Lula, em seu segundo
mandado. Ela atingia os setores mais pauperizados e desorganizados da
população brasileira, que normalmente dependem das políticas do Estado
para sobreviver.
E em comparação ao governo de FHC, a política de aumento do salário
mínimo, ainda que responsável por um salário vergonhoso e inconcebível
para uma economia do porte da brasileira, significou efetivos ganhos
reais em relação ao governo tucano. E, desse modo, o governo Lula
“equacionou” as duas pontas da tragédia social no Brasil: remunerou
exemplarmente o grande capital financeiro, industrial e o agronegócio e,
no outro pólo da pirâmide social, implementou a Bolsa-Família
assistencialista e concedeu uma pequena valorização do salário mínimo,
sem confrontar, é imperioso dizer, nenhum dos pilares estruturantes da
tragédia brasileira.
Quando a crise mundial atingiu duramente os países capitalistas do
Norte, em 2007/08, o governo tomou medidas claras no sentido de
incentivar a retomada do crescimento econômico, reduzindo impostos do
setor automobilístico, eletrodoméstico e da construção civil, todos
incorporadores de força de trabalho, expandindo fortemente o mercado
interno brasileiro e compensando, desse modo, a retração do mercado
externo em suas compras de commodities. O mito redivivo do novo “pai dos pobres” ganhava força.
Mas havia, ainda, outro elemento central na engenharia da cooptação
do governo Lula/Dilma: o controle de setores importantes da cúpula
sindical, que passava a receber diretamente verbas estatais e, desse
modo, garantia o apoio das principais centrais sindicais ao governo (1).
Pouco antes de terminar seu governo, Lula tomou uma decisão que ampliou
ainda mais o controle estatal sobre os sindicatos, ao permitir que as
centrais sindicais também passassem a gozar das vantagens do nefasto
Imposto Sindical (2), criado na Ditadura Vargas, ao final dos anos 1930.
E, além do referido imposto, elas passaram a receber outras verbas
públicas, praticamente eliminando (em tese e de fato) a cotização
autônoma de seus associados. Outro passo crucial para a cooptação estava
selado.
E, se já não bastasse, centenas de ex-sindicalistas passaram a
participar, indicados pelo governo, do conselho de empresas estatais e
de ex-estatais, com remunerações polpudas. Portanto, para compreender a
cooptação de parcela significativa do movimento sindical brasileiro
recente, é preciso compreender esse quadro, do qual aqui pudemos
oferecer as principais tendências.
O que nos leva a concluir que, para a retomada de um sindicalismo de
classe e de esquerda, há um bom caminho a percorrer. Mas talvez seu
primeiro desafio seja criar um pólo sindical, social e político de base
que não tenha medo de oferecer ao país um programa de mudanças
profundas, capazes de iniciar a desmontagem das causas estruturantes da
miséria brasileira e de seus mecanismos de preservação da dominação. E
um passo imprescindível neste processo é, desde logo, romper a política
de servidão voluntária que empurrou os sindicatos em direção ao Estado.
Notas:
1) O campo sindical do governo é amplo: no centro-esquerda, além da
CUT, temos a CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil),
formada pela Corrente Sindical Classista que se desfiliou da CUT em 2007
para criar sua própria central. No centro-direita, temos a Força
Sindical, já mencionada, que combinava elementos do neoliberalismo com o
velho sindicalismo que se “modernizou”, além de várias pequenas
centrais como a CGTB (Central Geral dos Trabalhadores do Brasil), UGT
(União Geral dos Trabalhadores), Nova Central, todas dotadas de pequeno
nível de representação sindical e de algum modo herdeiras do velho
sindicalismo dependente do Estado.
No campo da esquerda sindical anticapitalista, em clara oposição aos
governos Lula/Dilma, são importantes a CONLUTAS (Coordenação Nacional de
Lutas) e o movimento INTERSINDICAL. A primeira se propõe a organizar
não só os sindicatos, mas também os movimentos sociais extra-sindicais, e
a segunda (ainda que hoje se encontre dividida) é também oriunda de
setores de esquerda que romperam com a CUT, tendo um perfil mais
acentuadamente sindical e voltado para a reorganização do sindicalismo
pela base, contra a proposta de criação de uma nova Central.
2) Em 2010 foram R$ 84,3 milhões para as centrais: segundo o
Ministério do Trabalho, as duas maiores centrais, CUT e Força Sindical,
receberam R$ 27,3 milhões e R$ 23,6 milhões, respectivamente - valores
que representam 80% do orçamento da Força e 60%, da CUT. Em seguida, os
maiores beneficiados foram a União Geral dos Trabalhadores (UGT), com R$
14 milhões; Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST), que embolsou
R$ 9,9 milhões; Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil
(CTB), R$ 5,3 milhões; e Central Geral dos Trabalhadores do Brasil
(CGTB), R$ 3,9 milhões.
Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/UNICAMP e autor, entre outros livros, de O Continente do Labor (Boitempo) que acaba de ser publicado. Coordena as Coleções Mundo do Trabalho (Boitempo) e Trabalho e Emancipação (Ed. Expressão Popular). Colabora regularmente em revistas estrangeiras e nacionais.
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