Era um pouco
antes das seis horas da manhã do dia 22 de janeiro. As tropas se
alinharam para cumprir a reintegração de posse de uma área na qual
viviam cerca de 9 mil pessoas há oito anos. Suas casas humildes se
enfileiravam por ruas bem traçadas, havia se erguido um centro
comunitário, creches e escolas.
O terreno é
parte da massa falida de uma empresa que enlatava legumes e pertencia a
um empresário chamado Naji Nahas, conhecido por suas fraudes. O terreno
não recolhia impostos, estava abandonado há trinta anos e somava uma
dívida de quinze milhões.
Quase dois
mil soldados, carros de combate e helicópteros cercavam o local e o
folheto da polícia militar do governo Alckimin explicava que a
reintegração era uma “ordem da justiça” e que a PM estava ali apenas
para “proporcionar segurança e tranquilidade”. Indiferente ao fato de
haver uma liminar e uma proposta concreta de regularização da área, a
Prefeitura e o Governo do Estado mantiveram a ordem de reintegração
emitida pela senhora juíza Márcia Loureiro, da 6ª Vara Cível de São José
dos Campos.
Os moradores
eram organizados e nestes oito anos souberam lutar por seus direitos e
mais que isso, construíram através de sua luta um compromisso e
solidariedade que cimenta a unidade de nossa classe. Por isso exerceram
seu sagrado direito de resistir. Foram atacados, retirados violentamente
de seus lares, seus pertences amontoados na rua, deslocados para
centros de triagem. Um representante das autoridades ao ser indagado
sobre o que seria daquelas pessoas, para onde iriam, responde que isso
não havia sido planejado, as pessoas deviam se inscrever nos planos de
habitação existentes e esperar uma vaga.
Ainda que
patente uma série de ilegalidades e omissões que por si mesmas levariam
ao questionamento meramente jurídico do ocorrido (parece que o
Ministério Público está acionando o poder municipal por sua omissão), a
questão é mais profunda que uma trapalhada jurídica e uma juíza
prepotente e arrogante.
O símbolo do
Direito é uma mulher com uma venda que lhe cobre os olhos, uma balança e
uma espada. Sempre brinquei com meus alunos que cada um escolhe a
simbologia que lhe agrada, mas é temerário entregar uma espada a uma
senhora cega. A simbologia indica que a justiça deve ser aplicada sem
olhar a quem, ou seja, pela objetividade fria da lei, no caso se cabia o
recurso à reintegração de posse, o direito de propriedade de quem
administra a massa falida, a pertinência da aplicação da medida e outros
aspectos do universo jurídico, não interessando quem se beneficiará da
medida ou quem sofrerá com ela.
Mas, o que
esta senhora deixou de ver em seu pedestal de suposta neutralidade? Que a
balança pendia para os representantes de um empresário fraudulento que
abandonou um terreno sem recolher impostos por mais de trinta anos de um
lado, enquanto que no outro prato da balança encontravam 9 mil pessoas
com seus filhos, famílias e pertences modestos que haviam, no meio do
caos de uma política habitacional incompetente e irresponsável,
encontrado uma solução para um direito elementar: a moradia.
O que mal se
disfarça e que tal episódio revela com clareza é o caráter de classe do
Direito. O senhor Naji Nahas ficou conhecido por sua habilidade de
contornar a lei, os trabalhadores do Pinheirinho não tiveram a mesma
sorte. Apesar de ter os olhos vendados, a pontaria desta senhora é
impressionante: cada espadada, um pobre.
O fundamento
de tudo isso está em um direito: o de propriedade. Em algum papel está a
propriedade de um industria chamada Seleta S/A, do senhor Nahas, em
outro papel o destino de tal propriedade, mas em papel algum pode-se ler
o destino daqueles trabalhadores que, vendo um enorme terreno
abandonado, ousam dizer que tem o dever de garantir uma moradia aos seus
familiares.
Pelos
labirintos inescrutáveis do Direito, espaço no qual Bourdieu define que
se opera a luta do direito para dizer o direito, de ações, processos,
recursos, mandatos e sentenças, ao final se revela a garantia dos
interesses da classe proprietária enquanto aos trabalhadores resta a
truculência das forças policiais que estariam lá para garantir uma
“ordem da justiça” e desta forma a “segurança e a tranquilidade” dos
senhores proprietários.
No meio da
desocupação, entre balas de borracha, bombas, escudos e cassetetes, um
senhor genebrino, nascido em 1712, desvendava o segredo:
“O primeiro
que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer: ‘isto é meu’, e
encontrou pessoas bastante simples para crê-lo, foi o verdadeiro
fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, mortes, quantas
misérias e horrores não teriam poupado ao gênero humano aquele que,
arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado aos seus
semelhantes: ‘Guardai-vos de escutar este impostor; estais perdidos se
esquecerdes que os frutos são para todos, e que a terra é de ninguém!’”
(Jean-Jacques Rousseau – Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens).
Logo depois
de proferir tal frase, a polícia militar o abateu com um violento golpe e
sob o efeito das bombas e da fumaça foi levado junto aos demais
enquanto um outro senhor, este um francês, concluía: “a propriedade é um
roubo”. Dois alemães de braços abertos recebiam seus colegas e,
condescendentes com sua ingenuidade, batiam em seus ombros doloridos
dizendo: “eu sei, eu sei…”. Logo mais adiante, dois russos com ares
compenetrados pensavam os próximos passos.
Longe dali,
um no palácio do governo, outra em seu tribunal, os funcionários do
capital festejam sua vitória. Nossa classe anota seus nomes, junto ao de
todos aqueles que se omitem e legitimam este crime, e aguarda.
Quando os
ruídos de bombas e balas cessaram e a fumaça baixou, com os pobres
novamente resumidos a situação de penúria, desamparo e carência que lhes
cabe nesta ordem do capital e da propriedade, cantamos em tom de
desafio junto com Violeta Parra:
Yo que me encuentro tán lejo,
esperando la noticia,
me viene decir en la carta,
que en mi patria no hay justicia,
los hambrientos piden el pan,
plomos le da la milicia, si.
(…)
La carta que ha recebido,
me pide contestación,
yo pido que se propaguen,
por toda la población,
que Geraldo és un sanguinário,
en toda la generación, si.
Por suerte tengo guitarra,
para llorar mí dolor,
también tengo muchos hermanos,
fuera de él que se engrilló,
todos son comunistas,
con el favor de mí Diós, si.
Rio de Janeiro, fevereiro de 2012 ( trezentos anos depois do nascimento de Rouseau)
***
Mauro Iasi é
professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da
ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas),
do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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