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sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O poder absoluto do STF


STF
(IN)JUSTIÇA Entre denúncias de corrupção e regalias injustificáveis, o Judiciário vai se revelando um poder com baixo controle democrático no Brasil

Pedro Rafael Ferreira
de Brasília (DF)

Na última semana, o ministro Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), de férias na Europa, recebeu 11 diárias para proferir dois dias de palestra na França e na Inglaterra. Segundo sua assessoria, o descanso seria interrompido para que ele cumprisse as agendas, além de outros encontros, o que justificaria o recebimento dos R$ 14 mil em auxílio-viagem. Somente após denúncia do fato nos meios de comunicação, a agenda oficial foi divulgada.
A esse episódio se soma a denúncia publicada em 2013 pelo jornal O Estado de S. Paulo, de que o mesmo STF gastou, entre 2009 e 2012, o valor de R$ 608 mil com passagens internacionais de primeira classe para ministros e seus familiares, além de outros R$ 295,5 mil com bilhetes aéreos expedidos em períodos de recesso ou licença-médica. Uma resolução interna do Supremo, de 2010, permite os gastos.
Em 2009, a revista IstoÉ também fez uma denúncia grave, revelando que parentes e até amigos dos ministros Luiz Fux (à época, no Superior Tribunal de Justiça) e do falecido Carlos Alberto Menezes Direito tinham passagem liberada pela Receita Federal nos aeroportos brasileiros, aos desembarcarem de viagens internacionais. Com isso, eram dispensados de pagar impostos por produtos adquiridos no exterior e não faziam nem sequer controle de bagagem no raio-X, como qualquer outro cidadão.
Especialistas do direito ouvidos pelo Brasil de Fato condenam esse tipo de privilégio. “O grande problema desses episódios é que isso tem passado como se fosse normal do Poder Judiciário. Usar o status público de um juiz ou ministro para fins privados é um absurdo”, condena Carlos Marés, jurista e procurador do Estado do Paraná. Ele explica que a Constituição Federal, ao reafirmar a liberdade e a soberania do Poder Judiciário, se refere às condições para exercer a Justiça, ou seja, o poder de julgar e ter as decisões cumpridas. “O juiz que julga jamais pode sofrer punição ou restrição por isso. Mas essa prerrogativa não se aplica ao ato administrativo que ofenda o interesse público”, completa.
José Henrique Rodrigues Torres, juiz titular do 1º Tribunal do Júri em Campinas (SP) e ex-presidente do conselho executivo da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD), pondera que autonomia administrativa é um fator de independência do Judiciário, o que deve ser levado em conta para avaliar supostos privilégios.
“A questão burocrática e orçamentária interfere na ação judicial. De que adiante independência da Justiça sem verba para desenvolver suas ações? Tem que analisar caso a caso para saber até que ponto se trata de vantagem pessoal, para que as pessoas não achem que todo ato administrativo do Judiciário é um privilégio”, explica. No entanto, para o magistrado, é preciso ir além dessa constatação. “Temos que analisar como é que situações como essas de privilégios podem acontecer, quais são as lacunas institucionais e estruturais do Poder Judiciário”, opina.
Antidemocrático
O aspecto mais controverso da organização da Justiça no Brasil diz respeito à sua estrutura extremamente hierarquizada e com praticamente nenhum processo efetivamente democrático de escolha de seus principais postos. Além disso, não existe propriamente um controle externo.
“A Associação de Juízes para a Democracia sempre defendeu um controle nacional externo da Justiça. Ou seja, sem composição de juízes e com participação social. Porém, quando foi criado o CNJ [Conselho Nacional de Justiça], veio como órgão interno e foi só por esta razão, a de que fosse um órgão de controle interno, que ele pôde ser aprovado. E a composição do conselho foi feita, na sua maioria, por juízes. É preciso reconhecer que, mesmo com esses defeitos, o CNJ está prestando grandes serviços, mas nós tínhamos razão em defender a necessidade de um controle: como é que vamos saber o que é privilégio ou não?”, aponta o juiz Henrique Torres, da AJD.
Para o jurista Carlos Marés, o Poder Judiciário é, de longe, o menos democrático da República. “Um magistrado só é punido se for pego com a boca na botija roubando. É um poder muito grande para um único indivíduo. Os juízes que chegam numa comarca são autoridades máximas. No mínimo, teria que existir a possibilidade de um tipo deimpeachment popular ou controle democrático- popular da comunidade sobre o juiz”, avalia.
Ele cita o exemplo dos Estados Unidos, em que na maioria dos estados, os juízes de primeira instância são eleitos diretamente pelo voto popular ou são escolhidos em um processo seletivo em que a comissão avaliadora também é composta por segmentos sociais. Além disso, lá há mandato de magistrado que pode variar de seis a 10 anos, em que a recondução também estaria submetida à escolha popular.
Poder da cúpula
O juiz Henrique Torres acredita que o problema maior são as cúpulas do Poder Judiciário. “O juiz de primeira instância, na comarca, já é bastante controlado, porque toda a sua sentença tem que ser bem fundamentada, toda a audiência é pública e submetida ao controle do Ministério Público e advogados, tem o controle de cúpula das corregedorias, mas o grande problema que tivemos é a falta de controle das instâncias superiores”, denuncia.
Nos Tribunais de Justiça dos estados, por exemplo, só podem ser eleitos os três desembargadores mais velhos e somente votam os próprios desembargadores. Juízes de primeira instância e mesmo servidores do Judiciário ficam excluídos do processo. Para o juiz José Henrique Torres, isso implica ausência total de debate político sobre os próprios rumos da Justiça.
“Onde é que devem ser criadas as comarcas, as varas, quais são as necessidades sociais de cada comarca para ampliar serviços? A regionalização da jurisdição é importante? Quais são as prioridades do Judiciário? Nada disso se discute publicamente, fica no âmbito das cúpulas, inclusive as políticas salariais dos funcionários e juízes, os processos de ascensão na carreira etc.”
Um processo eleitoral interno amplo de um Tribunal de Justiça, acredita Torres, já permitiria que esses temas fossem objeto de ampla discussão na sociedade. “Hoje, quando se elege o presidente do TJ em qualquer estado, ninguém sabe qual é a proposta, o projeto dele para o Judiciário, e nós ficamos contando com a eleição de alguém honesto. Mas, o que este cidadão propôs? A eleição propicia debate de projetos de governo, de aplicação da verba, o controle político, a pluralidade de ideias”, argumenta.
STF: modelo mal copiado

No Supremo Tribunal Federal (STF), os processos antidemocráticos se repetem. A Constituição brasileira copiou o modelo estadunidense, em que o presidente da República nomeia o ministro do supremo e o Senado Federal realiza uma sabatina para aprová-lo. O problema é que, diferentemente dos estadunidenses, aqui não há listas públicas de candidatos e todo o processo de escolha, pelo presidente, se reveste de umlobby obscuro, realizado nos subterrâneos do poder. Além disso, a sabatina dos senadores não é precedida de audiências públicas e se convertem em um mero formalismo.
http://www.brasildefato.com.br/node/27257

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O Controle de Nossas Vidas: Liberdade, Soberania e Outras Espécies em Extinção - parte final

Por NOAM CHOMSKY

Adaptação da conferência proferida em 26/02/2000 no Auditório Kiva, em Albuquerque, Novo México, por ocasião do 20º aniversário do IRC (do inglês Inter Hemisferic Research Center, ou Centro de Pesquisas Inter-hemisféricas), do qual Chomsky faz parte no quadro de Diretores, sobre globalização político-econômica.

Às vezes, as lições do passado se reescrevem mais cuidadosamente e em um tom mais brando. Percebe-se hoje uma torrente de autocomplacência quando do nosso êxito em inspirar a onda de democracia nos países dependentes da América Latina. Este tema foi tratado mais cuidadosamente em uma revista acadêmica por um especialista, Thomas Carothers, que escreve, tal como ele mesmo disse, a partir de uma perspectiva interna, já que trabalhou na adminstração Reagan, no programa de fortalecimento da democracia do Departamento de Estado. Carothers crê que Washington tinha boas intenções, mas reconhece que, na prática, a administração Reagan procurou manter uma ordem mínima em sociedades não muito democráticas e evitar mudanças baseadas no populismo e, como seus predecessores, adotou políticas pró-democráticas como meio de retirar a pressão às tentativas de mudança mais radicais, mas inevitavelmente buscou apenas mudanças democráticas de baixo perfil, que não puseram em risco as tradicionais estruturas de poder das quais os EUA têm sido aliados há muito tempo, para se ser mais exato.
O mesmo Carothers se mostra insatisfeito com o resultado, mas descreve o que ele mesmo denominou crítica liberal, débil em seus fundamentos. Tal crítica deixa os velhos debates sem solução por causa de sua perene debilidade, que consiste em não oferecer nenhuma alternativa à política de restauração das estruturas tradicionais de poder, neste caso mediante o terror assassino que deixou cerca de duzentos mil mortos durante os anos 80 e milhões de refugiados, feridos e órfãos em sociedades devastadas. De novo surge a malfadada frase: NÃO HÁ ALTERNATIVA.
O mesmo dilema aparece de outro lado do grupo político. O principal especialista em América Latina do presidente Carter, Robert Pastor, encontra-se distante desta visão pacífica. Explica em um interessante livro porque a administração Carter teve que apoiar o regime corrupto e assassino de Somoza (N.T.: ditador da Nicarágua no período de 1936/1956) até seu amargo final, quando até as tradicionais estruturas de poder deram as costas ao ditador. A administração Carter teve que tentar manter a guarda nacional, formada e treinada pelos EUA, e que estava atacando a população “com tal brutalidade que uma nação normalmente reserva para seus inimigos”, escreve. Isso ocorreu aplicando-se o princípio de que NÃO HÁ ALTERNATIVA. Eis aqui a razão: “os Estados Unidos não queriam controlar a Nicarágua e nem outros países da região, tampouco queria resultados que escapassem ao seu controle. Queria que a Nicarágua atuasse independentemente, exceto se isso afetasse adversamente os interesses dos EUA”. Assim, em outras palavras, os latinoamericanos seriam livres para atuar de acordo com seus desejos, livres para eleger, a não ser que se inclinassem por opções indesejadas, em cujo caso [os EUA] seriam obrigados a restaurar as estruturas tradicionais de poder mediante violência, se necessário. Esta é a face mais progressista e liberal deste grupo político.
Há vozes fora do grupo, não vou negá-lo. Por exemplo, há uma ideia segundo a qual as pessoas deveriam ter direito a participar das decisões que continuamente modificam a essência de seu modo de vida, que não vejam suas esperanças se fecharem cruelmente dentro de uma ordem global, na qual o poder político e financeiro se concentra enquanto que os mercados financeiros ficam a flutuar sem rumo, com devastadoras consequências para os pobres, sem contar a manipulação das eleições e os aspectos negativos considerados completamente irrelevantes pelos poderosos. 
Por que há tal grau de consenso no qual a América Latina, e, por extensão, o mundo, não estão autorizados a fazer uso de sua soberania, ou seja, de tomar o controle de suas vidas? Em nível global, analogamente, é o medo intrínseco da democracia. De fato, esta pergunta é com frequência formulada de modos distintos; em primeiro lugar, no conjunto de documentos internos de que dispomos (estamos em um país livre, dispomos de um amplo registro de documentos sem classificação, alguns deles muito instrutivos). Há um argumento fidedignamente ilustrado como um dos casos mais importantes, numa conferência na qual os EUA, em 1945, passaram a impor o que se denominou Carta Econômica para as Américas, e que constituía uma das pedras angulares do mundo pós-guerra então vigente. A Carta fazia um chamamento para acabar com o nacionalismo econômico (ou seja, a soberania) em todas as suas formas. Os latinoamericanos deveriam evitar o que se denominou desenvolvimento industrial excessivo que competisse com os interesses dos EUA, ainda que pudessem proceder com um desenvolvimento complementar. Desta forma, o Brasil, por exemplo, poderia produzir aço de baixo custo que não interessasse às empresas norteamericanas. Era crucial “proteger nossos recursos”, tal como escreveu George Kennan, ainda que isso precisasse de Estados de polícia.
Washington teve problemas ao impor a Carta. No Departamento de Estado, internamente, havia sido deixado bem claro: os latinoamericanos se equivocaram na sua escolha. Eles fizeram chamamentos para implementar políticas desenhadas para melhorar a distribuição de renda e para aumentar o nível de vida das massas e perceberam que os primeiros beneficiários a ser convencidos do desenvolvimento de recursos de um país são a própria população, não os investidores norteamericanos. Para os EUA, isso era inaceitável, pois o exercício da soberania não se podia permitir. Os latinoamericanos podiam ser livres, mas deveriam acertar na escolha.
Um exemplo disso ocorreu na Guatemala, que teve um breve interlúdio de democracia, intercalado por um golpe de estado [arquitetado pelos EUA]. A explicação um tanto exótica dada aos cidadãos foi de que a intervenção americana foi em defesa daquele país contra os russos. Em âmbito interno, entretanto, o panorama era outro: os programas econômicos e sociais do governo eleito estavam de acordo com as aspirações dos trabalhadores e campesinos, inspiravam lealdade e defendiam os interesses da maior parte dos guatemaltecos mais conscientes. Para “piorar” [na visão americana], o governo da Guatemala tornou-se uma ameaça crescente para a estabilidade de Honduras e El Salvador. A reforma agrária era uma poderosa arma de propaganda, seus amplos programas sociais de ajuda aos trabalhadores e campesinos, em uma luta vitoriosa contra as classes altas e as grandes empresas estrangeiras, tinham grande destaque entre a “vizinhança” centroamericana, onde ocorriam condições similares. E assim a “solução militar” foi implantada durante quarenta anos, deixando a mesma cultura de terror que em seus vizinhos centroamericanos.
O mesmo aconteceu em Cuba, quando os EUA tomaram secretamente a decisão de depor seu governo em 1960, com a mesma argumentação. A explicação foi dada pelo historiador Arthur Schiesinger, que resumiu para o então presidente Kennedy o estudo de uma missão na América Latina em um informe secreto. A ameaça cubana, segundo a missão, consistia na “difusão da ideia de que o próprio Fidel Castro solucionaria seus assuntos internos”. Isso era uma enfermidade que poderia afetar o resto da América Latina, explicou Schiensinger, onde “os pobres e excluídos”, ou seja, a quase totalidade da população, “estimulados pelo exemplo da Revolução Cubana, estão exigindo oportunidades para uma vida decente”. Assim, alguma coisa tinha de ser feita, como: “que tal a conexão soviética?” O informe mencionava: “Enquanto isso, a União Soviética se fez mostrar, concedendo grandes empréstimos para o desenvolvimento e apresentando-se como modelo a ser seguido para se alcançar a modernização em somente uma geração”. Esta era a ameaça. A ameaça de tomar o controle de suas vidas, e devia ser destruída mediante terrorismo e estrangulamento econômico, tal como ainda se faz hoje em dia. Tudo isso é totalmente independente da Guerra Fria. Seguramente hoje, tudo é óbvio, sem mencionar um documento secreto sequer.
As mesmas preocupações do pós-guerra fria levaram ao rápido desmantelamento do breve experimento democrático no Haiti, pelos presidentes Bush e Clinton, como continuação de antigas intervenções.
Estas mesmas preocupações também pairam no fundo de acordos comerciais, como o NAFTA (N.T.: para fins didáticos, NAFTA é acrônimo de North América Free Trade Agreement, ou Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, criado em 1993 e iniciado a partir de um acordo de livre comércio estabelecido entre Estados Unidos, México e Canadá, a fim de fazer frente à União Européia), por exemplo. Vale a pena recordar que, quando da sua implantação, a propaganda pintava um quadro maravilhoso para a classe trabalhadora dos três países-membros. Estas ideias foram discretamente abandonadas pouco depois, quando se percebeu do que se tratava. O que era óbvio desde o princípio foi finalmente aceito. O objetivo era adequar o México às reformas dos anos 80, que vieram a reduzir drasticamente os salários e enriqueceram um pequeno setor de investidores estrangeiros. As preocupações de fundo foram articuladas em uma conferência em Washington sobre estratégias de desenvolvimento na América Latina, em 1990. A advertência foi que “uma democracia aberta colocaria à prova a aposta de emergir um governo mais interessado em desafiar os EUA em aspectos econômicos e nacionalistas”. Frise-se que é a mesma ameaça de 1945, desde então superada, submetendo o México a obrigações derivadas de tratados. Estas mesmas razões permanecem após meio século de torturas e terror, não somente no hemisfério ocidental. Encontram-se também no núcleo destes acordos os direitos dos investidores, que vêm sendo impostos sob essa forma específica de globalização, delineada pela ligação de poder estado-empresas.
Voltemos ao ponto de partida: a tão contestada questão da liberdade e dos direitos, e consequentemente da soberania que disso deriva. Seria [uma questão] inerente às pessoas comuns ou somente àquelas ricas e privilegiadas? Ou inclusive a abstrações como as empresas, o capital, ou os estados? No século XX, a ideia de que tais entidades têm direitos especiais sobre as pessoas foi defendida com ênfase. Os exemplos mais proeminentes são o bolchevismo, o fascismo e a ideia de empresa privada, que constitui uma forma de tirania privatizada. Dois destes sistemas colapsaram. O terceiro está vivo e progredindo sob o manto de NÃO HÁ ALTERNATIVA ao emergente sistema de mercantilismo empresarial de estado disfarçado de eufemismos como globalização ou livre mercado.
Há um século, durante os primeiros estágios do avanço do poder por parte das empresas na América Latina, a discussão sobre estes temas era bastante aberta. Os conservadores denunciaram o processo, descrevendo-o como um “retorno ao feudalismo” e “uma forma de  comunismo”,  o  que  de  certa  forma  não  é  uma  analogia  inapropriada.  As origens intelectuais eram similares, baseadas na ideia neohegeliana (N.T.: retorno ao idealismo romântico, ocorrido na Inglaterra, Itália e América, no final do século XIX e início do século XX, que tem como tese fundamental a identidade entre finito e infinito, a redução do homem e do mundo da experiência ao absoluto) de direito das organizações abertas, juntamente com a crença na necessidade de se ter uma administração centralizada dos sistemas caóticos, como os mercados, que estavam totalmente fora de controle. Vale a pena assinalar a ideia de que, dentro do que hoje se denomina “economia de livre comércio”, uma parte muito grande das transações comerciais (denominada de comércio para despistar), provavelmente 70% destas, de fato se fazem dentro de instituições gerenciadas centralizadamente, entre empresas e entre alianças empresariais. Isso tudo sem se levar em conta outras formas de distorções radicais do mercado.
A crítica conservadora (que nem mais existe) foi acolhida pela ala liberal-progressista no início do século XX , sendo talvez seu defensor mais renomado John Dewey, importante filósofo social norteamericano, cujo trabalho centrou-se em temas voltados à democracia. Sustentou que as formas democráticas têm menor significância quando a vida do país (produção, comércio, meios de comunicação) está dominada por tiranias privadas em um sistema que ele denominou “feudalismo industrial”, e nele a classe trabalhadora está subordinada ao controle dos dirigentes e a política se tornou a “sombra das grandes empresas sobre a sociedade”. Assinalemos que ele estava articulando ideias que eram lugar-comum entre a classe operária alguns anos atrás. O mesmo ocorreu quando do seu chamado à eliminação, à substituição do feudalismo industrial pela democracia industrial autogestionada.
É interessante notar que os intelectuais progressistas que se mostraram a favor do processo de avanço do poder pelas empresas, também estiveram mais ou menos de acordo com esta descrição da situação. Woodrow Wilson, por exemplo, escreveu que “a maior parte dos homens são empregados das grandes empresas”, que atualmente constituem “a maior parte dos negócios do país”, em uma América [diga-se EUA] muito diferente da anterior, que já não é um lugar de empreendedores individuais, de oportunidades individuais e de progressos individuais”; na nova América que surge, “pequenos grupos de homens controlam grandes empresas, ostentam o poder, o controle sobre a riqueza, as oportunidades de negócio do país”, tornando-se “rivais do mesmo governo”, e minando a soberania popular, exercida através de um sistema político democrático.
Observemos ainda que isso não foi escrito em apoio ao processo. Descrevia o processo como talvez desafortunado, mas necessário, alinhando-se em particular com o mundo dos negócios por trás das destrutivas falhas de mercado dos anos anteriores, que convenceram o mundo dos negócios e os intelectuais progressistas de que se deveria administrar os mercados e regular as transações financeiras.
Questões similares estão hoje em voga no cenário internacional. Por exemplo, a reforma da arquitetura financeira e assuntos similares. Há um século, as empresas tinham garantido os direitos das pessoas através de um ativismo judicial radical, uma violação extrema dos princípios liberais clássicos. Foram, dessa forma, liberadas de antigas obrigações de se restringirem a atividades empresariais específicas para as quais tinham autorização. E ainda, em uma importante mudança de rumo, os juízes negociaram seu poder em favor dos acionistas, identificando-se em uma parceria com o controle centralizado  e  com a  pessoa jurídica. Aqueles que conhecem a história do comunismo reconhecerão que este processo é muito similar àquele muito prontamente predito pelos críticos de esquerda, marxistas de esquerda e críticos anarquistas do bolchevismo, gente como Rosa Luxemburgo, que advertiu com bastante antecedência que a ideologia centralizadora deslocaria o poder da classe trabalhadora para o Partido, para o Comitê Central, e logo para o líder máximo, tal como ocorreu pouco depois da conquista do poder estatal em 1917, que destruiu o pouco que restava dos princípios e formas socialistas. Os propagandistas de ambos os lados preferem uma história diferente que lhes caia melhor, mas creio que esta é a correta.
Em anos recentes, as grandes empresas vêm drasticamente reduzindo direitos que vão além dos direitos pessoais. Sob as regras da OIT, a grandes empresas exigem respeito ao direito de tratamento nacional. Isso quer dizer que, por exemplo, a General Motors que estiver operando no México pode exigir ser tratada como uma empresa mexicana. Este direito corresponde somente às pessoas jurídicas, não é um direito das pessoas físicas. Um mexicano não pode ir a Nova Iorque e exigir que a ele se conceda tratamento nacional, mas as grandes empresas podem.
Outras regras exigem que os direitos dos investidores, credores e especuladores devem prevalecer sobre os direitos das pessoas físicas, minando a soberania popular e os direitos democráticos. As grandes empresas, como bem se sabe, adaptam-se e atuam de muitas formas contra a soberania dos estados. Há casos muito interessantes. Por exemplo, na Guatemala, há alguns anos, houve uma tentativa de reduzir a mortalidade infantil regulando-se a comercialização de leite em pó para crianças por parte das multinacionais. As medidas que a Guatemala propôs se adaptavam às diretrizes da Organização Mundial de Saúde e respeitavam os códigos internacionais, mas a Gerber Corporation denunciou tal expropriação e a ameaça de uma queixa à Organização Mundial de Comércio foi suficiente para que a Guatemala retirasse a proposta por temor às medidas de represália por parte dos EUA.
A primeira queixa sob as novas regras da OMC foi formulada contra os EUA pela Venezuela e Brasil, que se queixavam de que as regras da Agência de Proteção Ambiental referentes ao petróleo violavam seus direitos com exportadores. Nessa ocasião, Washington aceitou, supostamente por temor a sanções, mas sou céptico quanto a esta interpretação. Não creio que os Estados Unidos tenham medo de sanções da Venezuela e do Brasil, mas provavelmente a gestão Clinton simplesmente não viu nenhuma razão de peso para defender o meio ambiente e proteger a saúde.
Questões gritantes deste porte aparecem de vez em quando com força. Dezenas de milhões de pessoas em todo mundo morrem de enfermidades evitáveis por culpa de medidas protecionistas escritas nas regras da OMC, que garantem às grandes empresas privadas o direito de fixar preços monopolistas. Tailândia e África do Sul, por exemplo, que dispõem de uma indústria farmacêutica, poderiam produzir medicamentos que salvassem vidas por uma fração do custo do preço monopolístico, mas não se atrevem por medo de sanções comerciais. De fato, em 1998, os EUA chegaram a ameaçar a OMS em retirar suas cotas se ela controlasse os efeitos das condições comerciais sobre a saúde. Estas são ameaças reais.
Isso se chama de direito comercial, mas não têm nada a ver com comércio. Tem a ver com as práticas monopolísticas de fixação de preços reforçadas por medidas protecionistas que se incluem os acordos de livre mercado. Estas medidas estão desenhadas para assegurar os direitos empresariais, que também têm como efeito a redução do crescimento e das inovações, naturalmente. Estas são somente uma parte da variedade de regulamentações introduzidas nestes acordos que freiam o desenvolvimento e o crescimento. O que motiva estas medidas são os direitos dos investidores, não o comércio. O comércio, com certeza, carece de valor em si mesmo. Somente tem valor se aumenta o bem-estar humano.
Em geral, o princípio primordial da OMC e de seus tratados consiste em que a soberania e os direitos democráticos têm que estar subordinados aos direitos dos investidores. Na prática, isso significa que prevalecem os direitos dessas gigantescas pessoas jurídicas: tiranias privadas às quais as pessoas devem subordinar-se. Estas são as razões que conduziram aos notáveis fatos de Seattle. De todos os modos, o conflito entre a soberania popular e o poder privado se pôs em evidência muito mais duramente alguns meses após Seattle, em Montreal, quando foi assinado um ambíguo acordo sobre as bases do chamado “protocolo de biosegurança”. Aí a questão ficou muito clara.
Citando o New York Times, “decidiu-se um compromisso após intensas negociações que frequentemente incitavam o enfrentamento dos EUA contra quase todo o mundo”, por culpa do que se chamou de “princípio da precaução”. Do que se trata isso? O chefe da delegação da União Européia assim descreveu: “os países devem ter a liberdade, o direito soberano de tomar medidas preventivas ante as sementes geneticamente modificadas, micróbios, animais e colheitas que se suspeitem prejudiciais”. Os EUA, sem dúvida, insistiram em aplicar as regras da OMC. Tais regras dizem que uma importação somente pode ser proibida se existir evidência científica [da modificação genética].
Fixemo-nos no objetivo. O que se discute é se as pessoas têm direito a se negar serem objeto de um experimento. Para exemplifica-lo, suponhamos que o departamento de Biologia de uma universidade entrasse aqui e nos dissesse: “Amigos, vocês serão objeto de um experimento que temos que levar adiante. Não sabemos onde isso vai nos levar. Que tal uns eletrodos no cérebro para ver o que acontece? Vocês podem se recusar, mas somente se encontrarem uma evidência científica de que isso vai lhes prejudicar”. Em condições normais, não vamos poder assinalar tal evidência. A pergunta é: vocês têm direito a recusar [o experimento]? Segundo as regras da OMC, não. Vocês são obrigados a ser objeto do estudo. É um modo daquilo que Edward Hermán chama “soberania do produtor”. O produtor reina, então são os consumidores que devem defender-se de alguma forma. Em nível interno, isso funciona, tal como Hermán aponta. Não é responsabilidade, ele diz, nem da indústria química nem dos fabricantes de pesticidas demonstrar, provar, que o que estão fazendo ao meio ambiente é seguro. É responsabilidade do cidadão demonstrar cientificamente que não é seguro, e tem que faze-lo através de agências públicas de pouca credibilidade, suscetíveis a deixar-se influir ante as pressões da indústria.
Esta foi a questão que se discutiu em Montreal, e um tipo de acordo ambíguo foi acertado. Deixemos claro que não se citou nenhum dos princípios, e isso pode se perceber por quem esteve presente.  Os EUA estavam sozinhos em um lado da mesa, a eles se uniram alguns outros países com interesses em biotecnologia e agroexportações de alta tecnologia, e do outro lado estavam todos os demais, aqueles que não tinham esperança de tirar qualquer proveito do experimento. Esta era a situação, e isso nos diz claramente quais princípios foram discutidos. Por razões similares, a União Européia favorece altas taxas sobre os produtos agrícolas, tal como faziam os EUA a cerca de quarenta anos (agora não mais, não porque os princípios tenham mudado, mas porque o poder mudou).
Há um princípio não escrito que diz que os poderosos e privilegiados devem ter capacidade de fazer o que quiserem. O corolário é que a soberania e os direitos democráticos das pessoas, nesse caso, devem passar de refratários a objeto de experimentos quando as grandes empresas dos Estados Unidos puderem tirar vantagem do experimento. A invocação das regras da OMC por parte dos EUA é muito natural, já que codificam esse princípio, e isso é fundamental.
Estes temas, ainda que sejam muito reais e afetem a um grande número de pessoas no mundo, são de fato secundários diante de outras modalidades de redução da soberania em favor do poder privado. Provavelmente, a mais importante [redução da soberania] foi o desmantelamento do sistema de Bretton Woods no princípio dos anos 70 por parte dos EUA, Reino Unido e outros. Tal sistema foi desenhado pelos EUA e Reino Unido nos anos 1940, anos de assombroso apoio popular aos programas de bem-estar social e a medidas democráticas radicais. Em parte por isso, o sistema de Bretton Woods, em meados dos anos 1940, regulava as taxas de intercâmbio e permitia controlar os fluxos de capital. A ideia era evitar a especulação perniciosa em grande escala e restringir a fuga de capitais. Os motivos eram claros e se articularam claramente. Os fluxos livres de capital criam o que se chamou em certas ocasiões de “parlamento virtual” do capital global, que pode exercer poder de veto sobre as políticas governamentais que considere irracionais. Isso inclui os direitos trabalhistas, programas educativos ou de saúde ou políticas públicas de estímulo da economia ou, de fato, qualquer coisa que ajude às pessoas e não benefícios (sendo portanto, irracional em um sentido técnico).
O sistema de Bretton Woods funcionou por mais ou menos 25 anos. Época que foi qualificada por muitos economistas como “anos de ouro” do capitalismo moderno (capitalismo moderno de Estado, propriamente dito). Foi um período que durou até os anos 1970 mais ou menos, de rápido crescimento – sem precedentes históricos – da economia, do comércio, da produtividade, do investimento de capital, de extensão do estado de bem-estar, uma idade do ouro. Tudo veio abaixo no princípio dos anos 1970. O sistema de Bretton Woods foi desmantelado com a liberalização dos mercados financeiros e a implementação de tipos de câmbio flutuantes.
O período seguinte foi descrito como “anos de chumbo”. Houve uma enorme explosão de capital especulativo a prazo muito curto, que afogava a economia produtiva. Houve uma deteriorização notável em todas e cada uma das grandezas econômicas: crescimento econômico consideravelmente mais lento, crescimento da produtividade mais lento, assim como do investimento de capital, taxas de interesse muito mais altas (que freiam o crescimento), maior volatilidade dos mercados e crises financeiras. Tudo isso tem efeitos muito duros sobre as pessoas, inclusive nos países ricos: estancamento ou declínio dos salários, jornadas de trabalho muito mais longas (fato particularmente notável nos EUA) e corte dos serviços. A título de exemplo, nesta economia da qual se fala no mundo todo, a média de renda familiar retrocedeu à de 1989, que está bem abaixo da dos anos 1970. Tem sido também uma época de desmantelamento das medidas social-democratas que tanto contribuíram para a melhoria do bem-estar humano. Em geral, a nova ordem internacional imposta ampliou o poder de veto para o “parlamento virtual” dos investidores de capital privado, levando-nos a uma queda significativa da democracia e dos direitos de soberania e a um sucateamento da saúde pública.
Do mesmo modo que estes efeitos se deixam notar em sociedades ricas, são catastróficos nas sociedades mais pobres.
São efeitos que cruzam transversalmente a sociedade, não que tal sociedade tenha enriquecido e outra tenha empobrecido. As medidas mais significativas compreendem setores globais da população. Assim, por exemplo, tomando as análises recentes do Banco Mundial, se tomarmos 5% da população mais rica e compararmos com os 5% mais pobres, a taxa era de 78 para 1 em 1988 e 114 para 1 em 1993 (sendo este o último ano de que se dispõem os dados, atualmente sem dúvida mais altos). Os mesmos dados demonstram que os 1% mais ricos tem as mesmas rendas que os 57% mais pobres (dois bilhões e meio de pessoas).
Para os países ricos, está claro. Um renomado economista, Barry Eichengreen, em sua reconhecida História do Sistema Monetário Internacional, assinalou, assim como várias outras pessoas, que a atual fase de globalização é, a grosso modo, bastante similar à situação anterior à Primeira Guerra Mundial. Sem dúvida há diferenças. Uma diferença essencial, ele explica, é que nessa época, a política governamental não estava “politizada” pelo sufrágio universal masculino e pelo surgimento do sindicalismo e dos partidos de trabalhadores. Em conseqüência, os graves custos humanos da ortodoxia financeira imposta pelo parlamento virtual podiam ser transferidos para a população em geral. Mas esse luxo, em 1945, já não esteve ao alcance na era mais democrática de Bretton Woods, dessa maneira, os “limites da mobilidade do capital foram substituídos por limites à democracia como uma fonte de isolamento das pressões do mercado”.
                  Há uma lógica nisso tudo. É natural que o desmantelamento da ordem econômica do pós-guerra venha acompanhado de um ataque à democracia substantiva (liberdade, soberania popular e direitos humanos), sob o slogan NÃO HÁ ALTERNATIVA, um tipo de zombaria grotesca do marxismo vulgar. O slogan, é sempre bom dizer, é uma fraude. A particular ordem socioeconômica imposta é o resultado de decisões humanas em instituições humanas. As decisões podem modificar-se, as instituições podem modificar-se e, caso necessário, desmontar-se e substituir-se, tal como as pessoas honestas e valentes vêm fazendo ao longo da história.

Avram Noam Chomsky (Filadélfia, 7 de dezembro de 1928) é um linguista, filósofo e ativista político estadunidense.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O Controle de Nossas Vidas: Liberdade, Soberania e Outras Espécies em Extinção - 1ª parte

Por NOAM CHOMSKY

Adaptação da conferência proferida em 26/02/2000 no Auditório Kiva, em Albuquerque, Novo México, por ocasião do 20º aniversário do IRC (do inglês Inter Hemisferic Research Center, ou Centro de Pesquisas Inter-hemisféricas), do qual Chomsky faz parte no quadro de Diretores, sobre globalização político-econômica. 


Não há exagero algum quando se diz que os esforços envidados a controlar nossas vidas são algo recorrente na história do mundo, com ênfase especial nos últimos séculos, cenário de grandes mudanças nas relações humanas e na ordem mundial. Por se tratar de uma questão muito vasta, buscarei suas manifestações atuais e suas raízes, onde será delineado um quadro a partir de uma perspectiva global, que sem sombra de dúvida é o cenário de onde elas emergem.
No ano passado (N.T.: III Conferência Ministerial da OMC em Seattle - 30 de novembro e 03 de dezembro de 1999 -, em que ocorreram uma série de manifestações no primeiro dia do evento, inclusive com intervenção policial. Foi considerada um fracasso devido, principalmente, às questões divergentes sobre subsídios agrícolas e produtos transgênicos. Participaram das manifestações milhares de pessoas de diferentes setores da sociedade, que vinham desde ecologistas, anarquistas, trabalhadores sindicalizados, estudantes, pacifistas e até humanistas e tinham motivações e perspectivas políticas distintas), as questões globais foram vistas em termos vinculados à noção de soberania, isto é, ao direito das entidades políticas de seguir seu próprio curso, o que pode ser inofensivo ou nefasto, e agir sem interferências externas. No mundo real, as interferências se produzem por parte de poderes extremamente concentrados, cuja sede está nos EUA. Este poder global concentrado tem vários nomes, dependendo de qual aspecto de soberania e liberdade se tenha em mente. Assim, às vezes se chama “consenso de Washington”, ou “complexo Wall Street-Tesouro Nacional”, ou OTAN, ou “burocracia econômica internacional (OMC, Banco Mundial e FMI)”, ou G-7 (os países ricos ocidentais e industriais) ou G-3, ou melhor, G-1. A partir de uma perspectiva mais profunda, poderíamos descrever estes poderes como um grupo de grandes corporações – constantemente unidas por alianças estratégicas que administram uma economia global que constitui, de fato, uma espécie de mercantilismo corporativo que tende ao oligopólio na maioria dos setores, abertamente aliadas ao poder estatal em sua tarefa de socialização de risco e custo e para a subjugação de elementos inflexíveis.
Além disso, as questões sobre soberania surgiram em dois campos. Um tem a ver com o direito soberano de estar a salvo de uma intervenção militar. Neste caso, as questões surgem dentro de uma ordem mundial baseada em estados soberanos. Em segundo lugar aparece a questão dos direitos de soberania a partir do ponto de vista da intervenção socioeconômica. Estes temas surgem em um mundo dominado por empresas multinacionais, especialmente instituições financeiras e por um esquema coeso engendrado para servir aos seus interesses (por exemplo, alguns destes assuntos surgiram subitamente em Seattle, em novembro passado) - vide 1ª N.T.
No que se refere às intervenções militares, dois casos tiveram significado particular e chamaram atenção: Timor Leste (N.T.: conflito separatista ocorrido na Indonésia em 1999, com intervenção da ONU) e Kosovo (N.T.: conflito separatista ocorrido na ex-Iugoslávia em 1999, com intervenção da OTAN). Muito poderia ser dito sobre isso, mas vou tratar apenas sobre a segunda questão e vou me centrar nela, ou seja, em soberania, liberdade e direitos humanos. Estes são os temas que despontam no terreno socioeconômico.
Para começar, cabe fazer um comentário geral: a soberania, em si mesma, não é um valor. Torna-se um valor à medida em que relaciona a liberdade e os direitos, seja potencializando-os ou debilitando-os.
Quando se fala em liberdade e direitos, o que nos vem à mente é o conceito de seres humanos, isto é, pessoas de físicas, não abstrações ou instituições legais como empresas, estados, ou capital. Se tais entidades têm algum direito, o que é passível de discussão, deve ser derivado dos direitos das pessoas. Este é o núcleo da doutrina liberal, e a ela se opõem os setores mais ricos e privilegiados, e assim é tanto no campo político como no socioeconômico.
No campo da política, o slogan é “soberania popular em um governo do povo, pelo povo e para o povo”, mas seu funcionamento difere bastante do slogan, pois consiste em considerar o povo como um inimigo perigoso, que deve ser controlado para o seu próprio bem. Estas considerações nos remetem de volta no tempo, até as primeiras revoluções democráticas modernas, no século XVII na Inglaterra e um século mais tarde nas colônias norteamericanas. Em ambos os casos, os democratas foram vencidos quase todas as vezes. No século XVII, na Inglaterra, grande parte da população não queria ser dominada nem pelo rei e nem pelo parlamento. Recordemos que são estes os dois elementos que contendem no uso da guerra civil mas, como na maioria das guerras civis, uma boa parte da população não queria nem rei nem parlamento. Tal como se lia em seus panfletos, queriam ser governados “por gente do campo como nós, que conhecem nossas necessidades, não por cavaleiros e nobres que nos impõem leis, que são eleitos através medo, nos oprimem e não conhecem os males da população”.
Estas mesmas ideias animaram os fazendeiros rebeldes das colônias um século mais tarde. Mas o sistema constitucional foi desenhado de um modo bem diferente. Foi construído para bloquear tal heresia. O objetivo era “proteger a minoria opulenta frente à maioria”, e assegurar-se de que “o país seja governado por aqueles que o possuem.” Estas são as palavras do líder fazendeiro James Madison, e do presidente do Congresso Continental e primeiro juiz do Tribunal Supremo, John Jay. Tal concepção prevaleceu, mas os conflitos continuaram. Adotaram-se novas formas, e apesar de tudo, a doutrina elitista ainda continua intocável em sua essência.
Já no século XX, a população foi denominada “ignorante e mal educada, mete-se em tudo”, seu papel é de mero espectador e não de participante, exceto durante estas oportunidades periódicas nas quais há que se eleger entre os responsáveis pelo poder, chamadas de eleições. Durante as eleições, a opinião é considerada essencialmente irrelevante se entrar em conflito com as demandas da minoria opulenta do país.
Um exemplo contundente tem a ver com a ordem econômica internacional, com os chamados acordos comerciais. A população, em geral, se opõe abertamente à maior parte destes, da mesma forma que evidenciam as pesquisas, mas estas questões não aparecem durante as eleições. Não aparecem porque os centros de poder, a minoria opulenta, permanece unida ante a defesa da institucionalização de uma determinada ordem socioeconômica. Desta forma, estas questões não vêm à tona. O que se discute não os preocupa excessivamente. Isso é normal, e faz sentido a partir da relevância de que o papel do cidadão, como ignorante e mal-educado que se mete em tudo, é simplesmente o de telespectador. Se os cidadãos, como acontece com frequência, tentam organizar-se e meter-se na política para participar, para pressionar em favor de suas preocupações, então, surge um problema. Isso não é democracia, é a chamada crise de democracia e deve ser superada.
             Estas são as falas dos liberais, da ala progressista do grupo ideológico moderno, mas os princípios são, a grosso modo, os mesmos. Os últimos 25 anos têm sido um destes períodos, que chegam de vez em quando, onde uma importante campanha é organizada para tentar superar o que se percebe como crise da democracia e para reduzir o cidadão a seu papel apático, passivo e de espectador obediente. A política é assim.
No campo socioeconômico, ocorrem coisas similares. Desenvolvem-se, paralelamente, conflitos parecidos durante muito tempo. Nos primeiros dias da Revolução Industrial nos Estados Unidos, na Nova Inglaterra, há 150 anos, havia uma imprensa trabalhadora muito ativa e independente, dirigida por jovens mulheres procedentes das fazendas ou das oficinas de artesanato dos povoados. Condenavam a degradação e subordinação ao novo sistema industrial emergente, que obrigava as pessoas a vender-se para sobreviver.
Vale a pena lembrar que o salário foi considerado não muito diferente da escravidão já nessa época, e não somente pelos operários, mas também por grande parte da corrente intelectual dominante como, por exemplo, Abraham Lincoln, ou o Partido Republicano, ou ainda os editoriais do New York Times.
A classe trabalhadora se opôs à retomada do que foi denominado de privilégios monárquicos no sistema industrial e reclamou que aqueles que trabalham nas fábricas deviam possuí-las, evocando o espírito do republicanismo. Denunciaram o que foi chamado de novo espírito da época: enriquecer e esquecer-se de tudo menos de si mesmo, uma visão rebaixada e degradante da vida humana que deve ser embutida no pensamento das pessoas sem economizar esforços, o que de fato vem ocorrendo há séculos.
Durante o século XX, a literatura sobre a indústria da comunicação pública nos proporcionou uma rica série de instruções sobre como implementar o novo espírito da época mediante a criação de necessidades, ou melhor, através da manipulação da opinião pública - do mesmo modo que um exército dá ordens aos seus soldados - e induzindo a uma filosofia de futilidade e a uma carência de objetivos na vida, concentrando a atenção humana nas coisas mais superficiais, em grande parte referentes ao consumo da moda. Se isto for possível, então as pessoas aceitarão sua vida insignificante e subordinada, apropriada para elas, e assim deixarão de lado as ideias subversivas, de tomar controle de suas vidas.
Este é um projeto de engenharia social de envergadura. Tem sido assim há séculos, mas intensificou-se e tomou alcance maior desde o século passado. Há muitas maneiras de implementá-lo. Algumas já mencionei e seria redundante ilustrar. Outras incluem minar a seguridade, e ainda podemos encontrar várias outras maneiras. Uma maneira de minar a seguridade é ameaçar com a perda de emprego, que é uma das maiores consequências e, diga-se de passagem, um dos objetivos dos malfadados acordos comerciais (sublinho os malfadados porque não são acordos de livre mercado, já que contêm fortes elementos antimercado, de natureza variável e em sentido estrito, não são acordos, já que preocupam às pessoas e em grande parte se opõem a eles). Uma consequência desses projetos é facilitar a ameaça (que não tem por que ser real, na verdade, só a ameaça já basta) de perda de emprego, o que constitui uma boa maneira de disciplinar as pessoas minando sua seguridade.
Outro estratagema é a promoção do que se chama de flexibilidade do mercado de trabalho. Cito o Banco Mundial, que expõe a questão sem dissimular. Diz: “o incremento da flexibilidade no mercado de trabalho, apesar de sua má fama, e que se tem adotado como um eufemismo de diminuição de salários e de dispensa de trabalhadores” (que é exatamente o que é) “é essencial em todas as regiões do mundo (…) As reformas mais importantes implicam no levantamento de restrições à mobilidade trabalhista e à flexibilidade salarial, assim como desvincular os serviços sociais dos contratos trabalhistas”. Isto significa rebaixar os benefícios e os direitos que se conquistaram por várias gerações a duras penas. Quando se fala em se rebaixar as restrições à flexibilidade salarial, significa flexibilidade para baixo, não para cima. Quando se fala de mobilidade laboral não se faz referência ao direito das pessoas em ir e vir, tal como sempre se reclamou desde a teoria do livre mercado, desde Adam Smith, mas faz referência ao direito de se despedir trabalhadores quando for conveniente à atual versão da globalização baseada no fato de que os investidores, o capital e as empresas devem ter liberdade de movimento, mas não é assim com as pessoas, já que seus direitos são secundários, anedóticos.
Essas reformas essenciais, tal como denomina o Banco Mundial, são impostas em grande parte do mundo como condições para cair nas boas graças tanto do Banco Mundial como do FMI. Nos países industrializados, são introduzidas de outro modo, e também têm se revelado efetivas.
Alan Greensspan (economista norteamericano) declarou ante o Congresso que a maior insegurança dos trabalhadores tem constituído um fator importante do que se denomina o conto de fadas da economia. Mantém a inflação baixa, já que os trabalhadores têm medo de reclamar por melhores salários e benefícios. Isto se vê mais claramente se examinarmos as estatísticas: nos últimos 25 anos, período de retração da crise da democracia, os salários se estancaram ou decaíram para a maior parte da força de trabalho, para os trabalhadores sem qualificação, e as horas de trabalho aumentaram significativamente. Isso é divulgado, certamente, na imprensa do setor econômico, que o descreve como um desenvolvimento desejado de importância transcendente, com trabalhadores obrigados a abandonar seus “luxuosos estilos de vida”, enquanto que os benefícios empresariais são superlativos e estupendos (Wall Street Journal, Business Week e Fortune).
Nos países dependentes, as medidas são menos delicadas. Uma delas é a chamada crise da dívida, atribuída aos programas do Banco Mundial e ao FMI, e também ao fato de que a parte rica do Terceiro Mundo está, em sua maioria, isenta de obrigações sociais. Isso é indubitavelmente certo na América Latina e constitui um dos seus principais problemas. A crise da dívida é real, mas vamos um pouco além. De maneira alguma é um simples fato econômico. Trata-se, em um sentido amplo, de destruição ideológica. O que se costuma chamar de dívida poderia ser superado facilmente de maneiras diversas e elementares. Uma dessas maneiras seria revisar o princípio capitalista de que o que devedor tem que pagar e o credor tem de assumir o risco. Assim, por exemplo, se alguém me empresta dinheiro e eu o envio ao meu banco em Zurique e compro um Mercedes, e logo esse alguém vem e me pede o dinheiro de volta, é óbvio que não posso lhe dizer: “Cobre do meu vizinho.” Ainda que esse alguém queira assumir o risco do empréstimo, é claro que não se pode dizer: “meu vizinho pagará por mim”.
Sem dúvida, nas organizações internacionais funciona assim. A dívida não será paga por aqueles que pediram emprestado (os ditadores militares e seus comparsas, os ricos e privilegiados que apoiamos em sociedades grandemente autoritárias), estes não têm de pagar. Por exemplo, vejamos o caso da Indonésia, cuja dívida atual é de 140% do PIB. O dinheiro foi concedido à ditadura militar e aos seus “protegidos”, chegando a algumas centenas de pessoas, e será pago pela população mediante duríssimas medidas de austeridade. Os credores estão protegidos do risco em sua maior parte. Utilizam o montante resultante do repasse do risco à sociedade mediante diversas estratégias de socialização dos custos, transferindo-o aos contribuintes do Norte (EUA). Esta é uma das funções do FMI.
Na América Latina acontece o mesmo. A enorme dívida latinoamericana não se considera algo muito diferente da fuga de capitais da América Latina, o que sugere uma maneira simples de se tratar a dívida (ou, ao menos, de uma grande parte dela), sempre e quando alguém creia no princípio capitalista anterior, que resulta inaceitável, já que põe em evidência as pessoas equivocadas, a minoria opulenta.
Há outros modos de se eliminar a dívida e também se deixa entrever que se trata de uma construção ideológica. Outro método, aparte do princípio capitalista, é o princípio do direito internacional introduzido pelos Estados Unidos quando, segundo os livros de história, liberou Cuba, ou seja, quando se lhe conquistou antes de sua independência da Espanha em 1898. Uma vez livre, os Estados Unidos cancelaram sua dívida com a Espanha, com o argumento razoável de que a dívida foi imposta sem o consentimento da população, que foi imposta sob condições coercitivas. Esse princípio entrou no direito internacional basicamente pela intervenção dos EUA. Chama-se princípio da dívida odiosa. A dívida odiosa é inválida, não deve ser paga. Isso foi reconhecido pelo diretor executivo norteamericano do FMI: se este princípio estivesse ao alcance das “vítimas”, e não somente dos ricos, a dívida do Terceiro Mundo se evaporaria em sua maior parte, já que é inválida, é uma dívida odiosa. Mas isto não ocorrerá. A dívida odiosa é uma arma muito poderosa de controle que não se pode abandonar. Para aproximadamente metade da população mundial, neste exato momento e graças a este método, suas políticas econômicas nacionais são dirigidas pelos burocratas de Washington.
Ademais, metade da população mundial está sujeita a sanções unilaterais dos EUA, o que constitui uma forma de coação econômica que, de novo, mina severamente a soberania e vem sendo tratada repetidamente pelas Nações Unidas como inaceitável. Mas, ao que parece, isso não vem ao caso.
Entre os países ricos, há outras maneiras de se chegar a resultados similares. Mas antes disso, há algo que não poderíamos esquecer: as estratégias utilizadas nos países dependentes podem ser extremamente brutais. Os jesuítas organizaram uma conferência em San Salvador há alguns anos. Foi falado sobre o terrorismo de estado dos anos 80 e de sua continuidade através das políticas socioeconômicas impostas pelos vencedores. A conferência abordou ainda o que se denominou cultura residual do terror, que vem logo após a queda do terror de fato e tem como efeito a domesticação das expectativas da maioria, afugentando qualquer ideia de alternativa às exigências dos poderosos. Parece que aprenderam a lição: NÃO HÁ ALTERNATIVA (N.T.: TINA, acrônimo da frase em inglês There Is No Alternative), tal como rezava a cruel frase de Margareth Tatcher. A ideia de que NÃO HÁ ALTERNATIVA é o slogan habitual da versão empresarial da globalização. Nos países dependentes, os grandes êxitos das operações terroristas consistem em destruir as esperanças que haviam surgido na América Latina e Central durante os anos 1970, das mãos de organizações populares da região e também da Igreja, cuja “opção pelos pobres” lhe custou severos castigos por haver se afastado do “bom caminho”. (continua)

Avram Noam Chomsky (Filadélfia, 7 de dezembro de 1928) é um linguista, filósofo e ativista político estadunidense.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A “Operação Banqueiro” e como se uniram as duas maiores fábricas de dossiês da República





Livro de jornalista esmiuça a criação de “fábricas de dossiês”, as quais o poder do Estado foi utilizado por interesses próprios e ganhos políticos e, através da mídia e do judiciário, atacou inimigos e protegeu aliados

Por Luís Nassif, em seu blog

O livro “Operação Banqueiro”, do jornalista Rubens Valente, caminha para se tornar um clássico na devassa das relações Estado-lobbies privados, especialmente o capítulo “As ameaças do grande credor”, que descreve a correspondência do super-lobista Roberto Amaral com Daniel Dantas, o banqueiro do Opportunity, reportando e-mails e conversas que manteve em 2002 com o então presidente Fernando Henrique Cardoso e o candidato José Serra.
As mensagens constam de dez CDs remetidos à Procuradoria Geral da República em Brasília – e que permaneceram na gaveta do PGR Roberto Gurgel, que não tomou providência em relação ao seu conteúdo.


Nas mensagens a FHC e Serra, Amaral insiste para que se impeça a justiça de Cayman de entregar a relação de contas de brasileiros nos fundos do Opportunity. Amaral acenava com os riscos de se abrir os precedentes e, depois, o Ministério Público Federal investir sobre as contas do Banco Matrix – de propriedade de André Lara Rezende e Luiz Carlos Mendonça de Barros, figuras ativas no processo de privatização. E, principalmente, sobre as contas de Ricardo Sérgio, colocado por Serra na vice-presidência internacional do Banco do Brasil.
Parte das mensagens havia sido divulgada em 2011 pela revista Época (http://tinyurl.com/l3crc72).
São relevantes para demonstrar que o Opportunity tornou-se uma questão de Estado, com envolvimento direto de FHC (tratado como “pessoa” nos emails entre Amaral e Dantas), José Serra (alcunhado de “Niger”) e Andréa Matarazzo (tratado como “Conde”). Dantas era alcunhado de “grande credor”.
Mostra também como Gilmar Mendes, então na AGU (Advocacia Geral da União), foi acionado em questões que interessavam ao Opportunity junto à ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações).
Não apenas por isso, mas pelo levantamento minucioso de decisões do STF (Supremo Tribunal Federal), das pressões sobre procuradores e policiais, da atividade pró-Dantas de advogados ligados ao PT, trata-se de obra definitiva para se entender os meandros da estratégia que resultou na anulação da Operação Satiagraha.
Em entrevista a Sérgio Lyrio, da Carta Capital, Valente afirma que “sem Mendes na presidência do Supremo, nem todo o prestígio de Dantas teria sido capaz de reverter o jogo de forma tão espetacular”.
É mais do que isso. Nem Mendes nem Dantas individualmente teriam o poder de influenciar os quatro grandes grupos de mídia. O único personagem com capacidade de unir todas as pontas em torno de uma bandeira maior – a conquista da presidência da República – era José Serra. É a partir dele que deve ser puxado o fio da meada.
Satiagraha foi a Primeira Guerra Mundial da mídia, um ensaio para as guerras seguintes, nas eleições de 2010 em diante.
As fábricas de dossiês
Valente não aborda o papel da mídia e a maneira como eram construídos os dossiês. Os dados abaixo são de levantamentos antigos do Blog, aos quais se somam algumas revelações adicionais do livro.
Na série “O caso de Veja” havia mostrado a maneira como Dantas e a Veja se valiam de dossiês para fuzilar não apenas adversários políticos, mas magistrados e jornalistas  que ousassem investir contra os interesses do banqueiro. É a mesma tecnologia – de dossiês e assassinatos de reputação, com ampla repercussão midiática –  reproduzida no modo Cachoeira-Veja de atuar e, antes, no modo Serra exemplificado no caso Lunus.

Dois capítulos da série merecem atenção especial:

O caso Edson Vidigal - (): Desembargador do STJ, Vidigal confirmou uma sentença contra Dantas. Veja fuzilou-o em uma matéria com acusações dúbias. A matéria informava que as acusações mereceram uma representação contra ele no CNJ. Vai-se conferir a representação, e ela tomava como base a própria reportagem da Veja. Ou seja, a revista noticiou a representação mesmo antes da denúncia que serviu de base para ela ser publicada.

O caso Márcia Cunha - uma juíza séria, do Rio, foi fuzilada pela Folha por contrariar interesses de Dantas e ter recusado proposta de suborno. Tempos depois, constatou-se sua inocência e comprovou-se a tentativa de suborno.
O livro de Valente passa ao largo da atuação da mídia, mas permite colocar as últimas pedras do quebra cabeça para entender as sementes do modelo de manipulação visando resultados políticos e jurídicos, e que se torna padrão na atuação de Dantas, de Serra (com o ápice do caso da “bolinha de papel”) e de Cachoeira.
O infográfico abaixo mostra os principais atores desse período de uso intensivo de factoides, que se inicia com o caso Lunus, em 2002, e se encerra (pelo menos nesta fase) com dois episódios simultâneos: a CPI de Carlinhos Cachoeira e o julgamento da AP 470.
Todos os personagens citados estiveram envolvidos na indústria de dossiês.
Ao longo do artigo, essas ligações serão melhor esmiuçadas. Não fazem parte do livro, que fornece apenas algumas peças do quebra-cabeças, como o fato de até 2002 Serra considerar Dantas homem de ACM. Embora desde alguns anos antes Dantas já tivesse se tornado sócio de Verônica Serra.




Sobre a tecnologia de manipulação da Justiça

Na Satiagraha foi colocada em prática a tecnologia midiática que tornou-se padrão nos anos seguintes, até o ápice no julgamento da AP 470.
Consistia nas seguintes etapas:
ETAPA 1 - O Ministro Gilmar Mendes criava um fato político, verdadeiro ou falso, visando provocar comoção no STF e na opinião pública. Em geral eram fatos baseados exclusivamente nas afirmações dele, sem nenhuma testemunha que os corroborasse.
ETAPA 2 - Veja transformava o fato em reportagem de capa, valendo-se do padrão que consagrou nas parcerias com Carlinhos Cachoeira.
ETAPA 3 - No momento seguinte, o fato era repercutido pelo Jornal Nacional e demais grupos integrantes do cartel jornalístico.
ETAPA 4 - com base na repercussão, parlamentares ou autoridades judiciais aliadas da revista solicitavam providências que acabavam se completando devido ao clamor da mídia.
O clamor da mídia, a criação da figura do inimigo externo, o macartismo colocado em prática forneciam a blindagem para as ações de outros personagens, como os ex-Procuradores Gerais da República Antonio Fernando de Souza e Roberto Gurgel, além de Ministros do STF.
O piloto desse tipo de operação foi o caso Lunus, que inviabilizou a candidatura de Roseana Sarney à presidência da República. E a continuação foi a campanha de 2010, com a fabricação infindável de dossiês falsos repercutidos pela velha mídia.
A montagem da central de dossiês
É na operação Lunus que estão as pistas para se chegar ao início do nosso modelo. Ele nasce com a nomeação de José Serra para Ministro da Saúde. Através da CEME (Central de Medicamentos), Serra monta o embrião da sua indústria de dossiês, contratando três especialistas em trabalhos de inteligência: o subprocurador da República José Roberto Santoro, o policial federal Marcelo Itagiba e o ex-militar Enio Fonteles, dono da Fence Consultoria Empresarial, especializada em arapongagem.
A primeira grande ação do grupo foi a Operação Lunus. Usou-se o poder de Estado para tal.
Do lado do Ministério Público, Santoro imiscuiu-se em um inquérito que não era dele e coordenou a ação cujo titular era o procurador Mário Lúcio Avellar. Policiais federais montaram campana, identificaram o dia e a hora em que a Lunus – de Jorge Murad – receberia contribuições e montaram um flagrante acompanhado de uma equipe do Jornal Nacional. Para melhorar a cena, arrumou-se o dinheiro em pacotes de grande visibilidade, facilitando o impacto televisivo.
Essa mesma jogada – de empilhar o dinheiro para dar impacto televisivo – foi repetida no caso dos “aloprados”, em 2006, entre um delegado da Polícia Federal e o Jornal Nacional.

A cena da Lunus (esquerda) e dos aloprados (direita)


Houve indícios de envolvimento direto da presidência da República com a operação Lunus. Da própria empresa foi enviado um telex para o Palácio do Planalto dando conta do sucesso da operação.
A mídia ainda não estava fechada com Serra e a cobertura da época desvendou rapidamente a jogada.
A Fence recebia por varredura efetuada. Segundo reportagem da revista Veja, de 20.03.2002, de primeiro de janeiro a 28 de fevereiro de 2002, período que antecedeu a Operação Lunus, a Fence recebeu do Ministério R$ 210 mil. Para tanto, necessitaria ter realizado 840 varreduras em menos de 60 dias, ou quase 14 varreduras por dia (http://glurl.co/dti).
É evidente que o pagamento não se devia a varreduras internas no Ministério.
Depois que tomou posse como governador, Serra contratou a Fence para monitorar todos os telefonemas do estado que passavam pela Prodesp (empresa de processamento de dados do estado) e “outras de seu interesse”.
Reportagem da Folha, de 17 de março de 2002, dizia o seguinte sobre Santoro e Itagiba (http://tinyurl.com/q27uasd): “O presidenciável tucano, senador José Serra (SP), conseguiu reunir sob as asas de aliados as duas principais investigações em curso que podem prejudicar sua candidatura ou implodir a campanha de seus adversários. São eles o subprocurador da República José Roberto Santoro e o delegado de Polícia Federal Marcelo Itagiba”.
A reportagem mostrava como Santoro coordenou informalmente o pedido de busca e apreensão de documentos na Lunus. E como Itagiba se valeu do cargo de superintendente regional da PF para afastar um delegado que investigava doações de campanha a Serra.
Segundo a matéria, era antiga a parceria de Santoro e Itagiba:
“José Roberto Santoro e Marcelo Itagiba fazem parte da tropa de choque de Serra no aparato policial e de investigação. Os dois já estiveram juntos antes. Em 2000, enquanto Santoro promovia ações judiciais de interesse do então ministro José Serra na área da saúde, Itagiba coordenava uma equipe instalada na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para investigar laboratórios”.

A aproximação com Cachoeira

O esquema Serra gerou dossiês contra competidores internos no PSDB – Paulo Renato de Souza, Tasso Jereissatti e Aécio Neves.
Já no governo Lula, o passo seguinte do grupo  foi na operação Valdomiro Diniz, primeiro petardo contra o então Ministro-Chefe da Casa Civil José Dirceu.
Foi divulgado vídeo de 2002, no qual Valdomiro, servindo no governo Benedita da Silva, pedia propina a Carlinhos Cachoeira.  Quando o vídeo vazou, Valdomiro trabalhava como assessor da Casa Civil. A bomba acabou explodindo no colo de Dirceu, que pagou o preço de não ter ouvido assessores sobre o passado de Valdomiro.
Assim que o caso explodiu, Santoro – e o procurador Marcelo Serra Azul – reuniram-se com Cachoeira de madrugada, no próprio prédio do Ministério Público Federal, em Brasília, para obter a íntegra da fita em troca de proteção jurídica. Santoro já era subprocurador geral, sem nenhuma relação com o episódio.
A conversa  foi parar no Jornal Nacional, que precedeu a divulgação com um enorme editorial para justificar porque não abriu mão do furo.
No grampo, Santoro pede pressa a Carlinhos Cachoeira porque já amanhecia e o PGR Cláudio Fonteles poderia chegar e acusa-lo de estar armando para prejudicar o Chefe da Casa Civil José Dirceu.
A maneira como Santoro prevê o que seria a fala de Fonteles – caso os flagrasse na reunião noturna – revela nitidamente suas intenções políticas.
Hoje em dia, Santoro é advogado contratado pelo PSDB para atuar no caso do cartel dos trens.

Carlinhos Cachoeira e Jairo

A partir dessa primeira abordagem de Santoro sobre Cachoeira, muda o comportamento da mídia. De bicheiro suspeito, passa não apenas a ser blindado como torna-se íntimo colaborador da revista Veja em uma infinidade de escândalos com objetivos políticos. É como se a operação Lunus estivesse sendo reproduzida em uma linha de montagem.
A de maior impacto foi o do grampo no funcionário dos Correios Maurício Marinho, que resultou por linhas tortas no escândalo do “mensalão”. No capítulo da série de Veja, “O araponga e o repórter” (http://tinyurl.com/leps4ox) conto em detalhes essa armação.
Serra contrata Santoro; Santoro se aproxima de Cachoeira; logo depois Cachoeira fecha seu pacto com a Veja e a CPI de Cachoeira revela os dois principais braços do bicheiro: o araponga Jairo  Martins e o então senador Demóstenes Torres.
Foi a fase de maior poder de Cachoeira. Veja transformou Demóstenes em baluarte contra a corrupção. A mando de Cachoeira, Jairo levantava dossiês, Demóstenes fazia as denúncias e Veja repercutia. Com o poder conquistado, Demóstenes fazia lobby para Cachoeira junto ao governo.
E aí vão se fechando os elos da corrente, e entra em cena Gilmar Mendes.
Com Demóstenes Gilmar estreitou uma relação pessoal já antiga (http://glurl.co/dtj). Jairo, o araponga preferencial de Cachoeira, o especialista em dossiês para a Veja foi contratado como assessor especial de Gilmar. Ou seja, o principal operador de Cachoeira, o homem que abasteciaVeja com grampos passou a ter acesso ao sistema de telefonia do STF, na condição de assessor especial de Gilmar. Expôs todos os Ministros aos grampos de Jairo.
Fechados os elos da corrente, começam a brotar dossiês por todos os poros da mídia.
No início da operação, Gilmar foi ajudado por um sem-número de boatos infundados contra ele, alimentados por seus adversários e por abusos da PF em algumas operações espetaculosas.

Os factoides contra a Satiagraha

Quando surgiram os primeiros boatos sobre o cerco a Dantas, a primeira investida foi uma capa de Veja, “Medo no Supremo”, de 22 de agosto de 2007, em que cozinhava um conjunto de informações velhas, para dar a impressão de que o STF estava ameaçada pelo grampo. Mereceu um dos capítulos da minha série “O caso de Veja” (http://tinyurl.com/p4geurw).
Aparentemente, era uma matéria bombástica:
“É a primeira vez que, sob um regime democrático, os integrantes do Supremo Tribunal Federal se insurgem contra suspeitas de práticas típicas de regimes autoritários: as escutas telefônicas clandestinas. Sim, beira o inacreditável, mas os integrantes da mais alta corte judiciária do país suspeitam que seus telefones sejam monitorados ilegalmente”.
A matéria não passava de um amplo “cozidão” de notícias velhas. Vários ministros citados desmentiram a matéria, de Sepúlveda Pertence a Marco Aurélio de Mello. O único que sustentou o que disse foi Gilmar. E o que disse ele?
A Polícia Federal se transformou num braço de coação e tornou-se um poder político que passou a afrontar os outros poderes”, afirma o ministro Gilmar Mendes, numa acusação dura e inequívoca”.
Quando estourou a Satiagraha, repetiu-se o estratagema em diversos episódios:
1. Os dois habeas corpus em favor de Daniel Dantas.
Gilmar tratou o caso como se o estado de direito estivesse ameaçado. Sucessivas invasões de escritórios de advocacia pela Polícia Federal forneceram-lhe o álibi necessário. Mas avançou muito além do habeas corpus, com discursos bombásticos que, repercutidos pela mídia, criaram o clima de resistência à Satiagraha. No livro, Valente esmiuça todas as decisões controvertidas de Gilmar para anular a operação.
No vídeo abaixo, Gilmar denuncia supostos grampos de que teria sido alvo. Faz um discurso eficiente. Ainda não tinha em sua ficha os episódios seguintes, que não o qualificariam mais como testemunha confiável.
2. O grampo sem áudio.
O tal grampo de conversa entre Gilmar Mendes e Demóstenes Torres – principal parceiro de Veja na conexão Carlinhos Cachoeira.
Jamais apareceu o áudio. Investigações divulgadas na época mostravam ser impossível grampear telefones do Senado. Sequer se conferiu se, na tal hora do suposto grampo, houve de fato ligações telefônicas entre Gilmar e Demóstenes, ou ao Senado.
Era um grampo consagrador para Demóstenes, onde os dois colegas lembravam as grandes ações cívicas do senador.
Com base em um factoide, Gilmar cobrou explicações do próprio presidente da República. A ameaça de crise entre instituições levou ao afastamento do diretor da Abin Paulo Lacerda e deu início à anulação da Satigraha.
Segundo o Blog de Noblat, a Abin identificou o araponga que gravou a conversa. Foi o mesmo que passou a transcrição para a revista Veja (http://tinyurl.com/myq2kdw) (http://tinyurl.com/myq2kdw). Se o grampo existisse de fato, Veja não teria a menor dificuldade – ou escrúpulo – em divulgá-lo, ou entregar a fonte.
Aqui no Blog desmontamos a farsa (http://tinyurl.com/mo4o4w6).
É significativo o fato dos dois personagens da história – Gilmar e Demóstenes – terem histórico de criação de factoides sem provas.
Em 2004 Demóstenes já se mostrara exímio fabricante de factoides para gerar mídia e desgaste nos adversários. Como o suposto atentado de que teria sido vítima em 2004 (http://tinyurl.com/kql2jza) que rendeu muita manchete sem nunca ter sido devidamente apurado.
3. O grampo no Supremo Tribunal Federal.
Um assessor de segurança do STF passou para a revista Veja a informação de que havia detectado grampo em uma das salas do Supremo. Mereceu capa e, com base no alarido, foi criada a CPI do Grampo (http://tinyurl.com/p2hmlsy).
Quando o relatório da segurança do STF foi entregue à CPI, constatou-se que haviam sido captado sinais de fora para dentro do órgão. Logo, jamais poderia ser interpretado como grampo. Coube a leitores do Blog derrubar essa armação.
Na CPI ficou-se sabendo que o relatório com as conclusões falsas saíram do próprio gabinete da presidência do STF.
Foi tão grande a falta de reação dos demais ministros, ante a manipulação do suposto grampo, que chegou-se a aventar a fantasia de que Gilmar teria mandado grampeá-los para mantê-los sob controle.
Nesse período, Jairo Martins, o araponga que armou o grampo dos Correios, assessorava Gilmar.
4. A reunião com Nelson Jobim e Lula.
 

Mesmo depois da Satiagraha, manteve-se o mesmo modo de operação no julgamento da AP 470. Há um encontro entre Gilmar e Lula no escritório de Nelson Jobim. Passa um mês, sem que nada ocorra. De repente, alguém se dá conta do potencial de escândalo que poderia ser criado. Gilmar concede então uma entrevista bombástica, indignada, dizendo ter sido pressionado por Lula.
Dos três presentes ao encontro, dois – Jobim e Lula – negam peremptoriamente qualquer conversa mais aprofundada sobre o mensalão.
Foi em vão. A versão de Gilmar é veiculada de forma escandalosa pela revista Veja, criando o clima propício ao julgamento “fora da curva” da AP 470. O mesmo Gilmar do grampo sem áudio e da falsa comunicação de grampo no STF.
São quatro episódios escândalos inéditos na história do Supremo, todos os quatro tendo como origem Gilmar Mendes.