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sábado, 30 de novembro de 2013

Falta de opção de vida é doença mortal para meninas


















Nós temos concurso de mulher para sambar pelada na televisão em programa de domingo, mas a menina pode ser levada ao suicídio se mostrar um peito e essa foto for parar na internet

Madeleine Lacsko,




Estamos matando nossas meninas. Acredito ser a tradução desse nó na garganta que eu sinto, creio que muitos sentem, e que o Lino Bocchini conseguiu colocar com clareza em palavras no artigo: Quem é culpado pelo suicídio da garota de Veranópolis? É uma reflexão sincera sobre dois suicídios de meninas que não aguentaram a humilhação sofrida após terem vídeos íntimos vazados na internet.
Talvez os comentários de alguns leitores embrulhem o estômago tanto quanto os fatos. Tenho só sentimentos fortes e poucas palavras claras quando constato a canalhice em ação, principalmente nesses casos que interrompem vidas no começo. O texto tem palavras e uma linha de raciocínio coerente dissecando a distância entre o que a nossa sociedade exige das mulheres e meninas e o possível para um ser humano.
Nós temos concurso de mulher para sambar pelada na televisão em programa de domingo, mas a menina pode ser levada ao suicídio se mostrar um peito e essa foto for parar na internet. As bundas ornamentando os balés dos programas do auditório miram agradar o mesmo público que oprime mães que amamentam em público. Não somos campeões apenas em hipocrisia, somos também em falta de opção.
Afinal, o que exatamente se valoriza em uma mulher? Somos — e eu me incluo — craques em pegar situações fragmentadas e apontar o problema: a opressão. Às vezes somos craques também em apontar soluções para aquela situação específica. A vida vem em detalhes, vem aos goles, mas pensamos nela como um oceano inteiro e é aí que está o ponto em que poderíamos dar mais foco.
Algumas pessoas entendem o Feminismo ou a busca da igualdade como um simples assassinato do feminino. E, enquanto isso, os exemplos do desejável que estão aí para as nossas meninas e meninos são também amostras do impossível. O modelo de mulher na televisão é pelada e gostosa mas, socialmente, tem de ser ao mesmo tempo casta. Ser bem sucedida tem que ser algo combinado com submissão a um sistema onde o feminino é sempre intruso. Ou seja, não há saída.
A questão é que trabalhamos pouco as opções, principalmente para as gerações futuras, que vão viver lutas e dilemas diferentes dos nossos. São caminhos diferentes, escolhas diferentes, que talvez a gente não aborde porque nem imagine. As mulheres da minha geração vivem vidas que não foram traçadas para nós, como intrusas em um mundo que originalmente tinha as portas fechadas.
Vivemos um caminho pavimentado pela coragem de gerações anteriores que resultou na realização de opções que originalmente não existiam, seja no campo profissional ou no pessoal. Convivemos com homens surpreendidos por um mundo muito diferente daquele das histórias que lhes foram contadas na infância. Mas as meninas e meninos de hoje estão prontos para escrever uma história nova.
A questão dos brinquedos é, para mim, recorrente. Seja pelo kichute e pelo skate que me foram negados na infância ou pela dificuldade de encontrar os brinquedos que meu filho pede e não estão na categoria transporte, construção ou material de guerra. Por isso, eu fiquei tão feliz quando vi uma novidade nessa área celebrada por um site de engenharia: a linha de brinquedos para meninas engenheiras. No mundo, 89% das pessoas formadas em engenharia são homens. Uma das razões pode ser facilmente comprovada com uma visita a qualquer loja de brinquedos, as meninas não são inspiradas a fazer parte desse universo.
Uma engenheira formada em Stanford e que só optou pelo curso por insistência de um professor, já que jamais havia considerado essa possibilidade, resolveu usar a porta que abriu para fazer passar outras meninas. Ela criou uma linha de brinquedos chamada Goldie Blox, dedicada a futuras engenheiras e inventoras.
vídeo que promove a empresa se tornou um viral, com mais de 8 milhões de visualizações na primeira semana. Dessa vez, veio da internet a mudança, o avanço que fez o tema entrar nos veículos de imprensa mais importantes dos Estados Unidos, incluindo o tradicional Good Morning America, da rede ABC.
A existência da linha de brinquedos traz a reboque consequências animadoras, como a discussão social sobre as opções que estamos dando às nossas meninas e a nova proposta de interação entre as crianças. É uma tentativa de sair daquele universo que eu vivi onde todos os brinquedos de meninas são igualmente tediosos e só se faz uma brincadeira legal quando os meninos admitem que elas entrem naquele universo infantil masculino.
Se as meninas também tem brinquedos legais e que serão certamente desejados pelos meninos, entram em pé de igualdade no mundo da brincadeira. É uma forma de promover na prática essa vivência, mesmo que os pais ainda não tenham descoberto como fazer isso nas próprias vidas. Vivemos uma sociedade em que a mulher é uma intrusa e qualquer ação pode virar um deslize e motivo de execração pública. Os brinquedos para engenheiras tratam de dar opções, de fazer enxergar a menina como ser humano, exatamente o que falta nesses casos que pularam da tela do computador para a tragédia.
Claro que um brinquedo não resolve séculos de opressão e a luta diária pela igualdade continua necessária e importante. Mas a ideia da engenheira de pavimentar o caminho para que outras meninas cheguem mais facilmente onde ela chegou tem toda a minha simpatia. Todos os dias arrombamos portas e quebramos correntes. Creio que tem a mesma importância sinalizar a quem ainda está no começo da estrada como passar pelos caminhos que já foram abertos.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Normas de Serviço da CGJ são discutidas em palestra da série Diálogo com a Corregedoria


        

A Corregedoria Geral da Justiça (CGJ) realizou terça-feira (26) a última palestra deste ano da série de encontros do programa Diálogo com a Corregedoria, na sede administrativa da Associação Paulista de Magistrados (Apamagis).

        O debate do tema abordado - “As novas normas de serviço da Corregedoria” - foi conduzido pelo juiz assessor da CGJ, Durval Augusto Rezende Filho. “Teremos aqui, hoje, um diálogo bastante profícuo sobre temas extremamente importantes para todos nós. Trataremos do funcionamento dos ofícios de Justiça em geral, nas correições ordinárias e nos plantões judiciais.”

        A mesa de trabalhos foi composta também pelos juízes assessores da CGJ, Ricardo Tseng Kuei Hsu, Jayme Garcia dos Santos Junior e pelo coordenador do Gabinete de Apoio Técnico e Administrativo da Corregedoria (GATJ 3), Pedro Cristovão Pinto.

        Ao falar sobre o tema, o juiz Ricardo Tseng Kuei Hsu abordou artigos que, no seu ponto de vista, cuidam dos assuntos mais importantes. “Eu destacaria o capítulo 1º, que trata sobre três pontos: da missão da CGJ, da visão e dos princípios gerais”. Ele discorreu também sobre outros artigos, que regulam a metodologia de gestão. 

        Sobre métodos de trabalho, acrescentou que “sistemas informatizados são substituídos, a base material sob a qual tramita o processo é alterado, mas o material humano do equipamento Justiça é aquele que é indispensável e insubstituível na busca de resolução de problemas das unidades”. 

        O juiz Jayme Garcia dos Santos Junior também apontou os artigos que mais se destacaram, segundo sua avaliação. Para ele, “uma das preciosidades das novas normas é o artigo 1127, no capítulo do Plantão Judiciário, que trouxe uma classificação precisa e muito objetiva dos três tipos de plantão: Ordinário, Especial e Extraordinário". Ele falou também de artigos que tratam das atribuições do escrivão judiciário.

        O coordenador Pedro Cristovão Pinto falou sobre a importância das novas normas e sobre o sistema de remessa eletrônica das Atas das Correições, que começa a funcionar a partir do dia 7/1/14.

        Comunicação Social TJSP         imprensatj@tjsp.jus.br

Amazon, do outro lado do computador



Com empresários celebrizados, telas finas e cores vivas, a economia digital evoca a imaterialidade, a horizontalidade e a criatividade. Porém, uma investigação sobre a gigante do comércio eletrônico Amazon revela o outro lado da moeda: fábricas gigantes em que humanos pilotados por computadores trabalham até a exaustão


por Jean-Baptiste Mallet
Descolando seu olhar dos cartazes do sindicato alemão Ver.di – o sindicato unificado dos serviços – presos à parede da sala de reuniões, Irmgard Schulz se levanta de repente e toma a palavra. “No Japão”, conta, “a Amazon acaba de recrutar cabras para que elas pastem em torno de um armazém. A empresa colocou nelas um crachá igual ao que temos pendurado no pescoço! Está tudo lá: nome, foto, código de barras.” Estamos na reunião semanal de funcionários da Amazon em Bad Hersfeld (Hesse, Alemanha). Em uma imagem, a operária logística acaba de resumir a filosofia social da multinacional de vendas on-line, que propõe ao consumidor comprar com alguns cliques e receber no prazo de 48 horas um esfregão, as obras de Marcel Proust ou um arado motorizado.1
Em todo o mundo, 100 mil pessoas estão trabalhando em 89 armazéns logísticos cuja superfície somada totaliza cerca de 7 milhões de metros quadrados. Em menos de duas décadas, a Amazon projetou-se na vanguarda da economia digital, ao lado da Apple, do Google e do Facebook. Desde seu lançamento em Bolsa, em 1997, seu faturamento foi multiplicado por 420, chegando a US$ 62 bilhões em 2012. Seu fundador e CEO, Jeffrey Preston Bezos, metódico e libertário, inspira aos jornalistas retratos ainda mais lisonjeiros desde que investiu em agosto último US$ 250 milhões – 1% de sua fortuna pessoal – para comprar o diário norte-americanoThe Washington Post. O tema do sucesso econômico eclipsa com certeza o das condições de trabalho.
Na Europa, a Amazon escolheu a Alemanha como carro-chefe. Ela estabeleceu ali oito plantas logísticas e construiu uma nona. Ao volante de seu carro, Sonia Rudolf pega uma avenida chamada Amazon Strasse2 – a municipalidade financiou a chegada da multinacional num valor de mais de 7 milhões de euros. Em seguida, aponta um enorme bloco de construção cinza. Atrás de uma cerca de arame farpado, surge o armazém. “No terceiro andar da FRA-1,3 não há nenhuma janela, nenhuma abertura, nenhum ar condicionado”, testemunha a ex-funcionária. “No verão, a temperatura ultrapassa os 40 graus, e os mal-estares são muito frequentes. Um dia – vou me lembrar disso por toda a vida –, quando eu estava fazendo ‘picker’ [ato de prender as mercadorias nos alvéolos metálicos], encontrei uma moça deitada no chão e vomitando. Seu rosto estava azul. Eu realmente achei que ela fosse morrer. Como não tínhamos maca, o gerente pediu-nos que conseguíssemos um palete de madeira sobre o qual a estendemos para transportá-la até a ambulância.”
Fatos semelhantes foram relatados pela imprensa nos Estados Unidos.4 Na França, foi o frio, em 2011, que atingiu os funcionários do armazém de Montélimar (Drôme), forçados a trabalhar com parcas, luvas e bonés, até que uma dúzia deles começou uma greve e conseguiu que o aquecimento fosse ligado. Foi assim, em parte, que a Amazon catapultou seu fundador ao 19o lugar entre os bilionários do planeta.5
A especificidade do supermercado on-line consiste em permitir que os comerciantes, por meio de sua plataforma Marketplace, ofereçam produtos para venda em seu site, em concorrência direta com sua própria mercadoria. O conjunto infla as cifras do negócio e faz crescer o efeito “cauda longa” – a agregação de múltiplos pequenos volumes de encomendas de produtos pouco solicitados cujo custo de armazenamento é baixo –, na origem do sucesso da empresa. Esse sistema, eficaz para o consumidor, recruta livreiros para a promoção do gigante que vampiriza a clientela deles e destrói sua atividade.
“O sorriso no embrulho não é o nosso”
O Sindicato dos Livreiros Franceses estimou que, em vendas de produtos equivalentes, uma livraria de bairro gera dezoito vezes mais empregos do que a venda on-line. Unicamente para o ano de 2012, a Associação dos Livreiros Americanos (ABA) avalia em 42 mil o número de empregos destruídos pela Amazon no setor: US$ 10 milhões em receitas para a multinacional representariam 33 eliminações de empregos nas livrarias locais.
Além disso, tudo opõe os postos de trabalho perdidos e aqueles criados nos armazéns logísticos. De um lado, desaparece um trabalho qualificado, diversificado, permanente, localizado no centro da cidade, que combina manutenção, sociabilidade, contato e conselho. De outro, emergem na periferia urbana “fábricas para vender” nas quais a produção contínua de pacotes de papelão vai ao encontro de uma mão de obra não qualificada, recrutada pela única razão de atualmente ser mais barata do que robôs. Mas não por muito tempo: desde a compra em 2012, por US$ 775 milhões, da empresa de robótica Kiva System, a Amazon prepara a utilização em seus armazéns de pequenos autômatos rolantes: hexaedros laranjas de 30 centímetros de altura, capazes, por exemplo, de deslizar sob uma prateleira para mover cargas que vão, dependendo do modelo, de 450 a 1.300 quilos.
Trata-se de reduzir para apenas vinte minutos o tempo entre a realização do pedido pelo cliente e sua expedição. Bezos tem um objetivo que se tornou lendário: oferecer, vender e liberar para a entrega qualquer mercadoria para qualquer lugar do mundo no próprio dia da encomenda. Desde sua criação, a Amazon está investindo somas faraônicas nos servidores e aumenta constantemente suas capacidades de cálculo algorítmico a fim de melhorar a eficiência de sua logística e as potencialidades de seu site de venda, o qual oferece sempre novos produtos para os clientes existentes, graças a um complexo cruzamento de dados pessoais e hábitos de consumo. E, para que nada se perca, os recursos de computação em excesso são alugados para empresas por meio de um serviço específico, os Amazon Web Services.6
Seja qual for o país onde estão instalados, os armazéns logísticos apresentam uma arquitetura e uma organização do trabalho similares. Localizados perto de pontos de confluência de estradas em áreas onde a taxa de desemprego supera a média nacional, eles são colocados sob a custódia severa de empresas de segurança. Esses paralelepípedos de metal laminado se espalham por uma superfície por vezes superior a 100 mil metros quadrados, algo semelhante a cerca de catorze campos de futebol. Eles se animam no ritmo de um balé de caminhões pesados: a cada três minutos, o grupo Amazon empanturra de pacotes um semirreboque. Apenas no território dos Estados Unidos, a empresa vendeu trezentos artigos por segundo durante as festas de Natal de 2012.
A profusão de produtos oferecidos aos 152 milhões de clientes do site se materializa nos armazéns que abrigam florestas de prateleiras de metal onde labutam trabalhadores obrigados a ficar calados pelo regulamento interno. Considerados gatunos potenciais, todos passam por revistas minuciosas realizadas por vigias: eles atravessam pórticos de segurança na saída definitiva ou no intervalo, encurtado assim por esse controle tedioso que gera longas filas. Como a Amazon se recusa a colocar os relógios de ponto dos armazéns na área da revista, os trabalhadores dos centros de distribuição de Kentucky, do Tennessee e do estado de Washington, nos Estados Unidos, já moveram quatro processos para reclamar o pagamento desse tempo de espera não remunerado que acreditam ser de 40 minutos por semana.
A gestão dos estoques da Amazon é informatizada pela lógica do chaotic storage: os artigos são dispostos de maneira aleatória nas prateleiras. Essa “arrumação caótica” apresenta a vantagem de uma flexibilidade maior que o armazenamento tradicional: não há necessidade de prever espaço adicional para cada tipo de artigo, em caso de variações na oferta ou demanda, uma vez que todos são empilhados aleatoriamente. Cada linha de prateleiras tem vários níveis; cada nível, várias células de armazenamento: são os bins (alvéolos), nos quais os escritos de Antonio Gramsci disputam espaço com um pacote de cuecas, um ursinho de pelúcia, temperos para grelhados ou o Metrópolis, de Fritz Lang.
Dentro da unidade de “recepção”, os trabalhadores eachersdesfazem os paletes dos caminhões e marcam a mercadoria. Já osstowers(“arrumadores”) colocam os artigos onde podem nas imensas prateleiras para criar um bazar apenas repertoriado por um escâner wi-fi que lê códigos de barras. Para conjurar a geografia vertiginosa dos quilômetros de prateleiras, em meio a essa formidável acumulação de bens, a mais moderna tecnologia guia, controla e mede a produtividade dos funcionários que executam tarefas repetitivas, extenuantes. Na unidade dita de “produção”, os pickers(“coletores”), por sua vez, também guiados por seu escâner se deslocam rapidamente pelas prateleiras. A fim de coletar incansavelmente os artigos, eles andam mais de 20 quilômetros por jornada – número oficial das agências de trabalho temporário que os sindicalistas contestam, considerando que deve ser maior.
Uma vez que um produto é extraído, uma contagem regressiva é exibida no escâner, ordenando ao trabalhador que colete o seguinte. Sua escolha é determinada por computador para otimizar a distância de deslocamento. Quando o carrinho está cheio, os pickerso levam até os packers(“empacotadores”). Eles são estáticos e fazem os embrulhos na cadeia dos produtos, antes de empurrar os pacotes para grandes esteiras computadorizadas. Estas pesam as caixas de papelão marcadas com o sorriso da Amazon, colam os endereços e, em seguida, as dividem de acordo com os serviços postais ou as transportadoras internacionais.
“O sorriso no embrulho não é o nosso”, afirma Jens Brumma, 38, stower desde 2003. Tendo alternado momentos de desemprego com trabalhos temporários na Amazon por sete anos, ele mantém ali, desde 2010, contratos de curto prazo, já que a direção se recusa a efetivá-lo. Como acontece com qualquer assalariado no mundo, seus contratos o proíbem estritamente de se expressar a respeito de seu trabalho com a família, amigos ou jornalistas. “O silêncio que nos é imposto não é para proteger segredos comerciais, aos quais não temos acesso: é para calar a extrema dificuldade de nossas condições de trabalho.”
No final do ano, no período de pico chamado “Q4” – quarto trimestre –, equipes noturnas são constituídas e cada armazém recorre intensivamente a uma mão de obra temporária para enviar os pedidos da época das festas. “Durante essa fase”, explica Heiner Reimann, um dos funcionários permanentes especializados, designado pelo Ver.di em 2010 para iniciar e acompanhar uma ação sindical, “o número de trabalhadores nos dois armazéns passa de repente de 3 mil para mais de 8 mil. Temporários de toda a Europa chegam a Bad Hersfeld e são alojados em condições terríveis. Aqui, para lidar com esses milhares de contratos temporários, a Amazon contratou secretárias chinesas. No ano passado, elas trabalhavam em uma grande sala vazia, sem móveis, e empilhavam os contratos no chão, um por um. Era surreal.” Desempregados espanhóis, gregos, poloneses, ucranianos e portugueses convergem em ônibus dos quatro cantos da Europa, contratados por meio de agências de trabalho temporário.
“Os gestores se vangloriam desse recrutamento internacional e o exibem como motivo de orgulho”, testemunha Brumma. “Em uma festa organizada pela empresa, pediram-me que pendurasse as bandeiras de todas as nacionalidades presentes: havia 44! Os espanhóis eram os mais numerosos. Entre eles havia pessoas com diplomas importantes: um historiador, sociólogos, dentistas, advogados, médicos. Eles estão desempregados, então vêm para cá pelo tempo do trabalho temporário.”
Trabalho hard rock
O alemão Norbert Faltin, ex-executivo da área de informática abruptamente demitido em 2010, teve de concordar em se tornar da noite para o dia um operário picker temporário na Bad Hersfeld. “No inverno, fiquei hospedado por três meses com cinco estrangeiros em um bangalô normalmente usado por turistas de verão e, portanto, não dotado de aquecimento. Nunca passei tanto frio na vida. Éramos todos adultos e dormíamos em turnos em um berço.” Aqui, a eventual assinatura de um contrato com duração indeterminada marca o ápice de uma série de contratos de curto prazo durante a qual não é prudente se sindicalizar, muito menos fazer greve. E o uso maciço de mão de obra imigrante temporária antes das festas de Natal neutraliza o efeito das greves iniciadas pelo Ver.di durante esse curto período em que a Amazon, vulnerável, realiza 70% de seu volume de negócios anual.
Para honrar seu lema, “Work hard, have fun, make history” (Trabalhe duro, divirta-se, faça história), exibido em todas as suas unidades do planeta, o gigante norte-americano enquadra seus funcionários por meio de uma técnica de gestão extremamente rigorosa, a “5S”, inspirada nas fábricas de automóveis japonesas, e organiza vários eventos paternalistas, tanto durante o trabalho quanto fora dele. “Na época do ‘Q4’, os gestores difundem músicas que se repetem no volume máximo no armazém para nos excitar”, diz Sonia Rudolf. “Um dia, durante as festas, eles tinham colocado hard rock no volume máximo para nos fazer trabalhar mais rápido. Era tão alto que eu tinha dor de cabeça, me dava palpitação. Quando pedi ao gerente que diminuísse o volume, ele riu de mim porque eu tinha mais de 50 anos, dizendo que aqui éramos uma empresa de jovens. Eu era de idade e me pediam que tivesse a mesma produtividade no picking de um jovem de 25 anos. Mas, depois da morte de meu marido, não me restava escolha, eu tinha de aceitar o trabalho.”
Trabalhar vestido de bruxo
Os funcionários de Bad Hersfeld lembram-se de ter visto Bezos na inauguração do primeiro armazém alemão da empresa no verão europeu de 2000. Naquele dia, seu patrão, vindo especialmente dos Estados Unidos, havia pousado seu helicóptero no estacionamento dos funcionários para colocar as mãos cobertas de tinta em uma placa comemorativa. “Tudo é dito e escrito em inglês na Amazon. Os funcionários ali são chamados ‘hands’, as pequenas mãos”, explica Schulz. “Jeff Bezos nos tinha mostrado suas mãos dizendo no microfone que éramos todos ‘hands’, como ele, e que éramos seus associados, porque tínhamos direito a ações após vários anos na empresa. Na época, ele tinha explicado que formávamos uma grande família. Depois disso, ele chegava até a ligar por telefone, e sua voz era transmitida por alto-falante no armazém para falar conosco, para nos estimular. E isso funcionava. Tínhamos orgulho da Amazon; para nós, era o sonho americano. Mas rapidamente virou um pesadelo. É por isso que hoje eu participo das greves.”
Dispostos ao longo de uma mesa onde se amontoam panfletos, crachás, documentação legal com textos assinalados e recortes de imprensa referentes à última greve, os membros da equipe da tarde deixam prontamente suas cadeiras para ir bater ponto. “Foi muito difícil quando cheguei. Os trabalhadores estavam aterrorizados pela ideia de falar conosco ou aceitar nossos panfletos”, confessa o sindicalista Reimann, enquanto aguarda a chegada da equipe da manhã para realizar uma segunda reunião. Depois de mais de uma década na Ikea e uma sólida formação em direito do trabalho, ele começou essa missão para o Ver.di em 2010. Dando-se conta da despolitização e da falta de cultura sindical da maioria dos funcionários da Amazon, ele adaptou-se à situação e conseguiu gradualmente resultados graças a ações organizadas com base em um núcleo duro.
Desde 2011, por exemplo, os ativistas colam pequenas folhas de papel autoadesivas coloridas em todo lugar nos armazéns alemães. Em cada uma delas, uma pergunta anônima aponta um impedimento ao direito do trabalho, uma injustiça ou um desvio da normalidade. Os exemplos são sempre escolhidos pelos próprios trabalhadores, que fazem que eles sejam escritos por parentes, para que não seja possível reconhecer a letra. Essas folhas, afixadas por milhares de pessoas no local de trabalho, sem causar danos, semeiam o pânico entre os gestores. Após as deliberações realizadas durante as reuniões semanais abertas a todos, as reivindicações emergem rapidamente de Bad Hersfeld e Leipzig.
Em Leipzig, ninguém é pago segundo a tarifa do ramo negociada pelo Ver.di para a distribuição. Embora os acordos salariais das Länder orientais prevejam um salário mínimo de 10,66 euros por hora, a Amazon aplica sua própria tabela: 9,30 euros. Em Bad Hersfeld, também há diferença entre a tarifa do ramo (12,18 euros por hora) e o salário do armazém: 9,83 euros. Dois anos e meio depois das primeiras reuniões do Ver.di, cerca de seiscentos trabalhadores alemães realizam regularmente piquetes para exigir a aplicação do acordo coletivo (Tarifvertrag) do setor. Tanto é assim que os sindicalistas e seus simpatizantes usam agora abertamente, inclusive no trabalho, um pequeno bracelete vermelho com as palavras “Work hard, have fun, make Tarifvertrag”.
O resultado? Sonia Rudolf o constata por si mesma quando encontra ex-colegas passeando no centro da cidade de Bad Hersfeld: “A imagem do sindicato mudou muito. As pessoas têm cada vez menos medo de se sindicalizar, e isso se torna quase um reflexo para elas quando sofrem humilhação. Elas querem dar uma resposta para defender seus direitos e sua dignidade”.
Na França, em 10 de junho de 2013, uma centena de funcionários do armazém de Saran (Loiret) estava também em greve, atendendo ao chamado da Confederação Geral do Trabalho (CGT). Todos foram convocados individualmente no dia seguinte. “Por ser sindicalista, fui submetido a revistas arbitrárias durante meu período de trabalho”, testemunha Clément Jamin, da CGT. “Eu me recusei; então me pediram que sentasse em uma cadeira, supostamente até que a polícia chegasse. Sentei-me por seis horas na frente de todos, e a polícia nunca chegou. Eles tentaram fazer a mesma coisa no dia seguinte e no outro, e a CGT entrou com uma queixa.”
“O ritmo é extenuante”, diz, em tom sério Mohamed, operário em Saran, que pediu para permanecer anônimo. “E, em contrapartida, o que eles nos propõem? O ‘have fun’: jogos durante os intervalos, distribuições de chocolates, bombons... Mas não posso aderir à ideia de vir descarregar caminhões vestido de palhaço.” De fato, de acordo com os temas escolhidos pelos gestores, os funcionários são regularmente convidados a ir trabalhar vestidos como bruxas ou jogadores de basquete. “Enquanto isso, nossa produtividade continua, é claro, sendo gravada por computador”, prossegue. “Somos convidados a ser ‘top performers’, a nos superar para bater continuamente nossos recordes de produtividade. Desde junho de 2013, os gestores chegam até a exigir que façamos coletivamente práticas de aquecimento e de alongamento antes de assumirmos nossos postos de trabalho.”
Temporários tratados como gado
Algo inédito, o regulamento interno impõe que a produtividade individual esteja constantemente em alta. A gravação em tempo real do desempenho dos trabalhadores permite aos supervisores geolocalizá-los a qualquer momento no armazém, obter curvas e histórico de seu rendimento, mas também organizar a concorrência entre eles. Na Alemanha, Reimann descobriu há pouco tempo que essa medição, “que é uma informação pessoal, é enviada diariamente por computador a partir dos armazéns alemães para Seattle, nos Estados Unidos, onde é armazenada. Isso é totalmente ilegal!”. Ex-gestor da Amazon na França, tendo participado de treinamentos internos em Luxemburgo, Ben Sihamdi confirma essa prática que os trabalhadores ignoram: “Todos os dados de produtividade são registrados de modo centralizado no exato instante por computador e depois enviados para Seattle”.
Se os funcionários estão em concorrência, a semântica da casa também os convida a “assinalar anomalias”. “Isso pode ser uma caixa de papelão que bloqueia uma entrada”, explica Mohamed, “mas também um colega que está conversando. É preciso, então, denunciá-lo. É algo bem-visto para subir na classificação e se tornar ‘lead’, supervisor.” “Um dia”, Sihamdi relembra, “um colega me perguntou sobre a fortuna de Jeff Bezos e respondi que isso me dava vontade de vomitar. Ele me denunciou, e fui repreendido por criticar o ‘espírito Amazon’! O ambiente de trabalho é deletério; todo mundo se vigia. E os temporários são tratados como gado, o que era insuportável para mim. Eu conheço bem o mundo industrial, incluindo o do automóvel. Mas minha experiência com a Amazon é, de longe, a mais violenta da minha carreira de engenheiro.”
Quedas, mal-estar, dedos cortados na esteira, acidentes mortais entre a residência e a empresa, síndrome de burnout (depressão provocada por esgotamento físico e mental relacionado à profissão): os acidentes de trabalho são numerosos na Amazon. No entanto, a imprensa prefere elogiar o desempenho das ações da multinacional, as extravagâncias de seu fundador ou a construção de novos armazéns logísticos – as três unidades que em breve serão colocadas em funcionamento na Polônia pesam agora como uma ameaça de dumpingsalarial sobre os trabalhadores alemães. A mídia celebra a criação de empregos precários e invisíveis que vão destruir ainda mais as lojas locais.
Apoiador das greves do Ver.di, o jornalista alemão Gunter Wallraff acompanha com atenção o desenvolvimento fulgurante da Amazon. De Colônia, conta que ele próprio tentou uma queda de braço com o rolo compressor dos negócios on-line: “Quando descobri as condições de trabalho dos funcionários, imediatamente pedi um boicote e solicitei a meu editor que retirasse meus livros no site. Isso foi um problema para ele: a Amazon representava 15% de suas vendas. Depois de ter discutido a ideia, a editora alinhou-se com minha exigência. Mas, agora, a Amazon consegue material com atacadistas para continuar vendendo meus livros! E, infelizmente, não posso impedi-la de fazer isso. Sou, portanto, criticado por pessoas que dizem: ‘Você faz belos discursos, mas seus livros continuam a ser vendidos na Amazon’... Na realidade, não podemos lutar individualmente contra essa empresa. Trata-se de uma multinacional organizada segundo uma ideologia bem definida. Seu sistema não nos coloca a pergunta simples, neutra, se devemos ou não consumir em seu site; ele nos coloca questões políticas: aquela da nossa escolha de sociedade”.

BOX:

Escapar dos impostos

Quer um livro seja comprado na Espanha ou um aspirador na França, no site da Amazon, o pedido será faturado em Luxemburgo pela empresa Amazon EU, que, com apenas 235 funcionários, atingiu em 2012 cerca de US$ 10 bilhões em volume de negócios, mas, graças a uma montagem financeira inteligente, apenas 20,4 milhões de lucro. Ela controla as versões nacionais das estruturas introduzidas na Europa que realizam o trabalho real da multinacional: logística, marketing, relações com fornecedores etc. No topo dessa pirâmide de holdings reina a reserva financeira da empresa, a Amazon Europe Holding Technologies SCS, propriedade de três entidades domiciliadas no estado de Delaware, nos Estados Unidos.
No coração desse andaime fiscal, a Amazon Europe Holding Technologies SCS, também domiciliada em Luxemburgo, devora e derrama rios de dinheiro: ela tinha acumulado uma reserva de 1,9 bilhão de euros no final de 2011, sem empregar um único funcionário. Esse complexo mecanismo de evasão fiscal permite que a multinacional possa fugir dos impostos dos países onde está atuando e dos quais suga somas colossais. Desde que seu diretor Andrew Cecil forneceu uma tabela para os parlamentares britânicos membros da Comissão de Finanças, seu volume de negócios francês se tornou conhecido: 889 milhões de euros em 2011. Mas as filiais francesas declaram às autoridades fiscais somas consideravelmente mais baixas, a tal ponto que são hoje objeto de um benefício fiscal de 198 milhões de euros. (J.-B.M.)


Jean-Baptiste Mallet
Jornalista, é autor da pesquisa “En Amazonie. Infiltré dans le ‘meilleur des mondes’” [Na terra da Amazon. Infiltrado no “admirável mundo novo”] (Fayard, Paris, 2013), para a qual trabalhou como funcionário temporário em um armazém francês da Amazon em novembro de 2012.


Ilustração: Alves
1 Apesar de nossas repetidas solicitações, a Amazon não quis responder às nossas perguntas.
2 Há também ruas Amazon em Graben, em Pforzheim e em Kobern-Gondorf, na Alemanha, assim como duas na França, em Sevrey e em Lauwin-Planque.
3 Os estabelecimentos da Amazon têm todos nomes compostos por três letras e um número. Os armazéns logísticos são batizados com o nome do aeroporto internacional mais próximo; nesse caso,Frankfurt.
4 Spencer Soper, “Inside Amazon’s warehouse” [Dentro do armazém da Amazon], The Morning Call, Allentown (Pensilvânia), 18 set. 2011.
5 Bezos foi eleito empresário do ano em 2012 pela revista norte-americana Fortune.
6 A Amazon também lançou um mercado de trabalho on-line, o Amazon Mechanical Turk, que propõe aos usuários de internet executar microtarefas em troca de uma microrremuneração. Ler Pierre Lazuly, “Télétravail à prix bradés sur Internet” [O teletrabalho a preços irrisórios na internet], Le Monde Diplomatique, ago. 2006.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Poder e medo

Por Ari Zenha
Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a raiz é o próprio homem.
Karl Marx – Crítica da filosofia do direito de Hegel.

"O medo é uma categoria virtual, abstrata, impalpável, mas que transvaza toda a dinâmica do capitalismo dando-lhe sustentação e movimento"

Podemos inserir o medo como uma categoria “econômico-ideológica” na sociedade capitalista.
Dizer que o medo é uma categoria econômica - sem aspas -, seria talvez uma blasfêmia contra o pensamento marxista. Mas no nosso entendimento o medo como condição econômica nos remete à superestrutura em que se apoia e se dissemina a doutrina e o fortalecimento do capitalismo. O medo é decisivo para a formação e consolidação histórica do capital. Sem ele (o medo) a burguesia jamais conseguiria não só impor-se como classe hegemônica, como sua estrutura econômica arquitetada e fundada na exploração, na propriedade privada dos meios de produção e no seu arcabouço ideológico, não lograria sustentar-se como modo de produção e erguer suas estruturas e sua superestrutura. Logo, dizer, entre aspas, que o medo é uma categoria “econômica–ideológica” é apresentar as relações econômicas, sociais e políticas do capitalismo como prova do seu “dinamismo” que sempre se enraizou não só em profundas desigualdades e exploração, mas também, e aí está o “grande” argumento, na disseminação do medo, pois este dá sustentabilidade à base econômica – alicerçando-a –, como espraia seus fundamentos através da superestrutura.
Poderíamos comparar o medo à categoria que Marx utiliza para tratar do valor como trabalho abstrato. O medo é uma categoria virtual, abstrata, impalpável, mas que transvaza toda a dinâmica do capitalismo dando-lhe sustentação e movimento.
O medo na sociedade de classes permeia todos os seguimentos não só institucionais, como faz parte intrínseca das relações sociais da sociedade civil.
Poder
A prática do poder está associada permanentemente à instauração do medo como forma de institucionalizar este – medo – na forma psíquica, ética, moral, coação, coerção, dando legitimidade às classes dominantes, de sua dominação inseparável do exercício do poder.
Historicamente na sociedade capitalista a dominação se dá fundamentalmente através do medo e da violência a ela associada. Esta condição vem conectada à dominação instituída legal, jurídica, econômica, social e cultural onde através do Estado emanam as leis e o Direito que funcionam como um aparelho institucional das classes dominantes sendo, dentre várias, uma forma de instituir sua dominação, funcionando como uma atividade constitucionalmente estabelecida e democraticamente promulgada pelos órgãos do poder político: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Estes estão a serviço da exploração em todos os níveis em que ela se apresenta na sociedade civil, é a hegemonia da classe dominante imperando sobre a sociedade articulando esta – dominação – entre direito à propriedade privada dos meios sociais de produção, tendo como um dos vários fins a apropriação privada do saber, do conhecimento e da razão como mecanismos pseudodemocráticos onde os pensamentos difundidos pelos meios de comunicação, de informação atuam como verdadeiras “máquinas” de subjugação, difusão, inculcação, propaganda e intimidação social, econômica e política do capitalismo.
Marilena Chauí faz a seguinte colocação: (...) “Sabemos que um dos pontos mais importantes da discussão de Marx sobre a sociedade moderna encontra-se na questão sobre o poder. Marx indaga: como se dá a passagem da relação pessoal de dominação (existente na família sob a vontade do pai e na comunidade sob a vontade do chefe) à dominação impessoal por meio do Estado e, portanto, por meio da lei e do Direito? Como se explica que a relação social de exploração econômica se apresenta como relação política de dominação legal, jurídica e impessoal? Como se explica que vivamos em sociedades nas quais as desigualdades econômicas, sociais, culturais e as injustiças políticas não se apresentam como desigualdades, nem injustiças porque a lei e o Estado de Direito afirmam que todos são livres e iguais? Como explicar que as desigualdades, a exploração e a opressão, que definem as relações sociais no plano da sociedade civil, não apareçam dessa maneira nas relações políticas definidas a partir do Estado pela lei e o Direito? Como explicar que o Direito produza a injustiça? Como explicar que o Estado funcione como aparato policial repressivo, cause medo, em vez de nos livrar do medo?”
Mais do autor:

"O exercício do poder que vem associado ao medo é uma relação de dominação, articulando Estado de Direito com aparência democrática, as mais poderosas formas tecnológicas, as mais eficientes “máquinas” de subjugação social forçando a sociedade, em todos os seus níveis, a aceitá-las"

Chauí completa através do pensamento de Karl Marx: (...) “Uma das respostas de Marx às suas próprias perguntas é bastante conhecida: a sociedade capitalista, constituída pela divisão interna de classes e pela luta entre elas, requer para seu funcionamento, a fim de recompor-se como sociedade, aparecer como indivisa, embora seja inteiramente dividida. A divisão é proposta de duas maneiras. O primeiro ocultamento da divisão de classes se dá no interior da sociedade civil (isto é, dos interesses dos proprietários privados dos meios sociais de produção) pela afirmação de que há indivíduos e não classes sociais, de que esses indivíduos são livres e iguais, relacionando-se por meio de contratos (pois só pode haver contrato legalmente válido quando as partes contratantes são livres e iguais); assim, a sociedade civil, isto é, o mercado capitalista, aparece como uma rede ou uma teia de diferenças de interesses entre indivíduos privados, unificados por contrato. O segundo ocultamento da divisão de classes se faz pelo Estado, que, por meio da lei e do Direito positivo, está encarregado de garantir as relações jurídicas que regem a sociedade civil, oferecendo-se como polo de universalidade, generalidade e comunidades imaginárias”.
Marx constata que o Estado de Direito é uma abstração, pois a igualdade e a liberdade postuladas pela sociedade civil e promulgadas pelo Estado não existem.
A legalidade associada à ordem estabelecida dentro da sociedade capitalista necessita, portanto, que uma “máquina” repressora e violenta esteja em pleno funcionamento e, mais, que ela seja aceita como uma coisa natural, imutável e inerente ao conviver em sociedade.
Medo
O exercício do poder que vem associado ao medo é uma relação de dominação, articulando Estado de Direito com aparência democrática, as mais poderosas formas tecnológicas, as mais eficientes “máquinas” de subjugação social forçando a sociedade, em todos os seus níveis, a aceitá-las. Diante deste entendimento se esvaziam os direitos políticos dos cidadãos e dissemina a despolitização das sociedades.
Intimidação social, violência, apropriação dos meios de produção pelas classes dominantes, a aparência de democracia, a censura, clara ou subliminar são formas que os meios de comunicação utilizam não só para o domínio burguês, como para alicerçar a ideologia da sociedade de classes.
A hipocrisia dos meios de comunicação a serviço das classes dominantes realiza uma verdadeira disseminação de forma ampla, no intuito de petrificar no viver da sociedade civil, concebendo o estilo e a visão de mundo da classe burguesa como a única possível.

 Ari de Oliveira Zenha é economista

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O bode na sala da Justiça

Por Luciano Martins Costa em 25/11/2013 na edição 773

Os jornais noticiam nas edições de segunda-feira (25/11) a substituição do juiz das execuções penais do Distrito Federal encarregado de providenciar o cumprimento das sentenças do Supremo Tribunal Federal contra alguns dos condenados na Ação Penal 470. A principal controvérsia se refere ao tratamento conferido ao deputado José Genoíno, que foi encarcerado precipitadamente por ordem do presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, mesmo em convalescença após um grave procedimento cirúrgico.
A imprensa observa que o novo juiz encarregado de determinar as condições de cumprimento das penas em Brasília é filho de um dirigente do PSDB e de uma funcionária do Ministério da Ciência e Tecnologia que milita ativamente na campanha presidencial do senador Aécio Neves. Em sua página no Facebook (ver aqui), a mãe do magistrado não esconde a orientação política da família.
Esse é apenas um dos aspectos da confusão em que se transformou aquilo que a imprensa brasileira tem considerado como o “novo tempo” da Justiça no Brasil. O protagonismo exagerado do presidente da Suprema Corte contribui para acirrar radicalismos e se constitui, hoje, em fator de desestabilização política.
Bastaram poucos dias para que os fatos desmontassem a versão construída pela imprensa em torno do julgamento da Ação Penal 470. Logo após o início do cumprimento das penas, algumas personalidades do mundo jurídico se dão conta de que o que rege as decisões da mais alta corte nacional não é o propósito de fazer Justiça, mas um obscuro sentimento de vingança cujas razões precisam ser esclarecidas.
A se considerar certos comportamentos obsessivos do ministro, há alguma coisa de doentio nesse processo, que extrapola questões penais e ideológicas. Com a cautela que o protocolo exige, personalidades do mundo jurídico têm feito chegar à mídia seus cuidados com relação ao acúmulo de erros nesse processo.
Crimes onipresentes
Como nos cabe aqui observar a imprensa e não as instituições diretamente, convém fazer um retrospecto dos acontecimentos para estabelecer algumas responsabilidades.
Não é preciso grande esforço para reconhecer que, independentemente dos elementos objetivos que formam o processo da Ação Penal 470, a imprensa teve um papel central nas decisões dos ministros do Supremo Tribunal Federal, em especial nas funções do presidente da Corte.
Joaquim Barbosa, transformado em herói nacional, e outros ministros, revelaram possuir personalidades sensíveis à bajulação, o que transformou as sessões do Supremo em espetáculos midiáticos nos quais o princípio da Justiça foi submetido ao crivo da popularidade de seus protagonistas.
O encarceramento precipitado de onze dos doze condenados, em feriado nacional, explicita o propósito de ganhar as manchetes no fim de semana prologado, mais do que uma decisão baseada nas normas penais.
Valeu pelas manchetes.
Mas, daqui para a frente, a imprensa terá que administrar cuidadosamente o desempenho midiático do presidente do STF. A figura de Barbosa representa o bode na sala, que a imprensa vai ter que remover antes que comece o julgamento daquele outro processo por corrupção chamado de “mensalão tucano”.
A “nova era na democracia brasileira – a Era dos Corruptos na Cadeia”, anunciada na semana passada pela revista Época, será revelada, então, como mais uma dessas farsas que enchem nossos livros de História.
O Judiciário, que já arrastava a tradição do nepotismo e a maldição de produzir, em sua face mais perversa, os frutos da desigualdade social, agrega ao seu prontuário o personalismo a reboque da mídia.
Enquanto isso, na vida real seguem se acumulando nos cartórios as ações sem julgamento, e consolida-se na sociedade a convicção de que o crime sempre compensa – o caso da Ação Penal 470 é apenas “um ponto fora da curva”. Relatos de procuradores e juízes distritais indicam, por exemplo, que a violência contra a mulher se agrava no Brasil, a despeito da legislação específica, porque os culpados, mesmo quando condenados, cumprem apenas uma fração de suas sentenças. O crime organizado se sofistica, a corrupção virou estratégia em todas as instâncias do poder.
O livro intitulado Crimes onipresentes – Histórias reais sobre assassinatos, responsabilidade moral e impunidade, traz uma fração desse descalabro. O autor, o promotor de Justiça Ricardo Rangel de Andrade, descreve com realismo cruel como o crime é consentido e até estimulado pela inoperância da Justiça e pela corrupção policial. A verdadeira Justiça brasileira está descrita em suas páginas; a politicagem que desmoraliza o STF é a joia da coroa.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Roteiros para “sair do capitalismo”




Anselm Jappe filia-se à corrente do marxismo que se autodenomina “crítica do valor”. Os nomes mais conhecidos dessa vertente são Robert Kurz, recentemente falecido, e Moishe Postone. Com seu último livro, Crédito à morte: A decomposição do capitalismo e suas críticas, Jappe se credencia como mais que um divulgador. Atualiza essa teoria, destacando a pertinência de sua reflexão na análise da conjuntura e, sobretudo, procurando demonstrar, em tom polêmico, as insuficiências das contestações corriqueiras ao capitalismo.
A “crítica do valor” parte de uma interpretação de O capital que, na contramão da leitura impulsionada pela Segunda e Terceira Internacionais, não considera a denúncia da exploração e seus desdobramentos sob a forma de luta de classes como o ponto central da obra de Marx. Na trilha aberta por História e consciência de classe, de György Lukács, e por A teoria marxista do valor, de Isaak Illich Rubin, desdobrada posteriormente pela Escola de Frankfurt, considera que o eixo central da teoria marxista consiste na crítica ao “fetichismo da mercadoria” e às formas envolvidas nesse processo: valor, mercadoria, dinheiro, capital, trabalho etc.
Não se trata, porém, apenas de uma correção teórica. A leitura desenvolvida por essa vertente traduz uma análise histórica e uma opção política que atribui os fracassos do reformismo social-democrata e dos Estados ditos socialistas a uma compreensão equivocada do funcionamento do capitalismo, em particular, do papel nele desempenhado pela forma-mercadoria.
O diagnóstico do presente histórico, ancorado nessa linhagem, identifica, nas transformações recentes do capitalismo, sintomas de seu processo de decomposição. A circulação incessante da mercadoria dinheiro, pressuposto necessário da dinâmica do capital, funciona como uma espécie de “sujeito automático” que se depara cada vez mais com limites internos e externos. Internamente, o capital presencia o paradoxo de ter que incrementar inovações no processo de trabalho que tendem a reduzir a taxa de lucro e a própria massa de mais-valia, fonte primordial da atual crise econômica e social. Externamente, a lógica da acumulação, a exigência de ampliação contínua da produção, esbarra nos limites da natureza, situação que tende a amplificar a crise ecológica.
A força da reconstituição, por Jappe, dessa dupla crise, deriva da precisão e da argúcia com que demonstra seus efeitos na configuração contemporânea da sociabilidade e da subjetividade. A expansão inaudita da mercantilização, atingindo setores até então infensos ao “fetichismo da mercadoria”, intensifica as formas de relação social moldadas pela troca monetária, com o predomínio da abstração e da quantificação. Seu resultado mais palpável consiste no incremento da barbárie, patente cada vez mais não só no funcionamento do mercado, mas nas próprias políticas de Estado.
Em linha geral, no entanto, nessa fase, o capitalismo tende a promover, no âmbito das subjetividades, o narcisismo. Trata-se de uma neurose (ou psicose), cuja matriz, Jappe atribui a uma infantilização massiva oriunda da ênfase no consumo, na sedução das mercadorias e de uma dessimbolização em larga escala produzida pela indústria do entretenimento. A regressão a um estágio no qual prevalece o princípio do prazer, a dificuldade em aceitar a realidade, a projeção do eu sobre os objetos exteriores, no mínimo, dificultam a experiência da alteridade, condição imprescindível para um desenvolvimento psíquico maduro.
As polêmicas de Jappe contra as correntes contemporâneas críticas do capitalismo perpassam os dez artigos reunidos no livro. Intervenções no debate francês, os textos não se eximem de confrontar as principais reações intelectuais e políticas à crise do capitalismo.
A discussão é travada em patamares distintos. Num primeiro bloco, rejeita-se “o cidadanismo do tipo ATTAC, a caça aos especuladores e as críticas cujo único alvo é a alta cúpula financeira; mas também as propostas de volta à ‘política’ e à luta de classes”. Jappe designa-as como “populistas”, pois não criticam as bases do capitalismo, limitando-se a “propor reformas, procurar bodes expiatórios, procurar formas de antagonismo que afundaram com o próprio capitalismo”.
Num segundo bloco, propõe um “diálogo crítico” com tendências que julga capazes de indicar caminhos para uma superação real da sociedade capitalista. Inclui, nessa série, os teóricos do “dom”, organizados no grupo francês MAUSS, as posições defendidas por Jean-Claude Michéa e a tese, surgida no interior do ambientalismo, do “decrescimento”. As objeções que Jappe levanta referem-se, grosso modo, a uma compreensão insuficiente, por parte dessas vertentes, da lógica do capital. Desconhecendo as determinações primordiais do processo de acumulação, esses adversários do capitalismo correm o risco de propor metas ou roteiros insuficientes para “sair do capitalismo”.
Os dois últimos artigos do livro esboçam uma atualização do conceito frankfurtiano de “indústria cultural”. Jappe insiste na pertinência de distinções “qualitativas” no campo da arte e da cultura, contra o relativismo generalizado e o igualitarismo da “esquerda cultural”. Segundo ele, o pós-modernismo apenas replica a dominação da forma-mercadoria, com sua indiferença em relação ao conteúdo.
Concluo com uma citação indicativa de sua disposição em não se curvar a consensos consagrados como senso comum:
“a esquerda quis abolir hierarquias que podiam até fazer algum sentido, com a condição que não fossem estabelecidas como definitivas, que fossem modificáveis: as da inteligência, do gosto, da sensibilidade, do talento. A existência de uma hierarquia de valores contribui para negar e contestar a hierarquia do poder e do dinheiro que reina absoluta numa época em que se nega toda e qualquer hierarquia cultural”.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Dia internacional pelo fim da violência contra a mulher: como enfrentá-la no Brasil?

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Onde se concentra maior foco de problemas e quais suas consequências para a sociedade. O que mostram os dados pós-Maria da Penha

Por Cauê Seignemartin Ameni

O Dia Internacional pelo Fim da Violência Contra a Mulher, 25 de novembro, foi instituído em 1999 pela Organização das Nações Unidas (ONU). A data marca o brutal assassinato das irmãs Mirabal – Pátria, Minerva e Maria Teresa – pela ditadura Trujillo, na República Dominicana, em razão de sua luta contra os problemas sociais de seu país.
Já em 1993 a Assembleia Geral da ONU aprovara a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, definida como “todo ato de violência baseado em gênero que tem como resultado possível ou real um dano físico, sexual ou psicológico, inclusive as ameaças, a coerção ou a proibição arbitrária da liberdade, ocorra ela na rua ou em casa”. Outros tipos de violência, como o tráfico de mulheres, cruzam as fronteiras nacionais para alimentar a exploração sexual em diferentes países. Além das mulheres, as crianças são as mais atingidas.
No Brasil, segundo o estudo do IPEA “Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil”, estima-se que, entre 2009 e 2011, o país registrou 16,9 mil mortes de mulheres por conflito de gênero, ou feminicídios. Esse número indica uma taxa média de 5,8 mortes por causas violentas para cada grupo de 100 mil mulheres, ou 5.664 a cada ano, 472 a cada mês, 15,52 a cada dia, uma a cada hora e meia.
Conforme o estudo, “a violência contra a mulher compreende uma ampla gama de atos, desde a agressão verbal e outras formas de abuso emocional, até a violência física ou sexual. No extremo do espectro está o feminicídio, a morte intencional de uma mulher. Pode-se comparar estes óbitos à “ponta do iceberg”. Por sua vez, o “lado submerso do iceberg” esconde um mundo de violências não-declaradas, especialmente a violência rotineira contra mulheres no espaço do lar.”
Os dados mostram que mulheres jovens são as principais vítimas, com 31% na faixa etária de 20 a 29 anos e 23% na de 30 a 39 anos, ocorrendo majoritariamente na rua, com 31%, contra 29% em domicílio e 25% em hospital ou outro estabelecimento de saúde. A maior parte das vítimas tinham baixa escolaridade: 48% daquelas com 15 ou mais anos de idade tinham no máximo 8 anos de estudo.
Ainda conforme o estudo, no Brasil, a maior parte das vítimas é de negras (61%), com exceção da região Sul, com destaque para as regiões Nordeste (87%), Norte (83%) e Centro-Oeste (68%). O estado com a maior taxa de feminicídios é o Espirito Santo, com 11,24 a cada 100 mil – quase o dobro da média nacional –, seguido por Bahia (9,08), Alagoas (8,84), Roraima (8,51) e Pernambuco (7,81). As taxas mais baixas estão no Piauí (2,71), Santa Catarina (3,28) e São Paulo (3,74).
Internacionalmente, o Brasil é o sétimo país com maior número de feminicidios, segundo dados da Organização Mundial de Saúde e do Mapa da Violência (2012), atrás apenas de El Savador (1º), Trinidad e Tobago (2º), Guatemala (3º), Rússia (4º), Colômbia (6º) e Belize (6º).

Lei Maria da Penha

De acordo com a avaliação do impacto da Lei Maria da Penha, não houve influência capaz de reduzir o número de mortes, pois as taxas permaneceram estáveis antes e depois da vigência da nova lei, com apenas um pequeno decréscimo da taxa em 2007.
Diante disso, é de extrema importância que sociedade e governo continuem a lutar contra esse tipo de violência. Os feminicídios são eventos evitáveis, que abreviam vidas, causando perdas inestimáveis, além de consequências profundamente adversas para as futuras gerações.

“Inevitável Mundo Novo”?

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Cinquenta anos após morte de Aldous Huxley, sua obra alerta: avanço científico pode ser, em sociedades desiguais e mercantilizadas, caminho para barbárie

Por Ignacio Ramonet | Tradução: Teresa Van Acker

(Publicado originalmente no “Le Monde Diplomatique Brasil”, edição internet, setembro de 2000)

Seria pertinente reler, hoje, Admirável Mundo Novo? Seria pertinente retomar um livro escrito há aproximadamente 70 anos, numa época tão distante que nem sequer a televisão havia sido inventada? Seria essa obra algo além de uma curiosidade sociológica, um best seller comum e efêmero que, no ano de sua publicação, 1932, vendeu mais de um milhão de exemplares?
Essas questões parecem ainda mais pertinentes porque o gênero da obra — a fábula premonitória, a utopia tecno-científica, a ficção científica social — possui um alto grau de obsolescência. Nada envelhece tão rápido quanto o futuro. Ainda mais na literatura.
E, entretanto, quem superar essas reticências e novamente mergulhar nas páginas do Admirável Mundo Novo certamente ficará chocado com sua atualidade surpreendente. E irá constatar que o presente alcançou o passado, pelo menos por uma vez.
O romance, que se tornou um grande clássico do século 20, narra uma história que se passa num futuro distante, por volta de 2500, ou mais precisamente, “por volta do ano 600 da era fordista”. Satírica homenagem a Henry Ford (1863-1947), pioneiro norte-americano da indústria automobilística (e ainda hoje uma das famosas marcas do ramo), inventor de um método de organização do trabalho para a produção em série e da padronização das peças.
Essa técnica, pensada por Ford na década de 20, transformou, por assim dizer, os trabalhadores em autômatos, em robôs repetindo o mesmo gesto o dia inteiro. Apesar de seu caráter desumano, foi uma verdadeira revolução no universo industrial e rapidamente adotada, da Alemanha à União Soviética, por todas as grandes indústrias mecânicas do mundo. No mundo sindical e operário, e também entre os intelectuais, o fordismo suscitou críticas violentas, que artistas e criadores da época muitas vezes abordaram com indiscutível talento cáustico. Pensemos, por exemplo, em Metropolis, de Fritz Lang (1926), ou Tempos modernos (1935), de Charles Chaplin.
O autor de Admirável Mundo Novo, Aldous Leonard Huxley (1894-1963), era um homem afeiçoado à cultura, particularmente à cultura científica. O tipo do intelectual onisciente, sedutor e com opinião sobre quase tudo.
Nascido numa família inglesa à qual pertenceram numerosas personalidades célebres, Aldous Huxley era parente, por parte de mãe, do escritor Matthew Arnold (1822-1888), autor dramático, crítico, humanista, viajante e professor de poesia na Universidade de Oxford. Seu avô, Thomas Henry Huxley (1825-1895), era um conhecido naturalista, defensor das teorias evolucionistas de Darwin e autor de uma obra famosa sobre a origem da espécie humana (O lugar do homem na natureza, 1863). Finalmente, seu irmão Julian Huxley (1887-1975) era biólogo e filósofo, e também partidário das teorias da evolução. Especialista em genética, criticava, com muita pertinência, as teorias fantasistas do geneticista soviético Lyssenko. No período de 1946 a 1948, foi o primeiro diretor geral da Unesco.
Como não poderia deixar de ser, Aldous Huxley estudou em Eton e Oxford, os grandes “centros de condicionamento” das elites britânicas. Também ele havia pensado em estudar ciência, mas foi impedido devido a uma grave doença na visão. Aos vinte anos, quase cego, só conseguia ler com o auxílio de uma grossa lupa e aprendeu braille, como todos os cegos. Apesar da dolorosa deficiência que o acompanhou por toda a vida, Huxley começou a publicar seus primeiros livros de poemas aos vinte e cinco anos e, depois dos horrores da primeira guerra mundial (1914-1918), passou a manifestar uma visão do mundo irônica e desencantada.
Ao retornar de uma viagem à India, travou grande amizade com o escritor D.H. Lawrence (autor do conhecido romance O Amante de Lady Chatterley, 1928), que, já tuberculoso e às vésperas de sua morte — em 1930, em Veneza — iria exercer sobre si uma importante e duradoura influência.
Em seus primeiros romances (Crome Yellow, 1921; Antic Hay, 1923;Those Barrens Leaves, 1925; Point Counter Point, 1928), Aldous Huxley apresenta um universo no qual a cultura e o humanismo são ameaçados por aqueles que mais os deveriam proteger. Escritos com uma sinceridade cruel, esses livros são sátiras de uma inteligência aguçada e exprimem as fraquezas e desilusões da “geração perdida”. Ele mostra um humor frio, cortante, paradoxal, à moda de Jonathan Swift, ao evocar, com ceticismo, a sociedade da década de 20.
Nesse sentido, Admirável Mundo Novo, que é o livro mais representativo desse período, seria mais um conto filosófico à maneira de Voltaire, no qual o talento do escritor, ainda sendo grande, é ultrapassado pelo temperamento do moralista.
Essa visão pessimista do futuro e crítica feroz do culto positivista da ciência foi escrita no momento em que as conseqüências sociais da grande crise de 1929 castigavam as sociedades ocidentais e quando a credibilidade dos regimes democráticos capitalistas parecia vacilar. Antes da subida ao poder de Adolf Hitler, em 1933, o Admirável Mundo Novo denuncia a perspectiva aterrorizante de uma sociedade totalitária fascinada pelo progresso científico e convencida de poder oferecer uma felicidade obrigatória a seus cidadãos. Apresenta uma visão alucinante de uma humanidade desumanizada pelo acondicionamento à Pavlov [1] e pelo prazer ao alcance da pílula (o “soma”). Num mundo horrivelmente perfeito, a sociedade dissocia a sexualidade da procriação — por motivos eugênicos e produtivistas.
Em Admirável Mundo Novo, a americanização do planeta está completa: tudo padronizado e fordizado, tanto a produção de seres humanos, resultantes de manipulações genético-químicas, quanto a identidade das pessoas, produzida por hipnose auditiva, durante o sono — a hipnopedia, qualificada por um personagem do livro como a “maior força socializadora e moralizadora de todos os tempos”.
Os seres humanos são, portanto, “produzidos”, no sentido industrial do termo, em indústrias especializadas — os “centros de incubação e acondicionamento” — segundo modelos variados, de acordo com tarefas bem especializadas atribuídas a cada indivíduo e indispensáveis numa sociedade obcecada pela estabilidade.
No momento de sua fabricação num frasco de vidro, graças ao “método Bokanovsky” (que permite produzir até noventa e seis seres humanos quando, no passado, só era possível obter um único), cada óvulo — e depois cada embrião — recebe doses mais ou menos importantes de estímulos físicos e ingredientes químicos. Essas doses irão condicionar, de forma definitiva, a capacidade intelectual, e determinarão a que categoria e casta pertencerão, em ordem decrescente, esses seres humanos: Alfa, Beta, Delta, Gama, Ipsilon… segundo o grau de complexidade da atividade profissional a que estarão destinados.
Além do mais, cada ser humano é educado, desde nascença, nesses “Centros de acondicionamento do Estado” em função de valores específicos do seu grupo, recorrendo-se sistematicamente à hipnopedia para manipular seu espírito, para criar nele “reflexos condicionados definitivos” e fazer com que aceite seu destino. “Cem repetições três noites por semana, durante quatro anos, declara um especialista em hipnopedia. Sessenta e duas mil repetições criam a verdade.”
Dessa forma Aldous Huxley ilustrava, no livro, os riscos contidos em teses formuladas desde 1924 por John Watson, o pai do “behaviorismo”, “ciência da observação e controle do comportamento” Watson afirmava, friamente, que poderia pegar na rua, ao acaso, uma criança saudável, e fazer dela, conforme sua escolha, um médico, um advogado, um artista, um mendigo ou um ladrão, não importando para isso seu talento, suas preferências, suas tendências, suas capacidades, seus gostos ou a origem de seus antepassados.
Em Admirável Mundo Novo, que é fundamentalmente um manifesto humanista, é possível perceber, e com razão, uma crítica corrosiva à sociedade stalinista, da utopia soviética construída com mão de aço. Mas há também uma sátira clara à nova sociedade mecanizada, padronizada, automatizada que se instalava nos Estados Unidos em nome da modernidade tecnicista.
Huxley, excessivamente inteligente e admirador da ciência, exprime, nesse romance, no entanto, um profundo ceticismo em relação à idéia do progresso, uma desconfiança em relação à razão. Diante da invasão do materialismo, deixa uma das mais profundas peças de acusação às ameaças do cientificismo, da mecanização e do desprezo pela dignidade individual. No fundo, avalia com um desespero lúcido, a técnica que assegurará aos seres humanos um conforto exterior total, um aperfeiçoamento notável. Qualquer desejo, na medida em que puder ser manifestado e sentido, será satisfeito. Porém os homens terão perdido sua razão de ser. Irão tornar-se, eles mesmos, máquinas. Não será mais possível falar em condição humana, no sentido próprio.
O título original — Brave New World — é tomado emprestado de uma das últimas peças de William Shakespeare, The Tempest (1611). Miranda vê os príncipes de Nápoles desembarcarem de um navio naufragado e exclama: “Esplêndida humanidade, maravilhoso mundo novo, quem pode nutrir seres tão perfeitos!”
No espírito de Huxley, esse título é uma antífrase, pois o mundo que descreve nada tem de maravilhoso. É uma sociedade de castas, imutável, perene, onde tudo é programado e não há mais lugar para o acaso. Faz-se tábula rasa do passado, como recomenda A Internacional, o que, de fato, a cultura de massa realiza. Os monumentos clássicos de todas as civilizações foram derrubados, a literatura foi queimada, os museus destruídos, a história apagada.
Excesso de pessimismo ou simples lucidez? Sabemos que Huxley demonstrou, nesse livro, um senso excepcional de antecipação. A história recente demonstrou que suas profecias mais sombrias estavam em vias de se realizar, assim como, em matéria de manipulação, ele soube prever o surgimento de novas ameaças.
Pessimista e sombrio, o futuro visto por Aldous Huxley nos serve de advertência e nos incentiva, numa época de manipulações genéticas, de clonagem e da revolução do ser vivo, a acompanhar de perto os atuais progressos científicos e seus potenciais efeitos destrutivos.Admirável Mundo Novo ajuda a compreender o alcance dos riscos e os perigos com os quais nos deparamos, quando, por todos os lados, novamente, os “avanços científicos e técnicos” nos confrontam com desafios que põem em perigo o futuro de nosso planeta. E o futuro da espécie humana.