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domingo, 31 de março de 2013

É isso a felicidade?


Foto: Galeria de Mr Conguito/Flickr

A tarde toda deste domingo esteve nublada, por isso a Rô e eu fomos andar mais cedo. Saímos numa hora em que normalmente o sol descarrega sua raiva sobre o mundo. Ninguém se arrisca muito, andando pelas ruas. Hoje o dia estava diferente, e notamos isso logo ao sair de casa. As pessoas, num domingo à tarde, em geral vão-se tornando melancólicas por causa da segunda, que se aproxima, mas sem desistir de buscar até o último segundo sua quota de felicidade. Via-se bem que não era um dia qualquer, destes que nossa cultura pragmática chama de úteis.


Nos primeiros quinhentos metros encontramos crianças brincando na rua: vôlei por cima de um elástico, uma ponta presa na veneziana da esquerda e a outra num ferro que sobrou no muro inacabado, à direita; amarelinha no asfalto, riscada com caco de telha, terminando em um céu todo estrelado, onde as crianças pisavam mesmo sem conhecer o Orestes Barbosa; um par de tênis servindo de traves para a pelada; meninas e meninos correndo uns atrás dos outros numa brincadeira que não cheguei a entender. E lá íamos nós, singrando aquele mar de crianças até sairmos na outra margem.

Duzentos metros à frente deparamos com um jovem de terno surrado e gravata berrante. Tinha a testa enrugada, coberta de suor, e um olhar atônito, como costumam ser as pessoas que vão prestar contas de sua semana. Levava um livro grosso e preto na mão. Quem sabe um varal cheio de pecados, na consciência.

Na avenida das Sibipirunas, uma avenida que já visitou esta coluna, nossa marcha foi interrompida por um velho Opala que saiu do nada, em alta velocidade, e sumiu em poucos segundos. Em seu interior, um menino de boné com a aba virada para as costas, provavelmente surdo, porque o barulho do escapamento aberto não conseguia suplantar o volume de seu aparelho de som. Você sabe  como é o barulho de uma bate-estaca? Assim mesmo. O garoto ia com pressa de chegar e, chegando, teria pressa de fazer; começando, viria a pressa de terminar e, terminando, sentiria a pressa de viver, que é a mesma pressa de morrer. É a isso que eles dão o nome de “curtir”.

Em um dos quarteirões da avenida, existem apenas três casas. Duas, separadas apenas por um muro, ficam perto da esquina. A outra, no meio do quarteirão, vive isolada entre terrenos baldios. Lembro-me vagamente de que havia um casal sentado no piso da varanda com os pés na calçada. É uma casinha simples, como simples me pareceram seus moradores, quando ali passamos pela segunda vez e aquelas presenças me chamaram a atenção. Domingo à tarde, o almoço digerido, aproveitavam aquela sombra nebulosa, pois isso não é coisa que se desperdice por aqui. De vez em quando moviam os lábios, parecendo falar. Uma vez o velhinho coçou o braço. O domingo se escoava lentamente, e a sensação de que o prazer vai chegando ao fim parecia não afetá-los. Esperavam, apenas, o fim do dia, da semana, o fim. Não estavam preocupados com o efeito estufa tampouco com a crise econômica da Europa. Desfrutavam fisicamente a passagem da brisa e do tempo.

Cada um, a seu modo, ia em busca de alguma coisa que a gente pode chamar de felicidade. Quanto a mim, encontrei a minha chegando ao fim desta crônica.

Menalton Braff


Quase 50 anos do Golpe de 1964: nada a comemorar!

Aos que partiram sem poder dizer adeus.

13.3.28_BlogPor Caio Toledo.











Na data em que o imaginário popular consagra como o “dia da mentira”, 49 anos atrás era rompida a legalidade democrática instituída no Brasil com a Constituição de 1946. Hoje, a quase totalidade das entidades da sociedade civil (de empresários industriais e rurais, de banqueiros, de grupos religiosos e culturais, da grande imprensa etc.) que conspirou, endossou e promoveu a derrubada do governo democrático de João Goulart (1961-1964) não festejará o golpe civil-militar de 1964. Nestes dias, na grande imprensa brasileira que apoiou o golpe de 1964 (e, por alguns anos, atuou como aparelho ideológico da ditadura militar) – entre eles, os jornais O Globo, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil –, nenhum editorial será publicado para render homenagem à ação dos militares golpistas. (Nem mesmo, a Folha de S. Paulo se atreverá a afirmar, como fez em seu editorial de 17/02/2009, que o regime de 1964 – comparado com as ditaduras da Argentina e do Chile – teria sido uma “ditabranda”…)
Provavelmente, apenas alguns reduzidos setores das Forças Armadas – em especial, os oficiais da reserva –, promoverão, em recintos fechados, encontros para lembrar a “Revolução redentora” de 31 de março de 1964. O fato é que nem mesmo blogueiros porta-vozes da direita civil brasileira – entre eles, alguns jornalistas de VejaO GloboEstadão etc. –, evocarão essa data como o dia em que a democracia brasileira teria sido salva da “corrupção”, da “subversão política” e da “ameaça comunista”.
Pode ser afirmado que na “guerra de narrativas” sobre o significado e a natureza deste crucial evento da história política brasileira, os “vitoriosos de abril”, gradativamente, tornaram-se os “perdedores” da luta ideológica. Hoje, as representações políticas e simbólicas dominantes nos meios editoriais, políticos e culturais consagram que 1964 não foi uma Revolução, mas um movimento golpista; ou seja, 1964 foi (a) um golpe que impediu a ampliação da democracia política brasileira nos anos 1960; (b) um golpe contra as reformas sociais e políticas e (c) um golpe contra a politização dos trabalhadores e o promissor debate de ideias que, de norte a sul, intensamente ocorria do país no pré-1964.
Em síntese, hoje, prevalece a compreensão de que nos “tempos de Goulart as classes dominantes (nacionais e internacionais) e seus aparelhos ideológicos e repressivos” – diante das iniciativas e reivindicações dos trabalhadores (das zonas rurais e urbanas) e de setores das camadas médias –, alardeavam a “subversão da lei e da ordem”, a “quebra da disciplina e hierarquia” dentro das Forças Armadas, a “crise de autoridade” do governo Goulart e, de forma ainda mais dramática, a “comunização do país”. Convenhamos que, por vezes expressas através duma retórica “radical” (“reformas na lei ou na marra”, “forca aos gorilas!” etc.), as reivindicações por mudanças socioeconômicas e as demandas políticas da época visavam, fundamentalmente, o alargamento da democracia política e a realização de reformas no capitalismo brasileiro.
Contra algumas formulações “revisionistas” que, hoje, insinuam “tendências golpistas” por parte do governo João Goulart ou das “esquerdas radicais”, devemos enfatizar que quem planejou, articulou e desencadeou o golpe contra a democracia política foi a alta hierarquia das Forças Armadas – incentivada e respaldada pelo empresariado (industrial, rural, financeiro, grande imprensa e empresas multinacionais) – bem como alguns setores das classes médias brasileiras (entidades e associações femininas católicas, de pequenos comerciantes etc.) Está amplamente documentado que, desde 1961 – antes, pois, da chamada “agitação” ou “subversão” das esquerdas –, alguns desses setores começaram a se organizar política e ideologicamente para inviabilizar o governo João Goulart. A ampla mobilização democrática pelas reformas sociais e políticas, apoiada pelo executivo, teve como efeito a ampliação da conspiração civil-militar e o amadurecimento da decisão dos golpistas de decretar o fim do regime político de 1946.
Destruindo as organizações políticas e reprimindo os movimentos sociais de esquerda e progressistas, o golpe foi saudado pelas associações representativas do conjunto das classes dominantes, pela alta cúpula da Igreja católica, pelos grandes meios de comunicação etc. como uma autêntica “Revolução redentora”. Por sua vez, a administração norte-americana de Lyndon Johnson (1963-1969) – que ficou poupada de fornecer o apoio bélico e logístico aos golpistas –, congratulou-se com os militares e civis brasileiros pela rapidez e eficácia da “ação revolucionária”. Para satisfação do Pentágono, da CIA, da Embaixada norte-americana, das empresas multinacionais e do Vaticano, uma “grandiosa Cuba” ao sul do Equador tinha sido evitada!
Embora fosse visto positivamente pelos trabalhadores, pelas baixas classes médias e suas entidades políticas, o governo João Goulart ruiu como um “castelo de areia”. Dois de seus principais pilares de apoio, como apregoavam os setores nacionalistas, mostraram ser autênticas “peças de ficção”. De um lado, o propalado “dispositivo militar” que seria comandado pelos chamados “generais do povo”; de outro, o chamado “quarto poder” que estaria representado pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). A rigor, ambos assistiram, passivamente, a queda inglória de um governo a quem juravam, até 24 horas antes, fidelidade até a morte!
Desorganizadas e fragmentadas, as entidades progressistas e de esquerda – muitas delas subordinadas ou tuteladas pelo governo Goulart – não ofereceram qualquer resistência à quartelada militar. Sabe-se que, às vésperas de abril, algumas lideranças de esquerda afirmavam que os golpistas, caso atrevessem quebrar a ordem constitucional, teriam as “cabeças cortadas”. Mas, como mostraram os “duros fatos da vida”, tudo não passava de uma trágica e cortante metáfora. Com a ação dos “vitoriosos de abril”, a retórica, no entanto, tornou-se, após 1º. de abril, uma cruel realidade para muitos homens e mulheres durante os longos e sombrios 21 anos da ditadura militar.
49 anos depois, nada há, pois, a comemorar. O golpe de 1964 foi um infausto acontecimento, pois implicou efeitos perversos e nefastos ao processo de desenvolvimento econômico, político e cultural do Brasil (que, sabemos, ainda se refletem nos tempos presentes). Decorridos 49 anos do golpe, o conjunto da sociedade brasileira repudia a data; no entanto, os democratas progressistas não podem se contentar com a derrota que os golpistas sofreram no plano ideológico e cultural.
Neste sentido, os progressistas não podem se calar diante da realidade de que o regime democrático vigente no Brasil ainda não fez plena justiça às vítimas da ditadura militar; devem, pois, se empenhar com todas suas forças e inteligência para que a verdade sobre os fatos ocorridos entre 1964 e 1985 seja plenamente conhecida. Tendo em vista que o “direito à justiça” e o “direito à verdade” são condições e pressupostos de um regime democrático, não se pode senão concluir que a democracia política no Brasil contemporâneo não é ainda uma realidade sólida e consistente.
***
Caio Toledo é professor aposentado da Unicamp. Graduado em filosofia pela USP em 1968 e doutor pela UNESP em 1974, atualmente integra o comitê editorial do blog marxismo21. Organizou, entre outros, 1964: visões críticas do golpe – democracia e reformas no populismo. Colabora com o Blog da 

A mídia e o golpe militar de 1964

 

 

Por Altamiro Borges

Segunda-feira, 1º de abril, marca os 49 anos do fatídico golpe civil-militar de 1964. Na época, o imperialismo estadunidense, os latifundiários e parte da burguesia nativa derrubaram o governo democraticamente eleito de João Goulart. Naquela época, a imprensa teve papel destacado nos preparativos do golpe. Na sequência, muitos jornalões continuaram apoiando a ditadura, as suas torturas e assassinatos. Outros engoliram o seu próprio veneno, sofrendo censura e perseguições.

Nesta triste data da história brasileira, vale à pena recordar os editoriais dos jornais burgueses – que clamaram pelo golpe, aplaudiram a instalação da ditadura militar e elogiaram a sua violência contra os democratas. No passado, os militares foram acionados para defender os saqueadores da nação. Hoje, esse papel é desempenhado pela mídia privada, que continua orquestrando golpes contra a democracia. Daí a importância de relembrar sempre os seus editorais da época:

O golpismo do jornal O Globo

“Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares que os protegeram de seus inimigos. Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais”. O Globo, 2 de abril de 1964.

“Fugiu Goulart e a democracia está sendo restaurada..., atendendo aos anseios nacionais de paz, tranqüilidade e progresso... As Forças Armadas chamaram a si a tarefa de restaurar a nação na integridade de seus direitos, livrando-a do amargo fim que lhe estava reservado pelos vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal. O Globo, 2 de abril de 1964.

“Ressurge a democracia! Vive a nação dias gloriosos... Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas que, obedientes a seus chefes, demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições. Como dizíamos, no editorial de anteontem, a legalidade não poderia ter a garantia da subversão, a ancora dos agitadores, o anteparo da desordem. Em nome da legalidade não seria legítimo admitir o assassínio das instituições, como se vinha fazendo, diante da Nação horrorizada”. O Globo, 4 de abril de 1964.

“A revolução democrática antecedeu em um mês a revolução comunista”. O Globo, 5 de abril de 1964.

Conluio dos jornais golpistas

“Minas desta vez está conosco... Dentro de poucas horas, essas forças não serão mais do que uma parcela mínima da incontável legião de brasileiros que anseiam por demonstrar definitivamente ao caudilho que a nação jamais se vergará às suas imposições”. O Estado de S.Paulo, 1º de abril de 1964.

“Escorraçado, amordaçado e acovardado, deixou o poder como imperativo de legítima vontade popular o Sr João Belchior Marques Goulart, infame líder dos comuno-carreiristas-negocistas-sindicalistas. Um dos maiores gatunos que a história brasileira já registrou, o Sr João Goulart passa outra vez à história, agora também como um dos grandes covardes que ela já conheceu”. Tribuna da Imprensa, 2 de abril de 1964.

“Desde ontem se instalou no país a verdadeira legalidade... Legalidade que o caudilho não quis preservar, violando-a no que de mais fundamental ela tem: a disciplina e a hierarquia militares. A legalidade está conosco e não com o caudilho aliado dos comunistas”. Jornal do Brasil, 1º de abril de 1964.

“Golpe? É crime só punível pela deposição pura e simples do Presidente. Atentar contra a Federação é crime de lesa-pátria. Aqui acusamos o Sr. João Goulart de crime de lesa-pátria. Jogou-nos na luta fratricida, desordem social e corrupção generalizada”. Jornal do Brasil, 1º de abril de 1964.

“Pontes de Miranda diz que Forças Armadas violaram a Constituição para poder salvá-la”. Jornal do Brasil, 6 de abril de 1964.

“Multidões em júbilo na Praça da Liberdade. Ovacionados o governador do estado e chefes militares. O ponto culminante das comemorações que ontem fizeram em Belo Horizonte, pela vitória do movimento pela paz e pela democracia foi, sem dúvida, a concentração popular defronte ao Palácio da Liberdade”. O Estado de Minas, 2 de abril de 1964.

“A população de Copacabana saiu às ruas, em verdadeiro carnaval, saudando as tropas do Exército. Chuvas de papéis picados caíam das janelas dos edifícios enquanto o povo dava vazão, nas ruas, ao seu contentamento”. O Dia, 2 de abril de 1964.

“A paz alcançada. A vitória da causa democrática abre o País a perspectiva de trabalhar em paz e de vencer as graves dificuldades atuais. Não se pode, evidentemente, aceitar que essa perspectiva seja toldada, que os ânimos sejam postos a fogo. Assim o querem as Forças Armadas, assim o quer o povo brasileiro e assim deverá ser, pelo bem do Brasil”. O Povo, 3 de abril de 1964.

“Milhares de pessoas compareceram, ontem, às solenidades que marcaram a posse do marechal Humberto Castelo Branco na Presidência da República... O ato de posse do presidente Castelo Branco revestiu-se do mais alto sentido democrático, tal o apoio que obteve”. Correio Braziliense, 16 de abril de 1964.

Apoio à ditadura sanguinária

“Um governo sério, responsável, respeitável e com indiscutível apoio popular, está levando o Brasil pelos seguros caminhos do desenvolvimento com justiça social – realidade que nenhum brasileiro lúcido pode negar, e que o mundo todo reconhece e proclama”. Folha de S.Paulo, 22 de setembro de 1971.

“Vive o País, há nove anos, um desses períodos férteis em programas e inspirações, graças à transposição do desejo para a vontade de crescer e afirmar-se. Negue-se tudo a essa revolução brasileira, menos que ela não moveu o país, com o apoio de todas as classes representativas, numa direção que já a destaca entre as nações com parcela maior de responsabilidades”. Jornal do Brasil, 31 de março de 1973.

“Participamos da Revolução de 1964 identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada”. Editorial de Roberto Marinho, O Globo, 7 de outubro de 1984.

sábado, 30 de março de 2013

Polêmica: uma Rede e seus nós ...


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Quarenta dias após lançamento do partido de Marina Silva, dois textos debatem, a partir de distintas perspectivas, seu sentido. Por Inês Castilho e José Roberto Cabrera



A rede e o anzol

vermelho



Há um silêncio ensurdecedor no documento que funda novo partido: critica-se insustentabilidade, mas não as relações sociais que a provocam


Por José Roberto Cabrera*


Nosso sistema partidário evoluiu ao longo das últimas décadas transitando de um bipartidarismo domesticado a um multipartidarismo insosso. O esforço empreendido por algumas lideranças políticas, sob iniciativa de Marina Silva, na criação da #Rede Sustentabilidade merece algumas reflexões, para não cairmos no maniqueísmo dominante entre os principais partidos brasileiros e no pensamento político rasteiro.
Ainda que não se deva julgar as pessoas e as organizações pelo que elas pensam de si próprias, o anúncio de suas intenções, os programas propostos e o espaço desejado de inserção revelam os possíveis caminhos que devem ser trilhados no futuro.
A #rede, como se autorefere, reúne pessoas e grupos oriundos de outros partidos e organizações. Seu manifesto e estatuto propõem reinventar a política brasileira, recuperar o caráter republicano e democrático, num modelo de organização mais horizontal e aberta, procurando congregar a diversidade em torno de uma ação ética e transformadora da prática política tradicional, clientelista e privatista.
Os documentos aprovados, no encontro de 16 de fevereiro de 2013, e registrados em cartório exaltam a necessidade de renovação da política, da gestão do Estado e das conexões entre os cidadãos e seus representantes numa teia viva de interações capazes de construir um novo projeto de desenvolvimento baseado na sustentabilidade, a inclusão a diversidade e a igualdade, levando em conta a “ética da urgência”.
Os fundadores da #rede propõem algumas mudanças no funcionamento do novo partido como, por exemplo, a limitação das doações de campanha, a proibição da aceitação de doações de empresas de armas, cigarros, bebidas e agrotóxicos, além de permitirem as “candidaturas cívicas independentes”, de pessoas com compatilibidade programática, mas não filiadas à #rede.
Ainda que a ideia de rede seja interpretada como algo vivo e não hierárquico, o estatuto da #rede escorrega e não foge das normas legais acerca das atribuições de cada esfera organizacional. Ao mesmo tempo, os mecanismos ditos inovadores indicam problemas incontornáveis, como o fato de a legislação vigente (lei 9504, art. 9º) não permitir a eleição de cidadão que não seja filiado a um partido político.
Note-se que a exclusão de alguns setores do processo de doação de campanha (armas, cigarro, bebidas e agrotóxicos), além de pouco eficaz não aborda de frente alguns problemas apontados nos documentos aprovados. Embora o item que regulamente as doações sugira que caso existam contradições entre os princípios que orientam a #rede e as atividades dos doadores elas devem ser suprimidas, a abordagem desse tema aponta ou a submissão à lógica mercantil vigente, da economia verde, ou o escancaramento de conflitos de grande monta.
Por exemplo, o deputado do PSDB de São Paulo, agora na #rede, Walter Feldman, declarou à justiça eleitoral que dos quase 4 milhões de reais recebidos em doações em 2010, metade foi oriunda de empresas ligadas ao mercado imobiliário (Bélgica, Multiplan, Wtorre), à construção civil (OAS, Camargo Corrêa), à indústria química (Suzano, Bandeirante, Votorantim), e de papel e celulose (Klabin).
Não que o setor da construção civil e da indústria química sejam, por si sós, ética e moralmente condenáveis em função de suas atividades. Mas o indicador de que a #rede propõe um novo modelo de desenvolvimento baseado na ecologia, na sustentabilidade, na inclusão fatalmente colocará em xeque o modelo sobre o qual tais empresas estão alicerçadas.
Sobre a questão programática e ideológica, ainda que não tenhamos em mãos um programa para ser analisado, o manifesto de fundação é pouco preciso, para não dizer ambíguo, em relação a diversos temas. Não precisamos de uma armadura que nos amarre a algum campo, mas achar que a dualidade entre direita e esquerda está superada é de um modismo perigoso.
Não que compartilhemos desse maniqueísmo que assenta o PT e o PSDB de cada lado do espectro partidário, ainda que a prática tenha mostrado que isso não seja tão real, mas os limites são claros em não indicar opiniões acerca dos debates ideológicos. Não assumir uma referência política poderia até refletir o desgaste que essa polarização passou, mas não ter um posicionamento indica a permanência de contradições e conflitos no interior da #rede que provavelmente irão se manifestar em breve.
Num sistema partidário como o nosso, onde o número de partidos está descolado da real diversidade política e ideológica, o surgimento de uma nova iniciativa desse tipo deve ser bem-vindo, em particular se a crítica se transformar em movimento em direção a algo novo, capaz de superar os fisiologismos e os sectarismos inerentes ao nosso espectro político partidário – mas que tal movimento não nos faça esquecer de suas contradições fundantes, as quais podem limitá-lo na origem.
Por exemplo, definir a premissa da sustentabilidade como eixo sem realizar uma crítica radical sobre a lógica de funcionamento do capitalismo é abrir espaço para diversas contradições.
Todos os setores da sociedade devem se comprometer com a preservação ambiental e, ainda, responder às necessidades da população global, que deve chegar a 9 bilhões de pessoas até 2050.”(…) “É preciso um esforço conjunto, com diferentes pontos de vista, para tomadas de decisão que enfrentem este grande desafio do século 21”. Esse texto poderia compor o leque de reflexões apresentadas pela #rede, no entanto faz parte do sitio da empresa Monsanto, líder do setor de agrotóxicos e transgênicos no Brasil.
Na prática, a #rede assenta-se muito mais numa perspectiva de crítica ética e moral que, propriamente, numa análise concreta acerca dos padrões de reprodução do capital. A lógica de funcionamento do sistema de reprodução de valores de troca, ou seja, de produção de mercadorias tendendo ao infinito e que exige, para isso, a ampliação das fontes energéticas e de matérias-primas, numa escalada incompatível com as bases materiais de que dispomos no planeta, não é atacada pela #rede.
Não é possível contestar a sociedade de consumo instituída sem atacar os mecanismos que a mantém funcionando e se reproduzindo. Esse talvez seja “o silêncio ensurdecedor” do texto fundador da #rede. Pode até ser que estejamos colocando o carro na frente dos bois, mas não podemos deixar pra apontar essas limitações quando o carro começar a descer a ladeira e só tivermos um anzol para segurá-lo.

José Roberto Cabrera é mestre e doutor em Ciência Política Unicamp, Professor Esanc e Unip Campinas-SP






O caminho, ao caminhar

verde


Rede pode não ter projeto para novo sistema histórico. Mas descobriu que para chegar a tanto será preciso nova democracia


Por Inês Castilho


Novas ideias buscam renovar os ares na política brasileira. Alinhadas a algumas tendências mundiais, que tateiam caminhos para além da política tradicional, corroída por seus vícios, elas vêm tecer um fio de esperança quando os ouvidos de Brasília se fazem mais moucos – como ao recusar-se a escutar a voz das ruas contra Renan Calheiros na presidência do Senado. Mas haverá, no jogo duro da política, lugar para a transparência, o diálogo, a participação – valores prometidos pela Rede Sustentabilidade, de Marina Silva? Depois do PT dos primórdios, é a vez de outro partido protagonizar o embate entre idealismo e pragmatismo.
Lançada em Brasília dia 16 de fevereiro por cerca de 1,5 mil seguidores – uma diversidade de ativistas, intelectuais, políticos, educadores, estudantes, religiosos –, muitos do quais se deslocaram por conta própria até o Cerrado, a Rede foi construída em torno de Marina Silva. Nome que é um símbolo, no país e fora dele, pela origem, pela trajetória, pelo gênero, tendo como eixo o aprofundamento da democracia e a sustentabilidade – econômica, social, ambiental, política e cultural.
Ninguém segura uma ideia cujo tempo chegou”, repete Marina, como um mantra. Nascida em 8 de fevereiro de 1958 e criada no seringal Bagaço, a 70 quilômetros de Rio Branco, no Acre, Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima foi companheira de luta de Chico Mendes, vereadora, deputada estadual, senadora e ministra – sempre pelo PT –, e candidata a presidente da República pelo PV. Depositária de esperanças pela ética na política, recolhe no lançamento da Rede gente de (quase) todo o espectro político.
Compareceram ao lançamento do futuro partido pessoas originárias do PT, PSOL, PV, PPS, PSDB e PMDB de mais da metade dos estados do País. A diversidade marca também os que têm mandato político: Domingos Dutra, deputado federal quilombola pelo PT do Maranhão, ferrenho opositor da família Sarney; Ricardo Young, vereador pelo PPS-SP, uma voz do empresariado dito progressista; Alfredo Sirkis, fundador e deputado federal pelo PV do Rio de Janeiro; Walter Feldman, deputado federal pelo PSDB paulista e até outro dia serrista roxo; e Heloísa Helena, ex-companheira de Senado pelo PT, hoje vereadora de Maceió pelo PSOL alagoano. Evangélica como Marina, foi dela que a ex-senadora do Acre mais se aproximou, de mãos dadas, na abertura do evento. “Na vertigem, a gente busca uma borda para se apoiar”, repete Marina.
O lançamento de um partido cujos fundamentos são a democracia e a causa socioambiental foi também aplaudido por artistas como Fernando Meirelles, Gilberto Gil, Wagner Moura, Marcos Palmeira e Lenine. “A Rede são redes”, poematiza Arnaldo Antunes. No círculo mais próximo da provável candidata presidencial em 2014, estão nomes como o da educadora Maria Alice (Neca) Setúbal, herdeira do banco Itaú; Guilherme Leal, copresidente do conselho de administração da Natura; João Paulo Capobianco, do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS); Pedro Ivo de Souza Batista, da Associação Terrazul; o economista Eduardo Giannetti da Fonseca; e o professor da USP Ricardo Abramovay.
A Rede se origina do Movimento por uma Nova Política (MNP), os Sonháticos, criado na vazante das eleições de 2010 – quando os 19 milhões de votos de Marina, então PV, levaram a disputa entre PT e PSDB ao segundo turno. Com a desfiliação de Marina e seus seguidores do PV, o MNP foi tecido em sites, no Facebook e no Twitter. Ativistas do MNP já haviam criado em 2009 o IDS, que se mobilizou no FlorestaFazaDiferença, organizou rodas de conversa sobre democracia e sustentabilidade, pesquisou educação, juventude e política cidadã.
“Um dos eixos conceituais desse movimento é o de ativismo autoral1, turbinado pelas redes sociais, sem participação direta em instituições. A Rede pretende estimular esse ativismo”, diz o sociólogo André Takahashi, ele mesmo um ativista socioambiental que integra a Comissão Executiva Nacional do futuro partido. Desde 2000 no movimento anticapitalismo global, Taka, como é conhecido, circula próximo aos coletivos Fora do Eixo, Matilha Cultural, Casa de Cultura Digital e ExisteAmoremSP.
Base social
Pesquisa recente do Datafolha revela que continuam fiéis a Marina os 19 milhões de votos que ela recebeu em 2010. José Eli da Veiga, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP e do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), considera que, além da causa ambiental, existam outras motivações para esse apoio. “Há um número grande de evangélicos, a fração que valoriza sua ética e coerência, mas muitos católicos também. E talvez uma base que tem com ela identidade de classe, como a população tem com o Lula”, arrisca.
Criticada pela proximidade com uma elite, a Rede tenderia a atrair forças conservadoras e progressistas, na opinião de Marco Antonio Carvalho Teixeira, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eaesp-FGV). “Apenas um projeto político, que ainda não foi apresentado à sociedade, pode unir essas forças. É um projeto ecológico, de ecodesenvolvimento? É preciso defini-lo, pois só assim a Rede vai conseguir justificar a diversidade e ser capaz de atuar unificadamente”, diz.
Para Veiga, a nova legenda não será um movimento de massa. “Os sociólogos classificam como pós-materialistas as pessoas que desejam democracia para valer, mas, em um país carente como o Brasil, elas estão mais ligadas a questões de consumo e de salário, e tendem a votar antes como materialistas”, diz. De fato, atingir o grande público é o maior desafio da Rede, concorda Marco Antonio Teixeira. “Como chegar embaixo, na ponta, com uma linguagem de difícil assimilação? A internet já vem desempenhando um papel importante na movimentação da Rede, e, pela própria natureza do seu debate e facilidade de multiplicação, será um instrumento valioso”, diz.
Na visão da socióloga e jornalista Maristela Bernardo, também fundadora do partido, a sustentabilidade como eixo da sociedade exige um sistema de tomada de decisão mais aberto e horizontal. “Temos de pensar outro sistema produtivo, uma mudança do motor essencial das sociedades, que é o excesso de consumo e a decorrente naturalização das injustiças”, afirma.
Mas isso parece não ser suficiente – é preciso deixar claro qual é o seu programa político, defende Teixeira. “A Rede tem uma crítica ao governo não tão contundente e a bandeira de ser diferente. Mas precisa mostrar, concretamente, o que é ser diferente. O que fará com relação ao sistema financeiro, às grandes obras, como vai atrair investimentos externos? O que é essa nova economia que Marina diz que o governo não entende?”, questiona. “Até aqui, não temos essas respostas.”
O novo partido – de número 31 do país, se conseguir meio milhão de assinaturas em pelo menos nove estados até um ano antes das eleições de outubro de 2014, se quiser concorrer, e os R$ 500 mil necessários para buscá-las – pertence à linha alternativa dos partidos verdes e dos recentes partidos Pirata europeus, do Syriza da Grécia e do Partido do Futuro da Espanha – que exigem democracia, ponto, como dizem os espanhóis. Mas que não por isso deixam de ser controversos, como o Movimento 5 Estrelas, da Itália, que com apenas três anos já conquistou cargos legislativos e executivos e acaba de colocar a governabilidade do país em uma sinuca de bico – ao receber 25% dos votos para a Câmara dos Deputados e quase 24% para o Senado e rejeitar coalizões tanto à esquerda quanto à direita.
Para o ativista Takahashi, a Rede é um espaço de experimentação, como ao criar o Conselho Político Cidadão, para que representantes de movimentos sociais, intelectuais e formadores de opinião de fora do partido possam participar e exercer um controle social independente sobre ele. Outro exemplo é a minirreforma de baixo para cima, representada pela limitação do exercício de cargos eleitos a dois mandatos, pelas candidaturas avulsas, e pelo limite às doações e à restrição do tipo de empresas doadoras – dos setores de agrotóxicos, bebidas alcoólicas, tabaco e armamento.
A Rede acerta quando traz à tona o debate sobre o financiamento de campanha, mas erra na definição de exclusões na sua política de doações corporativas, principalmente ao deixar de fora as construtoras, responsáveis pelos maiores escândalos de corrupção do Brasil, considera Teixeira, da Eaesp-FGV.
Segundo Takahashi, há uma demanda interna grande para incluir empreiteiras, mineradoras e bancos. Mas, para Teixeira, a questão é muito mais complexa: tanto o financiamento público como o privado trazem riscos. Imagine que, por esse critério, a Zara, por exemplo, poderia doar – mas ela é acusada de conivência com o trabalho escravo. “Temos é de criar mecanismos mais rigorosos de controle e transparência institucional, de combate ao caixa 2”, afirma o professor.
Utopias governam?
Não se pode caracterizar a criação desse partido apenas como suporte para uma candidatura de Marina em 2014, analisa Maristela Bernardo. “Seria muito pouco para tudo que essa movimentação pode significar.” Para José Eli da Veiga, é muito cedo para falar em eleições. “É preciso pensar sob uma perspectiva ampla – o PT esperou 22 anos para chegar à Presidência da República. Ninguém é realmente competitivo sem ter uma rede de vereadores e prefeitos como cabos eleitorais.”
Mas, na era da aceleração digital, talvez não seja impossível ver Marina Silva eleita já em 2014. “Se ela for para o segundo turno, agrega todos os setores antipetistas – PSDB, DEM – e tem chances de vencer”, sustenta Teixeira. E é então que haverá o confronto entre idealismo e pragmatismo. “A chegada ao governo significa a perda da ingenuidade, pois só é possível governar buscando aliados. Mesmo fazendo alianças programáticas, como defende Marina, com base em proposta de governo, será difícil deixar de fazer concessões clientelistas com oferta de cargos”, diz.
De fato, utopias podem até ganhar eleições, mas utopias governam?, pergunta o cientista político e professor da FGV Cláudio Gonçalves Couto, em artigo no Valor Econômico. Para ele, as maiores dificuldades da Rede provêm justamente daquilo que a distingue dos outros partidos.
“Comportar imensa diversidade interna parece um trunfo, mas pode causar contratempos. Para exemplificar: como a ex-radical petista, que não se enquadrou também no PSOL, Heloísa Helena, vai se entender com o recém-kassabista e serrista Walter Feldman, quando questões relacionadas à participação do Estado na economia estiverem em disputa? Pode-se esperar não só conflito, mas incompatibilidade”, observa.
Outra questão colocada por ele diz respeito ao limite de dois mandatos aos parlamentares. “Quer dizer então que desperdiçará os ganhos que a experiência, a especialização e o conhecimento do jogo político aportam aos seus parlamentares?”, pergunta Couto. Para Teixeira, porém, “esse é um debate corajoso, que a Rede vem ajudar a enfrentar e amadurecer. Porque, se por um lado existe a questão do aprendizado e da experiência, por outro, política nesse país virou carreira e, como tal, fonte de renda. A renovação é salutar”.
Também preocupa a centralização em Marina, o marinismo de que ela é objeto – e sujeito. “Está dissolvido o marinismo, temos agora uma Rede em torno da diversidade”, disse ela, ingenuamente. Em seus pronunciamentos, contudo, afirma que a liderança carismática deve usar seu carisma para dar lugar a um movimento multicêntrico. “Marina é nossa maior liderança no campo socioambiental, mas os fundadores da Rede, no conjunto, não são marinocentristas”, garante Takahashi.
Há ainda as posições que decorrem do fato de Marina ser evangélica. “Ela tem valores conservadores na questão de costumes – aborto, drogas e casamento gay, entre outros assuntos. Mas afirma que não iria contra uma tendência majoritária na sociedade e propõe plebiscito sobre esses temas”, diz José Eli da Veiga. “Não consigo levar cientistas para a candidatura dela por causa das declarações ambíguas que fez sobre criacionismo, e sua posição contrária aos transgênicos. Não sou contra a energia nuclear, como ela. Mas Marina tem uma ética igual à minha.”
Disputa e Colaboração
Em meio a críticas e esperanças, a grande pergunta é: como superar a crise da representação e reinventar a democracia? “Vivemos em um sistema em que o referencial é a disputa de interesses políticos, e a Rede é uma forma de construção de um poder cidadão, com diálogo, colaboração e transparência – não por conchavos e acordos secretos. Queremos mudar as referências”, sustenta Takahashi, que confessa nunca ter imaginado estar, um dia, junto com um pessoal tão diverso – “de socialistas radicais revolucionários a um tucano”. No entanto, ele se diz disposto a dialogar.
“É tudo muito novo. A ideia é levar propostas e críticas, raquear o partido por dentro, provocar assuntos como cultura livre, propriedade digital aberta, liberdade na internet, transparência extrema do Estado e do partido. Qualquer situação meio estranha, a gente vai recorrer à nova política: levar o tema para a sociedade, mobilizar. Buscamos a maior transparência possível em uma realidade em disputa”, afirma Taka.
Vivemos uma encruzilhada, escreveu o sociólogo americano Immanuel Wallerstein, pesquisador de repercussão internacional2: “O sistema-mundo capitalista vive uma bifurcação, em que a ação coletiva da humanidade determinará que tipo de ordem mundial teremos no futuro, para o bem ou para o mal. De um lado, vão procurar implementar um sistema baseado não no papel central do mercado, mas antes numa combinação da força bruta e do engano, em que permaneçam três elementos-chave do presente: hierarquia, exploração e polarização. No outro lado, haverá forças populares em todo o mundo que vão procurar criar um novo tipo de sistema histórico, baseado na democracia relativa e na relativa igualdade. Vamos aprender nas décadas futuras a construir este sistema”.
“Não há repertório, não há conhecimento acumulado para essa inovação”, repete Marina. “Se não um novo caminho, uma nova maneira de caminhar.”


sexta-feira, 29 de março de 2013

Eficiência dos tribunais - Além dos "achismos" ...




ALERTA ÀQUELES QUE AINDA PENSAM O JUDICIÁRIO DESVINCULADO DOS INTERESSES ECONÔMICOS MUNDIAIS - PREPAREM-SE ... A PRECARIZAÇÃO ESTÁ APENAS COMEÇANDO ...


A revista “Economia Aplicada” publica artigo de Luciana Luk-Tai Yeung, do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, e Paulo Furquim de Azevedo, da Escola de Economia de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas, sob o título “Além dos ‘achismos’ e das evidências anedóticas: medindo a eficiência dos tribunais brasileiros” (*).
A revista é editada pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

Os autores oferecem as seguintes conclusões:

1) Há grande variabilidade de níveis de eficiência entre as cortes brasileiras. Ao contrário do que é argumentado por muitos, a falta de recursos materiais e humanos não parece ser a única e nem a principal causa para os baixos níveis de eficiência dos tribunais estaduais. Para o ano de 2010, por exemplo, a DEA (**) mostra que 21 tribunais estaduais poderiam melhorar sua eficiência sem alterar a quantidade de “inputs”, ou seja, o número de magistrados e pessoal empregado.

2) Uma segunda conclusão é que existem “best practices” a serem seguidas. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul é exemplar neste sentido: este foi o único tribunal consistentemente mais eficiente durante todo o período de cinco anos analisado. Sabe-se de outros estudos, inclusive o relatório detalhado do Banco Mundial (2004), que lá estão sendo implementadas medidas inovadoras de gestão. A análise de eficiência aqui empreendida indica que tais práticas devem ser consideradas na reforma dos demais tribunais estaduais.

3) Finalmente, a situação é muito crítica para o grupo de estados que apresentaram resultados bastante inconstantes ao longo do tempo. Parece que, nesses casos, até a coleta de dados confiáveis tem sido problemática. Como o Banco Mundial (2004) atesta, dispor de estatísticas judiciais de qualidade é o requisito básico que deve anteceder qualquer medida visando à melhoria da eficiência. Estes tribunais têm muito trabalho urgente a fazer.

Outras observações relevantes, ao longo do texto:

- De uma forma geral, o desempenho do Judiciário brasileiro é considerado bastante ruim.

- Diferentemente do que argumenta o senso comum, os tribunais não são todos “igualmente ruins”. Além disso, os resultados indicarão que o desempenho de eficiência está pouco relacionado com o nível de recursos materiais e humanos que um tribunal possui. É possível melhorar os resultados de um tribunal sem se aumentar necessariamente a quantidade de recursos empregados.

- Por determinação legal, todo presidente de tribunal precisa ser um juiz, e este presidente terá um mandato de, no máximo, dois anos. Entretanto, é praticamente inexistente a inclusão de disciplinas de gestão no currículo das escolas de Direito.

- Como o Banco Mundial e seus especialistas vêm sistematicamente enfatizando (World Bank 2002, 2004, Hammergren 2002), a produção de dados confiáveis de boa qualidade deve vir antes de qualquer decisão para reforma do Judiciário, e é pré-requisito para discussões que almejam algum tipo de conclusão definitiva.

- Muitos estados apresentam números consistentes ao longo do tempo. De um lado, há as unidades consistentemente eficientes, com destaque para o Rio Grande do Sul, o único que apareceu na fronteira de eficiência nos cinco anos observados, sendo seguido por São Paulo, Santa Catarina, Sergipe, entre outros. De outro, há muitos tribunais consistentemente ineficientes, entre eles: Amapá, Maranhão, Mato Grosso e Tocantins. Finalmente, há aqueles estados cujos tribunais desempenham consistentemente “na média” (nem excepcionalmente eficientes, nem muito ineficientes): Distrito Federal e Minas Gerais, por exemplo.


(*) http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-80502012000400005&lng=en&nrm=iso&tlng=en

(**) Análise Envoltória de Dados, uma das metodologias de análise baseadas em cálculos de fronteiras de produção.

Publicado no blog do Fred

A chamada mídia técnica versus a nossa qualidade democrática



A pluralidade informativa de um lugar está diretamente conectada à sua qualidade democrática. E hoje o Brasil tem aberto mão de melhorar sua democracia em nome de um mercadismo pouco eficaz e ,  além de tudo , injusto.
Por Renato Rovai

Há um debate em curso acerca dos critérios adotados pela Secom da presidência da República em relação à compra de publicidade que parecem ser técnicos, mas que na realidade têm alto conteúdo político. Sem ser exatamente político.

No final de 2009, mais precisamente no dia 16 de dezembro, a Secom- PR publicou uma instrução normativa de nº 2 e a partir daquele momento o governo federal e seus órgãos passaram a ser regidos por essa norma em conjunto com o que prevê o decreto 6555/2008.

Essa legislação é baseada num conjunto de critérios que, na opinião da diretoria da Altercom, estão sendo interpretados a partir de uma lógica mercadista que não atende ao espírito público no que diz respeito ao comprometimento com a multiplicidade informativa necessária para o fortalecimento da democracia.

Um dos pontos que tem prejudicado sobremaneira as pequenas empresas de comunicação é a redação e a interpretação do artigo 6o, inciso III, alinea c, da norma que dispõe sobre a “tática de mídia”. Ele diz que:“a apresentação de critérios de distribuição dos investimentos por meio, considerados os objetivos da ação; indicação dos períodos de veiculação; defesa da programação de veículos e respectiva distribuição de peças, de acordo com os objetivos de alcance e audiência”.

Atualmente a Secom-PR tem se pautado demasiadamente sua ação pelos “objetivos de alcance e audiência”, o que favorece os grandes veículos em todos os segmentos, incluindo aí a internet, onde se poderia fazer uma ação muito mais forte de valorização dos pequenos empreendimentos de comunicação.
Mas não é só isso. A Secom também passou a interpretar a partir desse artigo que a compra de espaço publicitários deve comparar como iguais os desiguais. Ou seja, que o valor relativo da publicidade nos pequenos veículos tem que ser semelhante ao dos grandes. Trocado em miúdos, que mil page views num grande portal tem de ter o mesmo valor ou preço semelhante a mil page views num blogue. Ou que o custo relativo da página de uma revista segmentada deve ser semelhante para 1 mil exemplares ao que Veja oferece ao governo.

Nem tecnicamente isso se justifica, porque sabemos que na grande audiência a dispersão é muito maior. Além do que, se esse critério vier a ser o principal, sempre os grandes serão favorecidos porque terão mais condições de barganha.
É a mesma lógica da concorrência entre o grande hipermercado e a pequena quitanda. Quem tem escala sempre tem vantagem.

Para que isso não amplie ainda mais a concentração no setor, a Altercom defende que se estabeleça uma nova regra para compra de publicidade governamental. A de que 30% de todos os recursos publicitários governamentais sejam destinados às pequenas empresas de comunicação. E que esse novo regramento conviva com a norma de 2009 com algumas adequações.

Isso precisa ser considerado até porque os grandes grupos recebem muito mais recursos do que sua força ponderada nos hábitos de comunicação do brasileiro. Há muita gente se informando pela longa cauda do processo informativo. E isso tem sido desprezado em nome das facilidades de operação com os chamados players do mercado.

Hoje, aliás, são as pequenas empresas que asseguram boa parte do contraponto informativo no país. Sem elas, teríamos um processo de uma só voz em favor de interesses muito mais privados do que públicos. Não é novidade dizer que os grandes grupos informativos brasileiros representam os grandes grupos econômicos.

No Brasil, já há legislações em alguns setores que utilizam critérios próximos aos que a Altercom defende. Como na compra de alimentos para a merenda escolar, onde se estabeleceu um percentual para a agricultura familiar. Ou como na lei do audiovisual, onde há também critérios regionais para distribuição dos recursos.

Mas não fosse só essa distorção que vem prevalecendo a partir da interpretação da norma publicada no final de 2009, nos últimos tempos um outro componente passou a fazer parte do rol de critérios para o que se convencionou chamar de mídia técnica.

A nova gestão da Secom estabeleceu uma regra de categorização dos veículos. Regra que não é clara e que nem foi publicizada, mas que, segundo alguns agentes da publicidade nos ministérios e empresas públicas, tem levado a Secom-PR a rejeitar várias sugestões de programação em veículos. O argumento seria o de que se o órgão vier a fazer publicidade num veículo teria de fazer nos outros da categoria a que ele pertence. Quem está pagando o preço dessa categorização novamente têm sido as pequenas empresas.
Do ponto de vista prático, a partir do momento em que esse critério de categorização passou a ser usado, quase todas as pequenas empresas representadas pela Altercom tiveram sua receita de publicidade via Secom reduzida. Em alguns casos, houve uma diminuição de quase 50% de 2011 para 2012 e sem que o veículo tivesse diminuído seu alcance.

É disso que se trata quando se fala que houve mudança de rota nos investimentos de publicidade governamental. É disso que reclamam diretores de muitos produtos de comunicação.

Enfim, parece um debate técnico. Mas não é somente técnico. Parece um debate político. Mas também não é somente político. É também um debate sobre o país que desejamos construir. A pluralidade informativa de um lugar está diretamente conectada à sua qualidade democrática. E hoje o Brasil tem aberto mão de melhorar sua democracia em nome de um mercadismo pouco eficaz e, além de tudo, injusto.

Folha de S. Paulo (vejam bem, a Folha) registrou em recente matéria que 70% das verbas da Secom no período do governo Dilma foram destinadas a apenas 10 veículos. Os outros milhares de veículos ficaram com apenas 30%. Certamente desses, muitos ainda eram grandes empresas. Se a concentração em outros setores no Brasil é absurda, na comunicação ela é indecente. E isso também guarda relação com a distribuição das verbas públicas de publicidade.


Renato Rovai é presidente da Associação Brasileira de Pequenas Empresas e Empreendedores Individuais de Comunicação (Altercom), editor da Revista Fórum e professor da Faculdade Cásper Líbero. 

PS: Este texto segue assinado porque não representa só a opinião do blogueiro, mas do representante da entidade. E foi produzido a partir da demanda de alguns filiados na Altercom.

quinta-feira, 28 de março de 2013

As vítimas da invisibilidade. Entrevista com Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro

IHU - Unisinos
Instituto Humanitas Unisinos
Adital

"O direito fundamental do acesso à justiça está distante das pessoas vulneráveis, da classe empobrecida e injustiçada”, dizem as advogadas do Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Material Reciclável – CNDDH.

Ao contrário do que se possa imaginar, a população de rua "não é composta por mendigos e pedintes”, esclarecem Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro à IHU On-Line. Os moradores de rua são "trabalhadores excluídos do mercado de trabalho, trabalhadores sazonais (migrantes e trecheiros), famílias que perderam a moradia, vítimas de vulnerabilidade social, pessoas com sofrimento mental, drogadição e uso abusivo de álcool e outras drogas”, informam em entrevista concedida por e-mail.
Na avaliação delas, a realidade das pessoas em situação de rua é resultado de "fenômenos complexos com origem, sobretudo, no processo histórico de exclusão social, deslanchando com o desenvolvimento do capitalismo e que se perpetua com os modelos de desenvolvimento econômico atuais”.
Apesar de a Política Nacional da População em Situação de Rua ter sido instituída pelo governo federal há quatro anos, as advogadas informam que "boa parte dos municípios brasileiros ainda não a implementou”. E concluem: "Os governos precisam compreender que a saída das ruas começa com o estabelecimento de políticas estruturantes que garantam a saída das ruas de maneira digna, com a garantida de acesso a direitos fundamentais como moradia, saúde, educação, cultura, entre outros”.
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro são advogadas do Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Material Reciclável – CNDDH, um projeto da Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República em parceria com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, com o Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Além disso, tem parceria com o Movimentos Nacional de População em Situação de Rua – MNPR e com o Movimento Nacional de Catadores de Material Reciclável – MNCR.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – É possível traçar um perfil de quem são os moradores de rua?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro – A população em situação de rua (ou simplesmente PSR) pertence a um grupo extremamente heterogêneo. Entretanto, tem como característica a pobreza extrema e o "despertencimento” à sociedade formal. Situados à margem da sociedade, são vítimas de descaso, discriminação, preconceito e desprezo que resultam, em muitos casos, em ações violentas de agressão e mesmo homicídios. Além disso, o desconhecimento sobre a situação das pessoas em situação de rua contribui para a formação de um conceito equivocado que criminaliza pessoas em razão de sua condição social. Verificamos a invisibilidade social e, na perspectiva do direito, a ausência de políticas públicas estruturantes e emancipatórias.
IHU On-Line – Quando se trata de populações em situação de rua no Brasil, que diagnóstico pode ser feito? É possível estimar quantas pessoas vivem na rua?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro – A pesquisa publicada em abril de 2008 pelo Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome – MDS aponta um perfil. A maioria das pessoas em situação de rua é do sexo masculino (82%) e jovem, entre 25 e 44 anos, de cor declarada parda ou preta, sendo composta por trabalhadores excluídos do mercado de trabalho, trabalhadores sazonais (migrantes e trecheiros), famílias que perderam a moradia, vítimas de vulnerabilidade social, pessoas com sofrimento mental, drogadição e uso abusivo de álcool e outras drogas. O desemprego aparece em 30% das citações, e os conflitos familiares, com 29%, compõem o quadro de razões que os levam a viver nas ruas. Dos entrevistados, 88,5% não têm acesso a programas governamentais, como aposentadoria, Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, cesta básica, vale transporte ou outro. Sobre a questão do trabalho, a partir da pesquisa podemos concluir que a maior parte das pessoas em situação de rua possui uma ocupação ou um trabalho, 72% afirmam que exercem alguma atividade remunerada, a maior parcela (28%) é catadora de materiais recicláveis. A atuação como flanelinha (guardadores de carro), carregador, na construção civil e no setor de limpeza são outros tipos de trabalho mais citados. Os dados revelam que a população de rua não é composta por mendigos e pedintes.
Com relação às pessoas em situação de rua no Brasil, é difícil apontar um número. Vítimas da invisibilidade, eles ainda não foram contados em nenhum Censo. Segundo a pesquisa do MDS feita em 71 municípios com mais de 300 mil habitantes, destacamos que não foram contabilizadas as capitais de São Paulo, Recife, Belo Horizonte e Porto alegre, foi identificada a presença de 31.922 pessoas adultas em situação de rua, mas o Movimento Nacional da PSR estima um número em torno de 150 mil pessoas em situação de rua no Brasil. É preciso destacar a Portaria n. 824 de 2012, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, que institui o Grupo de Trabalho para Pesquisa/Censo – IBGE, com fins de incluir a PSR na contagem do próximo Censo, o que pode constituir um avanço ao acesso de direitos.
IHU On-Line – A situação dos moradores de rua é um reflexo de quais circunstâncias?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro – Compreendemos que a realidade das pessoas em situação de rua é resultado de fenômenos complexos com origem, sobretudo no processo histórico de exclusão social, deslanchando com o desenvolvimento do capitalismo e que se perpetua com os modelos atuais de desenvolvimento econômico. Na contemporaneidade, a utilização dos logradouros e espaços públicos como moradia se desencadeia em decorrência de vários fatores: ausência de vínculos familiares, desemprego, violência, perda da autoestima, alcoolismo, uso de drogas, doenças mentais e falta de acesso à moradia convencional e regular, entre outros.
IHU On-Line – Em 2012, os dados apontavam Belo Horizonte como a capital líder em assassinatos de moradores de rua. O que mudou neste último ano?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro – De fato, o número de homicídios em Belo Horizonte é alarmante. De fevereiro de 2011 a março de 2013 já ocorreram 85 homicídios e 21 tentativas de homicídios na capital mineira. O CNDDH trabalha com um banco de dados próprio. Recebe denúncias de forma direta (as pessoas vêm ao CNDDH), mas também recebe denúncias de outras fontes como a mídia, movimentos populares e cidadãos/ãs sensíveis ao tema. Em Belo Horizonte outra fonte de recebimento de denúncias de homicídios é a Polícia Civil, departamento de homicídios. Talvez este seja o motivo pelo qual o número em Belo Horizonte se apresente de maneira mais acentuada. Também, como a sede do CNDDH está em Belo Horizonte chegam mais dados. Importante destacar que não podemos fazer comparações entre os estados pelos motivos acima citados, mas exclamamos nosso profundo repúdio ao alto índice de violência contra a população em situação de rua em Belo Horizonte, assim como em todo o Brasil.
IHU On-Line – Com frequência são denunciados casos de violência contra moradores de rua em todo o país. Como compreender essas agressões?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro – Nos dados do CNDDH a violência física está em primeiro lugar (com os homicídios, as tentativas de homicídios e lesão corporal) e, em segundo lugar, vem a violência institucional, que corresponde à violência policial ou praticada por instituições de segurança, o abuso de autoridade, a demora excessiva ou desídia no atendimento, a ausência de acesso aos serviços públicos, prisão ilegal, homofobia institucional e omissão ou ineficácia das políticas públicas. A ausência de políticas que garantam direitos fundamentais sociais a essa população na maioria dos casos contribuem para o aumento da violência. Boa parte dos municípios brasileiros ainda não implementou a política para a População em Situação de Rua instituída pelo governo federal por meio do Decreto n. 7.053/09. Em alguns municípios, mesmo naqueles que instituíram a política, os serviços para a PSR são insuficientes ou ineficazes. Direitos como os de moradia, saúde, acesso à justiça, educação, apoio familiar, ainda lhes são extremamente negados e, em muitos casos, os equipamentos como albergues e repúblicas estão fora da tipificação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Vemos abrigos, albergues e repúblicas com superlotações e com metodologias que dificultam a socialização e a organização para a saída das ruas, o que precisa urgentemente ser repensado.
IHU On-Line – Quais são as outras políticas públicas existentes para a população em situação de rua?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro – Como dito acima, existe a Política Nacional da População em Situação de Rua, instituída pelo governo federal por meio do Decreto no. 7.053/09. Partindo da Política Nacional, os estados e municípios devem instituir a política local, o que ainda anda de maneira muito vagarosa. A Política Nacional, em seu Art. 7º, dentre outros objetivos, garante os seguintes:
• Assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda.
• Implantar centros de defesa dos direitos humanos para a população em situação de rua.
• Criar meios de articulação entre o Sistema Único de Assistência Social e o Sistema Único de Saúde para qualificar a oferta de serviços.
• Implementar ações de segurança alimentar e nutricional suficientes para proporcionar acesso permanente à alimentação pela população em situação de rua, alimentação com qualidade.
O CNDDH é um dos objetivos da Política Nacional da PSR: "implantar centros de defesa dos direitos humanos para a população em situação de rua”. Com a especificidade dessa população, sobretudo a ausência de endereço residencial, muitas vezes se torna difícil o acesso à justiça. O CNDDH, com o objetivo de combater a violência contra esta população e garantir-lhe o acesso à justiça, trabalha articulado com as Defensorias Públicas, o Ministério Público e demais espaços de defesas de direitos e redes de proteção social, diminuindo as distâncias e facilitando a participação nos processos judiciais e administrativos em que a PSR figura como parte.
No que se refere à segurança alimentar, outro objetivo da Política Nacional e um direito assegurado pela Lei Federal n. 11.346/2006, convém salientar que em Belo Horizonte o Movimento da PSR conquistou da prefeitura municipal as refeições gratuitas nos restaurantes populares de segunda a sexta feira. Contudo, embora haja previsão na legislação municipal, as refeições não são oferecidas nos finais de semana e feriados, o que tem sido uma das pautas de reivindicações da PSR em Belo Horizonte. Não temos notícias de que outros municípios brasileiros assegurem a alimentação à PSR na modalidade de Belo Horizonte. Entendemos ser esta uma política elementar e fundamental, devendo ser instituída por todos os municípios brasileiros nos termos da legislação federal.
Pode-se afirmar que a violência física, como os homicídios e as tentativas, em tese, é a culminância dos diversos tipos de violências praticadas contra esta população, sobretudo a violência institucional como a omissão e ineficácia de políticas públicas que asseguram direitos fundamentais.
IHU On-Line – Muitas denúncias fazem referência a políticas de caráter higienistas, com retirada forçada de pessoas e pertences pessoais. Vocês têm recebido este tipo de denúncia no CNDDH?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro – Sim. São muitas as denúncias deste tipo. Sobretudo com a aproximação da Copa das Confederações e da Copa do Mundo, esta última que acontecerá em 2014. São muitas as ações dos poderes executivos municipais, com apoio de policiais militares, em vários municípios brasileiros, de retirada forçada das pessoas das ruas, sobretudo dos centros das cidades. Em muitos casos, nestas retiradas levam os pertences pessoais, como documentos, remédios, roupas, cobertores etc. O que em certos casos pode até se caracterizar como um crime de roubo, considerando a violência e a grave ameaça. Em Belo Horizonte, existe uma decisão judicial em uma Ação Popular, do Tribunal de Justiça de Minas Gerias, impedindo este tipo de ação. Apesar disto, o CNDDH continua recebendo denúncias oferecidas por pessoas que tiveram seus pertences recolhidos pela prefeitura municipal, com apoio de policiais militares.
IHU On-Line – Como vocês veem as atuais medidas de intervenção dos governos para a retirada das pessoas das ruas e a política sobre drogas?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro – Usuários de drogas são objetos de práticas higienistas e de segregação em vários estados. Essas ações atingem sobretudo pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade, como a população em situação de rua. A retirada forçada das ruas e a aplicação de medidas de tratamento e internação involuntários, sem o consentimento do usuário, sem metodologia clara e que contrariam avanços estabelecidos desde a luta antimanicomial, da reforma psiquiátrica e do Sistema Único de Saúde – SUS são um atentado aos direitos dos cidadãos. A questão da droga e da drogadição é complexa e exige do poder público e da sociedade grandes esforços para a compreensão do tema e, principalmente, na garantia da dignidade humana e na defesa da cidadania. A proximidade de grandes eventos no país expõe a PSR a soluções simplistas dos governos que violam direitos, a liberdade e a cidadania das pessoas. O CNDDH tem tratado do tema com diversos parceiros como o Ministério Público, Defensorias Públicas, conselhos e entidades ligadas ao tema e concluímos que os governos precisam compreender que a saída das ruas começa com o estabelecimento de políticas estruturantes que garantam a saída das ruas de maneira digna, com a garantida de acesso a direitos fundamentais como moradia, saúde, educação, cultura, entre outros. Além disso, é preciso ressaltar que o uso das drogas para a PSR é apenas um sintoma de todo o estado de violações já sofrido por essa população.
IHU On-Line – Algo a acrescentar?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro – Nestes dois anos de trabalho no CNDDH, como advogadas da População em Situação de Rua e dos Catadores de Materiais Recicláveis, temos aprendido muito e enfrentado diversos desafios. Experimentamos como o direito fundamental do acesso à justiça está distante das pessoas vulneráveis, da classe empobrecida e injustiçada. Nossa luta é por justiça social com equidade. Para isso, faz-se urgente superar preconceitos e reinterpretar o direito à luz da dignidade da pessoa humana.