Historicamente,
o controle externo do Poder Judiciário é próprio do sistema
parlamentar. Pela hegemonia do parlamento, legítimo representante da
vontade popular, o Poder Executivo, exercido em dualidade pelo chefe de
Estado (o monarca ou presidente) e pelo chefe de Governo
(primeiro-ministro), bem assim o Poder Judiciário, cujos integrantes são
escolhidos pelo Executivo na formação de cúpula, necessitam ter o
controle do poder dominante, o que o fazem via controle externo.
Nos países em que estão bem delineados os três poderes e cujo Executivo
está monocraticamente concentrado nas mãos de um presidente que é, ao
mesmo tempo, chefe de Estado e chefe de Governo, não se pode falar em
controle externo para os demais poderes, pois se fiscalizam entre si, em
mecanismo de freios e contrapesos.
No Brasil, república federativa presidencialista, a ideia de controle
externo para o Judiciário soou como estranha intervenção, na medida em
que a inovação contrariava a estrutura de poder constitucionalmente
estabelecida.
A figura do controle externo é efetivamente tradição de países
parlamentaristas tais como Espanha, Itália, Portugal e França, dentre
outros, em absoluta compatibilidade com a forma de governo. A regra
comporta exceções porque nem toda nação que adota o parlamentarismo
também ostenta órgão de controle externo, haja vista a Alemanha, país
que o desconhece.
Entretanto, mesmo que se adote o sistema de autocontrole ou de controle
mútuo – sistema de freios e contrapesos – é inegável a necessidade de
haver uma fiscalização da gestão administrativa e financeira.
O Poder Judiciário, no Brasil, era fiscalizado por si próprio:
administrativamente por seu órgão de controle interno e disciplinarmente
pelas corregedorias. O controle externo ficava a cargo dos Tribunais de
Contas, no especial aspecto da administração financeira e orçamentária.
Um país de dimensões continentais como o Brasil, cuja federação é
formada de vinte e sete estados, cada um com o seu Judiciário
independente e autônomo, contando ainda com a dualidade de justiça com
cinco tribunais federais e mais os tribunais das justiças especiais
(trabalho, eleitoral e militar), é natural que não houvesse uniformidade
na administração do Poder Judiciário.
A diversidade de gestão e a indisciplina administrativa deixavam
isolados os tribunais, principalmente os estaduais. A Justiça Federal
contou, desde a sua recriação em 1967, com o Conselho da Justiça
Federal, incumbido de uniformizar as práticas administrativas,
estabelecer unidade nos benefícios concedidos, traçar as regras a serem
seguidas pelos magistrados e servidores, compatibilizando-as com a
legislação federal. As Justiças Especiais tinham como elemento
uniformizador os Tribunais Superiores (TST, STM e TSE), que direcionavam
as práticas administrativas, estabeleciam limites e exigiam o
cumprimento da legislação federal. Faltava, portanto, um órgão
centralizador de gestão para a Justiça Estadual.
A estrutura administrativa seccionada dos Tribunais de Justiça
Estaduais, ensimesmados em nome da independência e autonomia federativa,
desenvolveram, ao longo do tempo, práticas e costumes arraigados numa
cultura tradicional e eminentemente local, repetindo muitas vezes o
modelo de uma justiça estruturada para atender a uma sociedade do século
XIX, de economia agrária, patrimonialista, exclusivista e
preconceituosa, com reflexos imediatos na atividade jurisdicional:
morosa, cara, divergente, provocando um desestímulo aos investimentos
pela inadimplência e impunidade.
Revisão crítica do direito
A Constituição de 1988 promoveu o que chamamos de revisão crítica do
direito, trazendo para o Brasil os direitos de terceira geração,
representados pelos direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneos; inseriu novos instrumentos de acesso ao Judiciário,
inaugurando as ações coletivas; provocou um profundo recorte na ordem
jurídica, fraturando a teoria geral do processo, buscou promover a
igualdade substancial com ações afirmativas pertinentes e políticas
públicas voltadas ao combate da desigualdade.
Com tais propósitos era necessário estruturar o Poder Judiciário para
atender às novas reivindicações, vencendo o mal maior para uma sociedade
acelerada: a morosidade.
De forma clara e precisa deixou o legislador constitucional consignado
na Lei Maior, como princípios: razoável duração do processo, celeridade
(art. 5º, inciso LXXVIII) e eficiência (art. 37), outorgando aos
magistrados a tarefa de dizer o direito segundo as regras
constitucionais de aplicação imediata, sem aguardar a palavra do
legislativo, como era até então.
Lamentavelmente, o Poder Judiciário não se preparou para o desafio,
mesmo recebendo com a nova ordem política novos poderes, maior
independência, desatrelando-se do Poder Executivo. Marchou no
enfrentamento dos novos direitos sem propostas novas, sem abrir mão de
suas prerrogativas, mantendo-se no seu silencioso feudalismo.
Dentro da nova realidade, era natural a insatisfação e a busca de
providências para que se tornasse o Judiciário compatível com os novos
tempos. Todos reclamavam: o Parlamento por inflamados pronunciamentos de
seus membros; os advogados pelas diuturnas reclamações da Ordem dos
Advogados do Brasil e dos próprios advogados que, em manifestações
isoladas, mostravam o inconformismo. Os jurisdicionados provocavam a
mídia com reclamações generalizadas e pontuais, não sendo raras as
notícias e os artigos sobre a péssima atuação do Poder Judiciário.
Caminhou a nação a passos largos para adotar um sistema de controle que,
de fora para dentro, provocasse uma reforma estrutural, já que o
próprio Judiciário não foi capaz de desincumbir-se da tarefa. O que mais
incomodava a nação era a falta de transparência, com gestão
inteiramente hermética e morosidade na solução dos conflitos.
Mais uma vez não se deu conta o Poder Judiciário da necessidade da
automudança. Ao contrário, procurou combater qualquer interferência
estranha aos seus quadros, escudando-se na tese da independência do
Poder Judiciário, sob o manto da defesa da federação.
Seis anos depois da Constituição de 1988, veio a reforma do Poder
Judiciário, via Emenda Constitucional nº 45/2004 e com ela a criação do
Conselho Nacional de Justiça, chamado de controle externo do Judiciário.
Conselho Nacional de Justiça
Objetivou o Conselho, desenhado na Emenda Constitucional nº 45/2004,
responsabilizar-se pela sujeição do Poder Judiciário à disciplina
administrativa por ele imposta, mantendo as decisões judiciais fora do
seu alcance; democratizar o Poder, submetido a uma verticalização
administrativa incompatível com qualquer modelo de administração moderna
e, o que é pior, interferente na independência dos órgãos judicantes
com deformação tal que invadia ou pressionava a esfera de competência do
juiz de primeiro grau, “moldando-se consciências e comportamentos”, no
dizer do então juiz federal Flávio Dino, hoje deputado federal (artigo
escrito em 2006 sobre o CNJ, publicado na revista Advocacia Dinâmica,
abril/2006). A verticalização encontrada nos intestinos do Poder
Judiciário levava a confundir a hierarquização da carreira, formada por
juízes de instância inferior e superior, com hierarquização
administrativa, vedando-se a participação e debate de juízes de primeiro
grau nas deliberações sobre planejamento e gestão do Poder, sendo
partícipe apenas na função de assessoramento.
A prática, autoritária e antidemocrática, interferia diretamente na
priorização de obras, aquisições de equipamentos, realizações de
programas e funcionalidade das instalações.
Um dos aspectos prioritários na atuação do CNJ foi o de impor
planejamento estratégico, fracionado em metas, levando o Poder
Judiciário a superar a prática de funcionar sem projeto, sem saber o que
está fazendo, sem personalizar a administração e suas realizações.
Dentro dos Tribunais de Justiça, vinte sete ilhas isoladas, foram
encontradas práticas administrativas absolutamente condenáveis sob o
aspecto técnico, descontinuadas e sem responsabilização dos
administradores. Tudo era feito de forma pessoal e na base do improviso.
Era imprescindível agregar, uniformizar e planejar para assim caminhar
junto, vencendo diferenças abismais entre os Tribunais e, o que é pior,
dentro do mesmo Tribunal varas ou gabinetes inviabilizados por acúmulo
de processos, falta de equipamentos e falta de gestor, situações por
vezes críticas com direto reflexo na produção da atividade-fim.
Ainda como objetivo macro visou o CNJ vencer o silencioso proceder do
Judiciário, a chamada “caixa preta”, introduzindo a publicidade como
norma das práticas administrativas, democratizou-se a burocracia pela
possibilidade de se ter o controle social.
Em resumo, tem o CNJ como objetivos macros: responsabilização, democratização, planejamento e publicidade.
Primeiro ataque ao CNJ
O primeiro ataque ao CNJ veio quando a Associação dos Magistrados
Brasileiros (AMB) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra a
Emenda nº 45/2004, julgada improcedente por maioria absoluta, restando
vencido o ministro Marco Aurélio. O STF declarou de absoluta legalidade o
CNJ, sua formação e competência, deixando explicitado que todo o Poder
Judiciário, com exceção apenas do STF, estava submetido à disciplina
administrativa, cabendo à Corte Maior rever os erros e acertos, quando
provocado.
Nestes seis anos de existência, o Conselho Nacional de Justiça tem
desenvolvido planejamento estratégico, criando cadastros importantes
para dimensionar o tamanho da Justiça brasileira, tais como o “Justiça
em Números” e o “Justiça Aberta”, este último a cargo da Corregedoria
Nacional; estabelecendo metas a serem seguidas pelos Tribunais,
destacando-se pelo alcance social a Meta Dois, talvez a mais importante,
porque pela primeira vez o Judiciário parou para contar o seu acervo,
identificando e priorizando o julgamento dos processos distribuídos até
31 de dezembro de 2005, em todos os tribunais e instâncias.
As metas ainda estão sendo cumpridas, aqui e ali, com as dificuldades de
sempre, falta de recursos financeiros, falta de pessoal, servidores
despreparados e, na minha visão, em muitas situações falta de crença na
possibilidade de mudar com atitude e determinação, ingredientes
primeiros para qualquer alteração que se queira implementar.
A cada ano o CNJ faz uma avaliação do cumprimento das metas e, a partir
daí, divulga os resultados da atuação de cada Tribunal, com total
transparência, estimulando o empenho dos Tribunais.
Entendemos lento, bem lento, o enfrentamento e cumprimento das metas, mas o certo é que o trabalho já começou e prossegue.
Corregedoria nacional de justiça
Com previsão constitucional, a Corregedoria, órgão integrante do
Conselho Nacional de Justiça, tem função executiva e disciplinar (art.
103-B, § 5º, II, da CF).
Tradicionalmente, as Corregedorias têm papel eminentemente disciplinar
e, por razões culturais, a proximidade da autoridade correicional com os
inspecionados leva a um certo afrouxamento comportamental. Ademais, em
relação ao Judiciário, cujos integrantes além de próximos têm
convivência longa, mais se acentua a inação, tornando o poder
disciplinar das corregedorias quase inócuo, com efeito devastador para a
carreira. A falta de repressão à indisciplina é porta aberta para
seguidores do mau exemplo.
Um dos pontos mais enfocados nas discussões que antecederam a Emenda
Constitucional nº 45/2004, quando gestado o CNJ, foi a visível inação do
poder disciplinar do Judiciário. Mantida inteiramente nas mãos da
própria corporação, rompia a imparcialidade e se concentrava nos órgãos
diretivos de segundo grau.
As Corregedorias estaduais, desestruturadas e no mais das vezes
submetidas aos critérios de administração do presidente da Corte, pouco
fizeram ao longo do tempo, principalmente porque o poder disciplinar não
estava com o corregedor e, sim, com o próprio Tribunal, cujo colegiado
decidia os processos disciplinares dos juízes de primeiro grau e de seus
próprios pares.
A Corregedoria Nacional de Justiça, órgão do Conselho, incumbiu-se de
aprimorar a responsabilidade disciplinar da magistratura nacional,
fazendo-a efetiva para os magistrados de primeiro grau e existente para
os juízes de segundo grau.
Se bem observarmos as funções constitucionais outorgadas à Corregedoria
Nacional de Justiça, veremos que há duas atividades específicas:
corregência, função executiva do Conselho, fiscalizando e viabilizando
para os juízes e tribunais o cumprimento da política traçada pelo CNJ
através das metas (inciso II do § 5º do art.103-B); e a função
disciplinar, recebendo as reclamações e denúncias contra magistrados e
servidores, investigando e propondo aplicação de sanções
administrativo-disciplinares.
As tarefas a cargo da Corregedoria Nacional são, sem dúvida, um desafio.
Além do gigantismo do trabalho: fiscalizar atualmente mais de dezesseis
mil juízes, não está sendo fácil vencer as disfunções e incompreensões
que se resumem no seguinte: não se aceita abrir mão do poder de decidir a
vida dos membros do Poder Judiciário.
Foi sábio o legislador quando estabeleceu a competência disciplinar do
Conselho. Visualizada a impossibilidade de concentração em um só órgão
do poder disciplinar de toda a magistratura, manteve a competência
disciplinar dos Tribunais de Justiça, sem descartar a atuação pronta e
imediata da Corregedoria Nacional, em concorrência harmoniosa,
possibilitando assim a atuação do CNJ, quando não o fizesse a
Corregedoria local (inciso III do § 4º do art.103-B).
As investigações contra os magistrados, principalmente os de segundo
grau, aprofundam-se na medida em que mais se estrutura a Corregedoria
Nacional, o que tem desagradado a parte da magistratura que teima em
manter-se fora do alcance de um órgão que é, sem dúvida, a representação
viva da democratização do Poder Judiciário. •
ELIANA CALMON é Corregedora Nacional de Justiça.
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