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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

CNJ e Democratização do Poder Judiciário

Artigos

Por: ELIANA CALMON     
Historicamente, o controle externo do Poder Judiciário é próprio do sistema parlamentar. Pela hegemonia do parlamento, legítimo representante da vontade popular, o Poder Executivo, exercido em dua­lidade pelo chefe de Estado (o monarca ou presidente) e pelo chefe de Governo (primeiro-ministro), bem assim o Poder Judiciário, cujos integrantes são escolhidos pelo Executivo na formação de cúpula, necessitam ter o controle do poder dominante, o que o fazem via controle externo.
Nos países em que estão bem delineados os três poderes e cujo Executivo está monocraticamente concentrado nas mãos de um presidente que é, ao mesmo tempo, chefe de Estado e chefe de Governo, não se pode falar em controle externo para os demais poderes, pois se fiscalizam entre si, em mecanismo de freios e contrapesos.

No Brasil, república federativa presidencialista, a ideia de controle externo para o Judiciário soou como estranha intervenção, na medida em que a inovação contrariava a estrutura de poder constitucionalmente estabelecida.


A figura do controle externo é efetivamente tradição de países parlamentaristas tais como Espanha, Itália, Portugal e França, dentre outros, em absoluta compatibilidade com a forma de governo. A regra comporta exceções porque nem toda nação que adota o parlamentarismo também ostenta órgão de controle externo, haja vista a Alemanha, país que o desconhece.


Entretanto, mesmo que se adote o sistema de autocontrole ou de controle mútuo – sistema de freios e contrapesos – é inegável a necessidade de haver uma fiscalização da gestão administrativa e financeira.


O Poder Judiciário, no Brasil, era fiscalizado por si próprio: administrativamente por seu órgão de controle interno e disciplinarmente pelas corregedorias. O controle externo ficava a cargo dos Tribunais de Contas, no especial aspecto da administração financeira e orçamentária.


Um país de dimensões continentais como o Brasil, cuja federação é formada de vinte e sete estados, cada um com o seu Judiciário independente e autônomo, contando ainda com a dualidade de justiça com cinco tribunais federais e mais os tribunais das justiças especiais (trabalho, eleitoral e militar), é natural que não houvesse uniformidade na administração do Poder Judiciário.


A diversidade de gestão e a indisciplina administrativa deixavam isolados os tribunais, principalmente os estaduais. A Justiça Federal contou, desde a sua recriação em 1967, com o Conselho da Justiça Federal, incumbido de uniformizar as práticas administrativas, estabelecer unidade nos benefícios concedidos, traçar as regras a serem seguidas pelos magistrados e servidores, compatibilizando-as com a legislação federal. As Justiças Especiais tinham como elemento uniformizador os Tribunais Superiores (TST, STM e TSE), que direcionavam as práticas administrativas, estabeleciam limites e exigiam o cumprimento da legislação federal. Faltava, portanto, um órgão centralizador de gestão para a Justiça Estadual.


A estrutura administrativa seccionada dos Tribunais de Justiça Estaduais, ensimesmados em nome da independência e autonomia federativa, desenvolveram, ao longo do tempo, práticas e costumes arraigados numa cultura tradicional e eminentemente local, repetindo muitas vezes o modelo de uma justiça estruturada para atender a uma sociedade do século XIX, de economia agrária, patrimonialista, exclusivista e preconceituosa, com reflexos imediatos na atividade jurisdicional: morosa, cara, divergente, provocando um desestímulo aos investimentos pela inadimplência e impunidade.



Revisão crítica do direito


A Constituição de 1988 promoveu o que chamamos de revisão crítica do direito, trazendo para o Brasil os direitos de terceira geração, representados pelos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos; inseriu novos instrumentos de acesso ao Judiciário, inaugurando as ações coletivas; provocou um profundo recorte na ordem jurídica, fraturando a teoria geral do processo, buscou promover a igualdade substancial com ações afirmativas pertinentes e políticas públicas voltadas ao combate da desigualdade.


Com tais propósitos era necessário estruturar o Poder Judiciário para atender às novas reivindicações, vencendo o mal maior para uma sociedade acelerada: a morosidade.


De forma clara e precisa deixou o legislador constitucional consignado na Lei Maior, como princípios: razoável duração do processo, celeridade (art. 5º, inciso LXXVIII) e eficiência (art. 37), outorgando aos magistrados a tarefa de dizer o direito segundo as regras constitucionais de aplicação imediata, sem aguardar a palavra do legislativo, como era até então.


Lamentavelmente, o Poder Judiciário não se preparou para o desafio, mesmo recebendo com a nova ordem política novos poderes, maior independência, desatrelando-se do Poder Executivo. Marchou no enfrentamento dos novos direitos sem propostas novas, sem abrir mão de suas prerrogativas, mantendo-se no seu silencioso feudalismo.


Dentro da nova realidade, era natural a insatisfação e a busca de providências para que se tornasse o Judiciário compatível com os novos tempos. Todos reclamavam: o Parlamento por inflamados pronunciamentos de seus membros; os advogados pelas diuturnas reclamações da Ordem dos Advogados do Brasil e dos próprios advogados que, em manifestações isoladas, mostravam o inconformismo. Os jurisdicionados provocavam a mídia com reclamações generalizadas e pontuais, não sendo raras as notícias e os artigos sobre a péssima atuação do Poder Judiciário.


Caminhou a nação a passos largos para adotar um sistema de controle que, de fora para dentro, provocasse uma reforma estrutural, já que o próprio Judiciário não foi capaz de desincumbir-se da tarefa. O que mais incomodava a nação era a falta de transparência, com gestão inteiramente hermética e morosidade na solução dos conflitos.


Mais uma vez não se deu conta o Poder Judiciário da necessidade da automudança. Ao contrário, procurou combater qualquer interferência estranha aos seus quadros, escudando-se na tese da independência do Poder Judiciário, sob o manto da defesa da federação.


Seis anos depois da Constituição de 1988, veio a reforma do Poder Judiciário, via Emenda Constitucional nº 45/2004 e com ela a criação do Conselho Nacional de Justiça, chamado de controle externo do Judiciário.



Conselho Nacional de Justiça


Objetivou o Conselho, desenhado na Emenda Constitucional nº 45/2004, responsabilizar-se pela sujeição do Poder Judiciário à disciplina administrativa por ele imposta, mantendo as decisões judiciais fora do seu alcance; democratizar o Poder, submetido a uma verticalização administrativa incompatível com qualquer modelo de administração moderna e, o que é pior, interferente na independência dos órgãos judicantes com deformação tal que invadia ou pressionava a esfera de competência do juiz de primeiro grau, “moldando-se consciências e comportamentos”, no dizer do então juiz federal Flávio Dino, hoje deputado federal (artigo escrito em 2006 sobre o CNJ, publicado na revista Advocacia Dinâmica, abril/2006). A verticalização encontrada nos intestinos do Poder Judiciário levava a confundir a hierarquização da carreira, formada por juízes de instância inferior e superior, com hierarquização administrativa, vedando-se a participação e debate de juízes de primeiro grau nas deliberações sobre planejamento e gestão do Poder, sendo partícipe apenas na função de assessoramento.


A prática, autoritária e antidemocrática, interferia diretamente na priorização de obras, aquisições de equipamentos, realizações de programas e funcionalidade das instalações.


Um dos aspectos prioritários na atuação do CNJ foi o de impor planejamento estratégico, fracionado em metas, levando o Poder Judiciário a superar a prática de funcionar sem projeto, sem saber o que está fazendo, sem personalizar a administração e suas realizações.


Dentro dos Tribunais de Justiça, vinte sete ilhas isoladas, foram encontradas práticas administrativas absolutamente condenáveis sob o aspecto técnico, descontinuadas e sem responsabilização dos administradores. Tudo era feito de forma pessoal e na base do improviso.


Era imprescindível agregar, uniformizar e planejar para assim caminhar junto, vencendo diferenças abismais entre os Tribunais e, o que é pior, dentro do mesmo Tribunal varas ou gabinetes inviabilizados por acúmulo de processos, falta de equipamentos e falta de gestor, situações por vezes críticas com direto reflexo na produção da atividade-fim.


Ainda como objetivo macro visou o CNJ vencer o silencioso proceder do Judiciário, a chamada “caixa preta”, introduzindo a publicidade como norma das práticas administrativas, democratizou-se a burocracia pela possibilidade de se ter o controle social.


Em resumo, tem o CNJ como objetivos macros: responsabilização, democratização, planejamento e publicidade.



Primeiro ataque ao CNJ


O primeiro ataque ao CNJ veio quando a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra a Emenda nº 45/2004, julgada improcedente por maioria absoluta, restando vencido o ministro Marco Aurélio. O STF declarou de absoluta legalidade o CNJ, sua formação e competência, deixando explicitado que todo o Poder Judiciário, com exceção apenas do STF, estava submetido à disciplina administrativa, cabendo à Corte Maior rever os erros e acertos, quando provocado.


Nestes seis anos de existência, o Conselho Nacional de Justiça tem desenvolvido planejamento estratégico, criando cadastros importantes para dimensionar o tamanho da Justiça brasileira, tais como o “Justiça em Números” e o “Justiça Aberta”, este último a cargo da Corregedoria Nacional; estabelecendo metas a serem seguidas pelos Tribunais, destacando-se pelo alcance social a Meta Dois, talvez a mais importante, porque pela primeira vez o Judiciário parou para contar o seu acervo, identificando e priorizando o julgamento dos processos distribuídos até 31 de dezembro de 2005, em todos os tribunais e instâncias.


As metas ainda estão sendo cumpridas, aqui e ali, com as dificuldades de sempre, falta de recursos financeiros, falta de pessoal, servidores despreparados e, na minha visão, em muitas situações falta de crença na possibilidade de mudar com atitude e determinação, ingredientes primeiros para qualquer alteração que se queira implementar.


A cada ano o CNJ faz uma avaliação do cumprimento das metas e, a partir daí, divulga os resultados da atuação de cada Tribunal, com total transparência, estimulando o empenho dos Tribunais.


Entendemos lento, bem lento, o enfrentamento e cumprimento das metas, mas o certo é que o trabalho já começou e prossegue.



Corregedoria nacional de justiça


Com previsão constitucional, a Corregedoria, órgão integrante do Conselho Nacional de Justiça, tem função executiva e disciplinar (art. 103-B, § 5º, II, da CF).


Tradicionalmente, as Corregedorias têm papel eminentemente disciplinar e, por razões culturais, a proximidade da autoridade correicional com os inspecionados leva a um certo afrouxamento comportamental. Ademais, em relação ao Judiciário, cujos integrantes além de próximos têm convivência longa, mais se acentua a inação, tornando o poder disciplinar das corregedorias quase inócuo, com efeito devastador para a carreira. A falta de repressão à indisciplina é porta aberta para seguidores do mau exemplo.


Um dos pontos mais enfocados nas discussões que antecederam a Emenda Constitucional nº 45/2004, quando gestado o CNJ, foi a visível inação do poder disciplinar do Judiciário. Mantida inteiramente nas mãos da própria corporação, rompia a imparcialidade e se concentrava nos órgãos diretivos de segundo grau.


As Corregedorias estaduais, desestruturadas e no mais das vezes submetidas aos critérios de administração do presidente da Corte, pouco fizeram ao longo do tempo, principalmente porque o poder disciplinar não estava com o corregedor e, sim, com o próprio Tribunal, cujo colegiado decidia os processos disciplinares dos juízes de primeiro grau e de seus próprios pares.


A Corregedoria Nacional de Justiça, órgão do Conselho, incumbiu-se de aprimorar a responsabilidade disciplinar da magistratura nacional, fazendo-a efetiva para os magistrados de primeiro grau e existente para os juízes de segundo grau.


Se bem observarmos as funções constitucionais outorgadas à Corregedoria Nacional de Justiça, veremos que há duas atividades específicas: corregência, função executiva do Conselho, fiscalizando e viabilizando para os juízes e tribunais o cumprimento da política traçada pelo CNJ através das metas (inciso II do § 5º do art.103-B); e a função disciplinar, recebendo as reclamações e denúncias contra magistrados e servidores, investigando e propondo aplicação de sanções administrativo-disciplinares.


As tarefas a cargo da Corregedoria Nacional são, sem dúvida, um desafio. Além do gigantismo do trabalho: fiscalizar atualmente mais de dezesseis mil juízes, não está sendo fácil vencer as disfunções e incompreensões que se resumem no seguinte: não se aceita abrir mão do poder de decidir a vida dos membros do Poder Judiciário.


Foi sábio o legislador quando estabeleceu a competência disciplinar do Conselho. Visualizada a impossibilidade de concentração em um só órgão do poder disciplinar de toda a magistratura, manteve a competência disciplinar dos Tribunais de Justiça, sem descartar a atuação pronta e imediata da Corregedoria Nacional, em concorrência harmoniosa, possibilitando assim a atuação do CNJ, quando não o fizesse a Corregedoria local (inciso III do § 4º do art.103-B).


As investigações contra os magistrados, principalmente os de segundo grau, aprofundam-se na medida em que mais se estrutura a Corregedoria Nacional, o que tem desagradado a parte da magistratura que teima em manter-se fora do alcance de um órgão que é, sem dúvida, a representação viva da democratização do Poder Judiciário. •



ELIANA CALMON
é Corregedora Nacional de Justiça.

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