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sábado, 31 de agosto de 2013

A importância da imaginação pós-capitalista


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David Harvey mergulha no estudo das contradições do sistema e busca alternativas: desmercantilização, propriedade comum, renda básica permanente, gratuidades…

Entrevista a Ronan Burtenshaw e Aubrey Robinson* | Tradução Vila Vudu

Mês que vem completam-se cinco anos que Lehman Brothers foram protagonistas do maior caso de falência de banco na história dos EUA. O colapso sinalizou o início da Grande Depressão – a crise mais substancial do capitalismo mundial desde a 2ª Guerra Mundial. Como entender os fundamentos desse sistema agora em crise? E, com o sistema em guerra contra a classe trabalhadora, sob o disfarce da “austeridade”, como imaginar um mundo depois disso?

Poucos pensadores geraram respostas mais influentes para essas perguntas que o geógrafo marxista David Harvey. Aqui, em entrevista recente, ele fala a Ronan Burtenshaw e Aubrey Robinson sobre esses problemas.

Você está trabalhando agora num novo livro, The Seventeen Contradictions of Capitalism [As 17 contradições do capitalismo]. Por que focar essas contradições? 

A análise do capitalismo sugere que são contradições significativas e fundamentais. Periodicamente essas contradições saem de controle e geram uma crise. Acabamos de passar por uma crise e acho importante perguntar que contradições nos levaram à crise? Como podemos analisar a crise em termos de contradições? Uma das grandes ditos de Marx foi que uma crise é sempre resultado das contradições subjacentes. Portanto, temos de lidar com elas próprias, não com os resultados delas.

Uma das contradições a que você se dedica é a que há entre o valor de uso e o valor de troca de uma mercadoria. Por que essa contradição é tão fundamental para o capitalismo e por que você usa a moradia para ilustrá-la?

Temos de começar por entender que todas as mercadorias têm um valor de uso e um valor de troca. Se tenho um bife, o valor de uso é que posso comê-lo, e o valor de troca é quanto tenho de pagar para comê-lo.
A moradia é muito interessante, nesse sentido, porque se pode entender como valor de uso que ela garante abrigo, privacidade, um mundo de relações afetivas entre pessoas, uma lista enorme de coisas para as quais usamos a casa. Houve tempo em que cada um construía a própria casa e a casa não tinha valor de troca. Depois, do século 18 em diante, aparece a construção de casas para especulação – construíam-se sobrados georgianos [reinado do rei George, na Inglaterra] para serem vendidos. E as casas passaram a ser valores de troca para consumidores, como poupança. Se compro uma casa e pago a hipoteca, acabo proprietário da casa. Tenho pois um bem, um patrimônio. Assim se gera uma política curiosa – “não no meu quintal”, “não quero ter gente na porta ao lado que não se pareça comigo”. E começa a segregação nos mercados imobiliários, porque as pessoas querem proteger o valor de troca dos seus bens.
Então, há cerca de 30 anos, as pessoas começaram a usar a moradia como forma de obter ganhos de especulação. Você podia comprar uma casa e “passar adiante” – compra uma casa por £200 mil, depois de um ano consegue £250 mil por ela. Você ganha £50 mil, por que não? O valor de troca passou a ser dominante. E assim se chega ao boom especulativo. Em 2000, depois do colapso dos mercados globais de ações, o excesso de capital passou a fluir para a moradia. É um tipo interessante de mercado. Você compra uma casa, o preço da moradia sobe você diz “os preços das casas estão subindo, tenho de comprar uma casa”, mas outro compra antes de você. Gera-se uma bolha imobiliária. As pessoas ficam presas na bolha e a bolha explode. Então, de repente, muitas pessoas descobrem que já não podem usufruir do valor de uso da moradia, porque o sistema do valor de troca destruiu o valor de uso.
E surge a pergunta: é boa ideia permitir que o valor de uso da moradia, que é crucial para o povo, seja comandado por um sistema louco de valor de troca? O problema não surge só na moradia, mas em coisas como educação e atenção à saúde. Em vários desses campos, liberamos a dinâmica do valor de troca, sob a teoria de que ele garantirá o valor de uso, mas o que se vê frequentemente, é que ele faz explodir o valor de uso e as pessoas acabam sem receber boa atenção à saúde, boa educação e boa moradia. Por isso me parece tão importante prestar atenção à diferença entre valor de uso e valor de troca.

Outra contradição que você comenta envolve um processo de alternar, ao longo do tempo, entre a ênfase na oferta, na produção, e ênfase na demanda, pelo consumo, que se vê no capitalismo. Pode falar sobre como esse processo apareceu no século 20 e por que é tão importante?

Uma grande questão é manter uma demanda adequada de mercado, de modo que seja possível absorver seja o que for que o capital esteja produzindo. Outra, é criar as condições sob as quais o capital possa produzir com lucros.
Essas condições de produção lucrativa quase sempre significam suprimir a força de trabalho. Na medida em que se reduzem salários – pagando salários cada vez menores –, as taxas de lucro sobem. Portanto, do lado da produção, quanto mais arrochados os salários, melhor. Os lucros aumentam. Mas surge o problema: quem comprará o que é produzido? Com o trabalho arrochado, onde fica o mercado? Se o arrocho é excessivo, sobrevém uma crise, porque deixa de haver demanda suficiente que absorva o produto.
A certa altura, a interpretação generalizada dizia que o problema, na crise dos anos 1930s foi falta de demanda. Houve então uma mudança na direção de investimentos conduzidos pelo Estado, para construir novas estradas, o WPA [serviços públicos, sob o New Deal] e tudo aquilo. Diziam que “revitalizaremos a economia” com demanda financiada por dívidas e, ao fazer isso, viraram-se para a teoria Keynesiana. Saiu-se dos anos 1930s com uma nova e forte capacidade para gerenciar a demanda, com o Estado muito envolvido na economia. Resultado disso, houve fortes taxas de crescimento, mas as fortes taxas de crescimento vieram acompanhadas de maior poder para os trabalhadores, com salários crescentes e sindicatos fortes.
Sindicatos fortes e altos salários significam que as taxas de lucro começam a cair. O capital entra em crise, porque não está reprimindo suficientemente os trabalhadores. E o “automático” do sistema dá o alarme. Nos anos 1970s, voltaram-se na direção de Milton Friedman e da Escola de Chicago. Passou a ser dominante na teoria econômica, e as pessoas começaram a observar a ponta da oferta – sobretudo os salários. E veio o arrocho dos salários, que começou nos anos 1970s. Ronald Reagan ataca os controladores de tráfego aéreo; Margaret Thatcher caça os mineiros; Pinochet assassina militantes da esquerda. O trabalho é atacado por todos os lados – e a taxa de lucros sobe. Quando se chega aos anos 1980s, a taxa de lucro dá um salto, porque os salários estão sendo arrochados e o capital está se dando muito bem. Mas surge o problema: a quem vender aquela coisa toda que está sendo produzida.
Nos anos 1990s tudo isso foi recoberto pela economia do endividamento. Começaram a encorajar as pessoas a tomarem empréstimos – começou uma economia de cartão de crédito e uma economia de moradia pesadamente financiada por hipotecas. Assim se mascarou o fato de que, na realidade, não havia demanda alguma. Em 2007-8, esse arranjo também desmoronou.
O capital enfrenta essa pergunta, “trabalha-se pelo lado da oferta ou pelo lado da demanda”? Minha ideia, para um mundo anticapitalista, é que é preciso unificar tudo isso. Temos de voltar ao valor de uso. De que valores de uso as pessoas precisam e como organizar a produção de tal modo que satisfaça à demanda por aqueles valores de uso?

Hoje, tudo indica que estamos em crise pelo lado da oferta. Mas a austeridade é tentativa de encontrar solução pelo lado da demanda. Como resolver isso? 

É preciso diferenciar entre os interesses do capitalismo como um todo e o que é interesse especificamente da classe capitalista, ou de uma parte dela. Durante essa crise, a classe capitalista deu-se muitíssimo bem. Alguns saíram queimados, mas a maior parte saiu-se extremamente bem. Segundo estudo recente, nos países da OECD a desigualdade econômica cresceu significativamente desde o início da crise, o que significa que os benefícios da crise concentraram-se nas classes mais ricas. Em outras palavras, os ricos não querem sair da crise, porque a crise lhes traz muitos lucros.
A população como um todo está sofrendo, o capitalismo como um todo não está saudável, mas a classe capitalista – sobretudo uma oligarquia que há ali – está muito bem. Há várias situações nas quais capitalistas individuais operando conforme os interesses de sua classe, podem de fato fazer coisas que agridem muito gravemente todo o sistema capitalista. Minha opinião é que, hoje, estamos vivendo uma dessas situações.

Você tem repetido várias vezes, recentemente, que uma das coisas que a esquerda deveria estar fazendo é usar nossa imaginação pós-capitalista, e começar por perguntar como, afinal, será um mundo pós-capitalista. Por que isso lhe parece tão importante? E, na sua opinião, como, afinal, será um mundo pós-capitalista? 

É importante, porque há muito tempo trombeteia-se nos nossos ouvidos que não há alternativa. Uma das primeiras coisas que temos de fazer é pensar a alternativa, para começar a andar na direção de criá-la.
A esquerda tornou-se tão cúmplice com o neoliberalismo, que já não se vê diferença entre os partidos políticos da esquerda e os da direita, se não em questões nacionais ou sociais. Na economia política não há grande diferença. Temos de encontrar uma economia política alternativa ao modo como funciona o capitalismo. E temos alguns princípios. Por isso as contradições são interessantes. Examina-se cada uma delas, por exemplo, a contradição entre valor de uso e valor de troca e se diz – “o mundo alternativo é mundo no qual se fornecem valores de uso”. Assim podemos nos concentrar nos valores de uso e tentar reduzir o papel dos valores de troca.
Ou, na questão monetária – claro que precisamos de dinheiro para que as mercadorias circulem. Mas o problema do dinheiro é que pessoas privadas podem apropriar-se dele. O dinheiro torna-se uma modalidade de poder pessoal e, em seguida, um desejo-fetiche. As pessoas mobilizam a vida na procura por esse dinheiro, até quem não sabe que o faz. Então, temos de mudar o sistema monetário – ou se taxam todas as mais-valias que as pessoas comecem a obter ou criamos um sistema monetário no qual a moeda se dissolve e não pode ser entesourada, como o sistema de milhagem aérea.
Mas para fazer isso, é preciso superar a dicotomia estado/propriedade privada, e propor um regime de propriedade comum. E, num dado momento, é preciso gerar uma renda básica para o povo, porque se você tem uma forma de dinheiro antipoupança é preciso dar garantia às pessoas. Você tem de dizer “você não precisa poupar para os dias de chuva, porque você sempre receberá essa renda básica, não importa o que aconteça”. É preciso dar segurança às pessoas desse modo, não por economias privadas, pessoais.
Mudando cada uma dessas coisas contraditórias chega-se a um tipo diferente de sociedade, que é muito mais racional que a que temos hoje. Hoje, o que acontece é produzimos e, em seguida, tentamos persuadir os consumidores a consumir o que foi produzido, queiram ou não e precisem ou não do que é produzido. Em vez disso, temos de descobrir quais os desejos e vontades básicas das pessoas e mobilizar o sistema de produção para produzir aquilo. Se se elimina a dinâmica do valor de troca, é possível reorganizar todo o sistema de outro modo. Pode-se imaginar a direção na qual se moverá uma alternativa socialista, se nos afastamos da forma dominante da acumulação de capital que hoje comanda tudo.



* Esse é um trecho da entrevista, publicado hoje. A íntegra da entrevista será publicada na edição de outono de The Irish Left Review (http://www.irishleftreview.org/ )

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Especialistas apontam riscos de projeto que legaliza a terceirização

Leonardo Sakamoto
A Câmara dos Deputados está prestes a aprovar um projeto que amplia os casos em que pode ocorrer terceirização no Brasil.
- Ah, japa, mas eu não tenho nada a ver com isso.
Bem, se você não se preocupa com décimo-terceiro salário, adicional de férias, FGTS e Previdência Social, então nem leia esse post. Tem umas histórias legais sobre a Miley Cyrus para você se entreter.
Caso contrário, deveria saber que o projeto de lei 4330/2004, de autoria do deputado federal Sandro Mabel (PMDB-GO), legaliza a contratação de prestadoras de serviços para executarem atividades-fim em uma empresa. Ou seja, de uma hora para outra, a empresa em que você trabalha pode pedir para você abrir uma empresa individual e começar a dar nota fiscal mensalmente para fugir de impostos e tributos.
Por exemplo, uma usina de cana contrata trabalhadores de outra empresa para produzir cana para ela. Dessa forma, se livra dos direitos trabalhistas e sociais a que seu empregado teria direito, jogando a batata quente para o colo de uma pessoa jurídica menor. Que nem sempre vai honrar os compromissos assumidos, agir corretamente ou mesmo pagar os salários. Antes da ação do poder público para regularizar essa esbórnia, havia usinas no interior paulista sem um único cortador de cana registrado, enquanto milhares se esfolavam no campo para garantir o açúcar do seu cafezinho e o etanol limpo do seu tanque.
Casos famosos de flagrantes de trabalho escravo surgiram por problemas em fornecedores ou terceirizados, como Zara, Le Lis Blanc, MRV, entre tantos outros. O governo federal e o Ministério Público do Trabalho puderam responsabilizar essas grandes empresas pelo que aconteceu na outra ponta por conta de uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho, que garante a responsabilidade sobre os trabalhadores terceirizados na atividade-sim.
O projeto de lei de Mabel quer mudar isso, entre outros pontos polêmicos. Centrais sindicais afirmam que isso pode contribuir com a precarização do trabalho. Reclamam que, transformado em lei, os chamados “coopergatos” (cooperativas montadas para burlar impostos) e as pessoas-empresa (os conhecidos “PJs”) irão se multiplicar e o nível de proteção do trabalhador cair.  Segundo eles, setores como empresas têxteis, de comunicações e do agronegócio têm atuado pela legalização da terceirização em qualquer atividade com pesados lobbies no Congresso Nacional.
“Ah, mas eu quero ser livre para fazer ser frila.” Beleza, fique à vontade. Mas e quem tem um emprego fixo e quer alguma estabilidade e segurança, condições conquistadas a duras penas e presentes na Consolidação das Leis do Trabalho? Quem diz que a CLT é anacrônica ou não vive pelo salário ou precisa fazer uma avaliação urgente sobre sua própria vida.
Recentemente, os trabalhadores tomaram um susto. Perceberam que não podem contar com o ministro do Trabalho e Emprego, Manoel Dias (PDT). Ele deu uma declaração defendendo a aprovação de uma forma que vai ao encontro do que pediu o empresariado na comissão quadripartite (que incluiu também governo, parlamentares e trabalhadores), montada para discutir o tema. Ministro do Trabalho. E Emprego.
De acordo com um estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em parceria com a Central Única dos Trabalhadores, em média um trabalhador terceirizado trabalha três horas a mais por semana e ganha 27% menos que um empregado direto. No setor elétrico, por exemplo, a taxa de mortalidade de um funcionário de uma prestadora é 3,21 vezes superior ao de um trabalhador de uma empresa contratante.
A terceirização tresloucada transforma a dignidade em responsabilidade de ninguém. Mais ou menos assim: Um consórcio contrata o Tio Patinhas para tocar um serviço, que subcontrata a Maga Patalógica, que subcontrata o Donald, que deixa tudo na mão de três pequenas empreiteiras do Zezinho, do Huguinho e do Luizinho. Às vezes, o Zezinho não tem as mínimas condições de assumir turmas de trabalhadores, mas conduz o barco mesmo assim. Aí, sob pressão de prazo e custos, aparecem bizarrices. Depois, quando tudo acontece, Donald, Patalógica, Tio Patinhas e o consórcio dizem que o problema não é com eles – afinal, eles não rabiscaram carteira de trabalho alguma. E aí, ninguém quer pagar o pato – literalmente. Ficam os trabalhadores a ver navios, como Patetas.
Aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados (em caráter terminativo), vai para o Senado. E de lá para a sanção presidencial. Aposto um santinho de campanha que, se isso ocorrer este ano, Dilma vai fazer média e não vetará os dispositivos danosos ao trabalhador. A menos que o mesmo trabalhador faça barulho.
Solicitei a três atores do direito, especialistas no tema, que explicassem as consequências negativas para os trabalhadores caso o projeto de lei seja aprovado. Dêem uma olhada nas avaliações. Se após isso, continuarem achando que não nada lhe diz respeito ou que a discussão sobre direito do trabalhador é coisa de comunista, faça-me um favor: não se sinta culpado quando seu filho ou filha perguntar, daqui a uns anos, algo do tipo “mãe, pai, o que é emprego?”
Rafael de Araújo Gomes, procurador do trabalho da 15a Região
A consequência da aprovação de projetos sobre o tema em trâmite no Congresso Nacional é que poderá uma empresa, se assim desejar, terceirizar não apenas parte de suas atividades, mas todas elas, não permanecendo com qualquer empregado. Teríamos então uma empresa em funcionamento, com atividade econômica, mas sem nenhum funcionário.
Tomemos, para melhor visualização de tal disparate, autorizado pelos projetos, o caso do banco Bradesco, empresa com capital social superior a 30 bilhões de reais e mais de 70 mil empregados.
Aprovada a terceirização nos moldes pretendidos, nada haverá na legislação que impeça o Bradesco de livrar-se de todos os seus empregados, permanecendo com nenhum, mediante a terceirização de todas as funções. Se tal opção for economicamente vantajosa ao banco, ela poderá ser adotada. Teremos então uma empresa com capital social, faturamento e lucro da ordem de vários bilhões de reais, e nenhum empregado, ou seja, nenhum ônus trabalhista.
Parece o cenário com o qual sonharam os banqueiros de todas as épocas em seus devaneios mais loucos, não? Todos os lucros, e nenhuma responsabilidade. Pois tal sonho de qualquer capitalista poderá enfim se transformar em realidade, em nome da “modernidade” e da “competitividade”.
Renato Bignami, auditor fiscal do trabalho em São Paulo
Ao autorizar, via processo legislativo, a subcontratação da principal (ou principais) atividade(s) de determinada empresa, sem que haja uma contrapartida jurídica de manutenção da garantia do equilíbrio contratual, a exemplo da responsabilização solidária, o legislador está dando um tiro de misericórdia no direito do trabalho.
Todas as relações irão se dar com base no direito civil/mercantil, privatistas ao extremo. Futuramente não haverá mais empregados. Quem irá contratar uma pessoa que reclama, que fica grávida, que falta ao serviço, que não abaixa a cabeça e atende a todo tipo de ordem, e que, além do mais, custa o dobro e possui direitos pétreos, como limite de jornada de trabalho e piso salarial? Irá naturalmente contratar uma empresa terceirizada, que, por sua vez, também irá contratar uma quarteirizada e que, em última análise, contratará um micro-empreendedor individual, por exemplo, sem que isso possa ser considerado fraude, à luz da legislação proposta pelo deputado federal Sandro Mabel.
Trata-se da externalização total e completa dos riscos da atividade econômica sem que haja um mínimo de divisão dos lucros dela advindos, via valorização do trabalho. Nossa sociedade terá uma lei que valoriza a liberdade de empresa (princípio da livre iniciativa) ao extremo, sem garantir a proteção que o direito do trabalho buscou construir, no decorrer dos últimos 90 anos. No entanto, devemos sempre lembrar que a Constituição é clara, no artigo 1º, inciso IV, ao afirmar que o Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito que tem por fundamento os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, em iguais proporções. O PL 4330 subverte esse princípio e “desregula” a balança, em nítido desvalor do trabalho. Caso o PL seja convertido em lei será o caos e seguramente não colaborará nem para garantir segurança jurídica aos empresários e, muito menos, para construir coesão social, tão necessária nos dias de hoje, em que vemos a população sair às ruas clamando por melhores condições de vida.
Por fim, teremos a legislação mais liberal do mundo ocidental, mais ainda que a lei chilena e seguramente mais que qualquer ordenamento europeu (todos garantem, pelo menos, que haja solidariedade jurídica entre os elos). Iremos de encontro à Recomendação 198, da Organização Internacional do Trabalho, que sugere um maior nível de proteção à relação de emprego, e uma valorização crescente do princípio da primazia da realidade como fundamental na determinação da relação de trabalho. Enfim, o PL legitima todo tipo de fraude a que estamos acostumados a denunciar e a atacar, no curso da atividade inspecional. Um verdadeiro retrocesso.
Marcus Barberino, juiz do Trabalho da 15a Região
O pior cenário é não haver nenhuma defensa ao direito de negociação coletiva e de representação sindical. Ao permitir o deslocamento de uma atividade estratégica da empresa para qualquer prestador de serviço, você está alterando de modo unilateral a formação dos contratos coletivos de trabalho e, por via indireta, dos contratos individuais.
Outra dimensão dramática é não estabelecer a solidariedade entre prestadores e tomadores. Se eles criam os riscos não podem ter limitação quanto à responsabilidade dos riscos em face de terceiros.
A questão, tal como posta, acaba por colocar o crédito do trabalhador em posição de proteção jurídica inferior a de um particular (pois aqui incide as regras do Código Civil) e da União (cuja violação de créditos tributários implica responsabilidade solidária dos devedores).
Enfim é a mercantilização tão violenta quanto na época da revogação da “poor law” inglesa em 1834.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

De volta para o passado

Nojento ...

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Ayrton Centeno

Quando a História quer nos mostrar onde exatamente estamos ela cumpre este papel com uma precisão e uma extraordinária capacidade de rir de si mesma. Nem que tenha de repetir-se enquanto farsa. E onde exatamente estamos? Ou, melhor dizendo, onde está exatamente uma classe média (e médica) preconceituosa, insensível, egoísta e amamentada semanalmente com doses cavalares de arsênico pela revista Veja? Obviamente não está no Brasil, país odiado em que as empregadas domésticas agora tem — imagine só!  — até carteira de trabalho e em que a ralé elege os presidentes. Supostamente deveria estar no futuro, onde está sua imaginação de carrões, mansões, bugigangas hightech e férias em Miami. Mas está, que pena, em Little Rock, Arkansas, na frente do ginásio central da cidade. É o dia 4 de setembro de 1957 e brancos e brancas de todas as idades vaiam Elizabeth Eckford, 15 anos: “Dá o fora, macaca”, gritam. “Volta pro teu lugar!”, exigem. E mais: “Vai pra casa, negona!” e ”Volta para a África!”

É o primeiro dia de aula de Elizabeth e ela encontra uma muralha de caras hostis, crispadas, injetadas de ódio. Nervosa, abraçada a sua pasta, procura resguardar-se junto a uma mulher mais velha, que deveria ser mais tolerante. Erro: ela lhe cospe no rosto. Elizabeth e mais oito colegas negros são os “Nove de Little Rock”. Foram os primeiros escolhidos para iniciar a dessegregação racial do ambiente escolar no recalcitrante Sul da Klu Klux Klan. Elizabeth tenta entrar na escola mas, por três vezes, barreiras da polícia estadual travam seus passos. Negros não devem frequentar escolas de brancos, entende o governador Orval Faubus, do Arkansas. Pouco importa que a Suprema Corte tenha decidido pela integração racial.

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No dia 27 deste mês, a foto de um médico cubano negro cercado por jovens médicas brancas sendo vaiado em Fortaleza, Ceará, trouxe inevitavelmente à memória a iconografia da demolição do apartheid no Sul dos Estados Unidos em meados da década de 1950 e começo dos 1960. Cinquenta e seis anos separam — e unem — as vaias de Little Rock e de Fortaleza. Nos dois casos, quem empurrou as vozes gargantas afora foi a intolerância, o medo e a mesquinharia. Com uma diferença: em Little Rock, os alunos incomodados teriam que conviver com os novatos de outra cor. Que ocupariam assentos que poderiam estar acomodando bundas brancas e não negras. Um horror, portanto.

No Brasil, não há este problema. Os médicos brasileiros insultados pela chegada dos forasteiros não precisam nem mesmo olhar as suas caras. Cubanos, argentinos, uruguaios, espanhóis, etc., vão trabalhar e viver num Brasil à parte. Vão trabalhar num Brasil precário que não lhes interessa absolutamente. Vão ocupar as vagas e receber os salários que rejeitaram como indignos de seu profundo saber e do seu projeto de vida saudável. Vão atuar em 701 municípios que não possuem shopping centers. Vão atuar na periferia das grandes cidades onde os profissionais nativos não necessitarão entrar e embarrar os pneus do carro do ano. Ficará para os estrangeiros a missão primordial de botar o pé na lama e se aproximar daqueles brasileiros que não merecem a atenção dos brasileiros que se formam nas melhores faculdades de medicina do Brasil, aquelas custeadas pelo dinheiro público e sustentadas inclusive por parte da renda dos mais pobres. Estes, enfim, conhecerão talvez seu primeiro médico. 

Que não será um brasileiro.

Elizabeth e os oito de Little Rock somente entraram na escola apoiados pelo governo federal. O presidente Dwight Eisenhower, general que havia combatido o nazismo na condição de comandante dos aliados na Europa, decidiu cumprir a ordem judicial contra o apartheid de Faubus. Mandou a 101ª Divisão Aerotransportada do Exército assegurar o ingresso dos estudantes. E a força ajudou o direito a se impor. Que não falte — se for preciso – a mesma determinação a Dilma Rousseff.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Assim se constrói um planeta desigual

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No preço decomposto do seu cafezinho emerge intermediação global, que espolia agricultores e provoca inflação cada vez mais segregadora

Por Ladislau Dowbor | Foto: Letícia Freire

A visão que herdamos é a de que lucro se gera na empresa, que paga aos trabalhadores menos do que o valor obtido. Isto sem dúvida é verdadeiro, quer chamemos o valor obtido de lucro, de mais valia, ou, de maneira mais neutra, de excedente. Não há muito a acrescentar neste debate. O que queremos aqui focar é como este lucro se desloca na cadeia produtiva. É cada vez menos o produtor que se apropria do resultado do valor agregado de um determinado produto, e cada vez mais o intermediário. Um exemplo prático, extraído do excelente estudo sobre a aplicação de ciência e tecnologia à economia agrícola, nos dá a dimensão do problema¹.
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O gráfico acima mostra como se forma a cadeia de preços de um produto, o café, à medida que avançamos na cadeia produtiva, desde a produção do grão pelo agricultor, até o momento em que é transformado na bebida que tomamos. Ou seja, a evolução do preço da porta da fazenda em Uganda, à porta do bar no Reino Unido, desde os 14 centavos de dólar pagos a quem produziu o café até o equivalente de 42 dólares que pagamos no bar.
É bom seguir a evolução das colunas, que representam o valor obtido em cada etapa: porta da fazenda, comercialização primária (trader price), colocado no porto em Mombasa, colocado em Felixstowe no Reino Unido, custo do produto após processamento na fábrica, preço na prateleira do supermercado e, finalmente, o preço sob forma de café para consumo (when made into coffee). Veja-se antes de tudo a participação ridícula do produtor de café, que arca com o grosso do trabalho. Depois, ao pegarmos as cinco primeiras etapas, vemos que para o conjunto dos agentes econômicos que podem ser considerados produtivos (produtor, serviço comercial primário, transporte, processamento) a participação no valor que o consumidor final paga ainda é muito pequena.
O imenso salto se dá no preço na gôndola do supermercado, os Walmart ou equivalentes em qualquer país. E outro salto se dá no ”when made into coffee”, ou seja, quando é servido sob forma de café. O gráfico fala por si. E os valores nas pontas, 14 centavos e 42 dólares, dão uma ideia da deformação da lógica de remuneração dos fatores e dos agentes econômicos.
Não há nada de muito novo nisto, todos sabemos do peso dos atravessadores, conceito inventado justamente para dar uma conotação negativa aos intermediários dos processos produtivos que ganham não ajudando, mas colocando gargalos, ou pedágios, sobre o ciclo produtivo. Mas o que queremos levantar aqui é que há um desequilíbrio muito forte entre os esforços que dedicamos ao estudo e divulgação da variação de preços no tempo, essencialmente a inflação, e o pouco que estudamos sobre a variação de preços dentro das cadeias produtivas. Aparecem de vez em quando, como no Globo Rural que apresentou produtores de tomate no Paraná que se recusavam a vender o produto ao preço de 13 centavos por quilo (quatro reais por caixa de 30 quilos), sabendo quanto o consumidor pagaria na feira.
O impacto econômico deste processo é simples: do lado do produtor, o lucro é insuficiente para desenvolver, ampliar ou aperfeiçoar a produção, e em consequência a oferta não se expande. Do lado do consumidor, o preço é muito elevado, o que faz com que o consumo também seja limitado. Quem ganha é o intermediário, com margens muito elevadas sobre um fluxo relativamente pequeno de produto.
A lógica da desintermediação, naturalmente, é reduzir os lucros gerados no pedágio, redistribuindo esta apropriação de mais-valia entre o produtor (que poderá produzir mais e melhor) e o consumidor (sob forma de preço mais baixo, o que permitirá consumo maior, absorvendo assim o fluxo maior de produtos). E o intermediário descobrirá que ao ganhar menos sobre um volume maior, voltará a ter a sua parte do bolo sem prejudicar a cadeia produtiva.
De onde vem este poder do intermediário de travar o processo para maximizar o seu lucro? Um outro gráfico do mesmo estudo ilustra bem a situação do pequeno produtor e do consumidor final frente ao “gargalo” dos grandes intermediários:
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O título do gráfico é “a concentração do mercado oferece menos oportunidades para os agricultores de pequena escala”. Trata-se aqui essencialmente de entender a dificuldade da agricultura familiar. O sentido geral do gráfico, é que a ampla base na parte de baixo, representando os agricultores (small-scale farmers) é constituída por muitos produtores (mais de quatro milhões no Brasil), dispersos e portanto com pouca força. Forma-se depois um gargalo logo acima, ao nível dos traders (comercialização primária), e o gargalo se afina mais ainda no nível dos processadores do produto, e se mantém muito concentrado no nível dos varejistas. No nível dos consumidores, a ampulheta se abre novamente de maneira radical, pois são milhões os consumidores, sem nenhuma força individual para influenciar os preços. Quando perguntamos, nos consumidores do produto final, porque o preço subiu, nos dizem que o produto “está vindo mais caro”. Vindo mais caro de onde?
A importância deste tipo de estudos, que aparecem apenas ocasionalmente e em casos extremos, é que mostram onde surge efetivamente a inflação (é o momento de “salto” radical do preço), e portanto onde se trava também o desenvolvimento dos processos produtivos. Temos hoje inúmeras instituições que fazem um seguimento muito detalhado da inflação, inclusive porque é importante para o reajuste de aluguéis, de salários e assim por diante. Mas a análise sobre de onde vem a mudança do nível geral de preços busca os setores que se destacam (por exemplo os alimentos) e não as variações de preços dentro de cada cadeia produtiva.
Praticamente ninguém estuda onde o preço está sendo aumentado, em que elo da cadeia produtiva. Os dois gráficos que apresentamos acima são muito raros, e em todo caso nem sistemáticos nem regulares, no sentido de formar uma imagem da evolução no tempo. E no entanto todos os dados da composição de custos de cada produto existem, pois uma empresa precisa deles para definir o preço final de venda. O que é necessário é fazermos um tipo de engenharia reversa, tomando um produto final – por exemplo um medicamento – e verificar a evolução dos custos em cada nível de transformação e intermediação.
Isto permitiria, por exemplo, deixar mais claro o custo da intermediação financeira nos processos produtivos, outro tipo de gargalo que encarece muito o produto final e reduz a produtividade da cadeia. Permitiria também estimular investimentos complementares nas áreas do gargalo, de forma a diversificar a oferta e reduzir o efeito de cartelização (monopsônios ou oligopsônios, no jargão econômico). Seria um instrumento poderoso para o CADE identificar pontos de incidência para políticas anti-truste e de defesa de mecanismos de mercado. E melhoraria a relação de força dos produtores frente aos intermediários, cada vez mais desequilibrada.
O que não podemos é continuar a manter esta situação em que todos sabemos do entrave que representam os atravessadores de diversos tipos para a dinamização da produção e do consumo, mas não se produz nenhuma informação adequada sobre como se constrói o preço final de cada produto. Não basta medir a inflação, temos de ver como se gera, e quem a gera. Não é particularmente complexo comparar quanto vale no mercado atacadista o ácido ascórbico, a popular vitamina C, com o que pagamos na farmácia.
Em termos de dinamização do processo produtivo em geral, trata-se de identificar os gargalos que geram lucros extraordinários sem agregação de valor correspondente. São os elos da cadeia produtiva que inflam os preços e travam a expansão do ciclo produtivo. Com cada vez menos grandes intermediários atravessando as principais cadeias produtivas, trazer um pouco de luz para a compreensão da formação da cadeia de preços seria fundamental. As diversas instituições que hoje seguem a inflação com tanto detalhe poderiam, sem muita dificuldade, abrir uma janela de atividade promissora, e prestar um bom serviço para a racionalização dos processos produtivos.

¹ IAASTD – Agriculture at a Crossroad – International Assessment of Agricultural Science and Technology for Development – Unep, New YORK, 2009

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Rebelião dos cabelos brancos: idosos portugueses rejeitam cortes na aposentadoria

Lado a lado com trabalhadores e desempregados, muitas vezes de braço dado com os netos, os mais velhos foram às ruas
Os mais indefesos são as principais vítimas dos cortes drásticos das aposentadorias dos funcionários públicos, anunciados esta semana pelo governo português do conservador primeiro-ministro Pedro Passos Coelho. Por isso, as ruas se encheram. Nunca antes se viu tantos cabelos brancos nas frequentes manifestações contra o governo.

Katalin Muharay/IPS



Lado a lado com trabalhadores e desempregados, muitas vezes de braço dado com os netos, os mais velhos foram às ruas contra o confisco, em defesa de seus frágeis direitos. Desde que o FMI (Fundo Monetário Internacional), a União Europeia e o Banco Mundial começaram, em junho de 2011, a ditar as normas para as finanças públicas do país, a mão dura caiu sobre os mais vulneráveis: trabalhadores precários, funcionários públicos e aposentados.

As condições impostas pela chamada troika financeira para aprovar um crédito de US$ 110 bilhões destinados a resgatar a economia lusa são especialmente duras para as camadas menos favorecidas dos 10,6 milhões de portugueses. Os cortes anunciados pelo governo para este e o próximo ano no aparato estatal chegam a US$ 4,92 bilhões, metade da quantia destinada à capitalização de três bancos privados em dificuldades, acusam a oposição e os sindicatos.

O corte adicional das aposentadorias é ainda pior do que “todas as más ações que já foram cometidas contra os pensionistas”, denunciou Jorge Nobre dos Santos, presidente da Fesap (Frente Sindical da Administração Pública). “O dinheiro foi e continua sendo manipulado por qualquer pessoa, governos e governantes, sem perguntar nada aos seus legítimos proprietários”, que são os que durante toda sua vida profissional contribuíram para a Seguridade Social Portuguesa (SSP), acusou o sindicalista.

Santos afirmou que a proposta é retroativa, violando todos os compromissos assumidos pelo Estado com seus trabalhadores aposentados. Para ele, a estratégia é englobar todas as aposentadorias, “seja do setor público ou do privado", onde "a credibilidade do Estado foi colocada em dúvida, porque o senhor primeiro-ministro a está minando”, concluiu. O Sindicato Frente Comum das Administrações Públicas acredita que a proposta do governo “é um roubo” e se compromete a fazer todo o possível para evitar que se concretize.
“A tentativa de reduzir o valor das aposentadorias é uma afronta contra os que contribuíram com o direito à pensão”, disse o representante da Frente, Teles Alcides. A única alternativa para centenas de milhares de portugueses “é a indignação contra essas medidas, que são de uma crueldade inaudita, um autêntico assalto contra os que descontaram por toda uma vida de trabalho, de um dinheiro que não é do Estado, mas nosso”, disse à IPS o aposentado Armindo Brandão, que verá sua pensão da SSP reduzida em 9,5%.

“Para mim, que tenho aposentadoria de US$ 1.020, esta é uma quantia enorme, além de ser simplesmente um assalto, mas como o roubo é cometido pelo governo, o ladrão não é preso”, destacou Brandão. Os protestos dos aposentados já se tornaram violentos, registrando-se quase diariamente agressões verbais e até físicas contra funcionários da SSP ou da Direção Geral de Impostos.

Alvos

Esta autêntica rebelião contra as autoridades do Estado, segundo a Associação de Aposentados (ARE), acontece porque continuam os ataques a este segmento vulnerável da população, “que dia a dia vê sua aposentadoria diminuir por meio de novos impostos e reduções”. Esta situação “configura um verdadeiro confisco contra quem descontou a vida toda e agora vê sua aposentadoria cortada em um exercício de despojo sem precedentes”, afirma um comunicado da ARE.

O sentimento prevalecente entre os mais afetados pela crise é o de profunda injustiça, como deixa patente uma carta enviada ao jornal Público de Lisboa pelo leitor Manuel Morato Gomes. Enquanto são anunciados cortes até nas pensões por viuvez, não são explicadas “as exceções dos ex-magistrados e ex-diplomatas, bem como as subvenções vitalícias para quem foi deputado, membro de governo e ex-presidentes”, acusou Gomes. Em seguida pergunta onde está a justiça, a moral, a igualdade e o senso comum de tal medida, e acusa Passos Coelho de “agir somente de acordo com sua teoria liberal, desprezando completamente as pessoas”.

IPS consultou outro aposentado, o ex-soldado Feliciano, que combateu nas guerras coloniais nas então províncias de ultramar africanas (1961-1974), onde perdeu uma perna. Ele recebe uma modesta pensão por invalidez. Feliciano não revela seu sobrenome “por medo de represálias”, disse, para em seguida lamentar “a falta de sensibilidade e de respeito por nós, que fomos à África defender a bandeira em uma guerra injusta, na qual nem sempre acreditávamos”.

“Sobrevivi à guerra na Guiné Bissau apesar de ter ficado ferido, mas é provável que não sobreviva a este governo, que só pensa em se desfazer dos velhos, que morram o mais rápido possível para assim ajustar as contas do Estado”, enfatizou. Os vários cortes orçamentais anunciados, que incluem demissões no serviço público, são alvo de um pedido de fiscalização preventiva do presidente de Portugal, Anibal Cavaco Silva, ao Tribunal Constitucional (TC) sobre a eventual ilegalidade da proposta de lei do governo que contempla os cortes.

Em seu editorial o jornal Público diz que o conservador Cavaco Silva não se baseou em uma remota suspeita de inconstitucionalidade da lei, mas que “seus artigos são tão drásticos, sua cobertura tão vasta e suas potenciais consequências na vida de milhares de cidadãos são tão penalizantes que nenhum presidente se arriscaria a promulgá-la sem a aprovação do TC”. O matutino lisboeta conclui prevendo que, em caso de veto pelo TC, “os radicais dos ajustes dirão novamente que a Constituição se converteu em uma força de bloqueio que arrasta o país para o precipício. Podem dizer, sempre que depois não sustentem que um Estado de direito coexista com violações à Constituição”.

* Reportagem do IPS

domingo, 25 de agosto de 2013

NOVA DERROTA DO SINDICATO AMARELÃO ...

Caro companheiro ...

Jamais tivemos a menor dúvida quanto à ausência  de     representatividade do suposto "SINDICATO" frente aos judiciários. 

A inércia , a incompetência , sua ligação  umbilical com o patronato , a    falta de  brios , de  iniciativa , de rumo ou tudo isso junto    são sintomas mais que suficientes para levar o agrupamento amarelão à situação de  coma irreversível em que atualmente se encontra.
Assim temos que o O Sindicato União , depois de Acordão desfavorável   no TRT, ingressou    com   Recurso   Extraordinário ao STF , não interpondo a    medida correta que seria o de Revista , a ser apreciada pelo TST.

O recurso Extraordinário foi denegado e o Sindicato União Interpôs Agravo  de Instrumento da Decisão , o que igualmente não foi admitido. 

Agora lhes resta tão somente a procrastinação.
Os autos serão devolvidos à origem     e   a   respectiva   sentença, executada.

Aproveitamos para informar  que o    Sintrajus   está tomando   as medidas administrativas     e  judiciais  cabíveis   ao seu registro   definitivo    junto    ao Ministério  do  Trabalho.



Leia a decisão :


É a questão urbana, estúpido!













A vida nas cidades brasileiras piorou muito a partir dos 

últimos anos da década passada. Considerando que a 

herança histórica já não era leve, o que aconteceu para 

torná-la pior?





Quem acompanha de perto a realidade das cidades brasileiras não estranhou as manifestações que impactaram o país em meados de junho de 2013.1 Talvez a condição de jovens, predominantemente de classe média, da maioria dos manifestantes exija uma explicação um pouco mais elaborada, já que foi antecedida pelos movimentos fortemente apoiados nas redes sociais. Mas no Brasil é impossível dissociar as principais razões, objetivas e subjetivas desses protestos, da condição das cidades. Essa mesma cidade que é ignorada por uma esquerda que não consegue ver ali a luta de classes e por uma direita que aposta tudo na especulação imobiliária e no assalto ao orçamento público. Para completar, falta apenas lembrar que há uma lógica entre legislação urbana, serviços públicos urbanos (terceirizados ou não), obras de infraestrutura e financiamento das campanhas eleitorais.
As cidades são o principal local onde se dá a reprodução da força de trabalho. Nem toda melhoria das condições de vida é acessível com melhores salários ou com melhor distribuição de renda. Boas condições de vida dependem, frequentemente, de políticas públicas urbanas – transporte, moradia, saneamento, educação, saúde, lazer, iluminação pública, coleta de lixo, segurança. Ou seja, a cidade não fornece apenas o lugar, o suporte ou o chão para essa reprodução social. Suas características e até mesmo a forma como se realizam fazem a diferença.
Mas a cidade também não é apenas reprodução da força de trabalho. Ela é um produto ou, em outras palavras, um grande negócio, especialmente para os capitais que embolsam, com sua produção e exploração, lucros, juros e rendas. Há uma disputa básica, como um pano de fundo, entre aqueles que querem dela melhores condições de vida e aqueles que visam apenas extrair ganhos.
A cidade constitui um grande patrimônio construído histórica e socialmente, mas sua apropriação é desigual e o nome do negócio é renda imobiliária ou localização, pois ela tem um preço devido a seus atributos. Isso tem a ver também com a disputa pelos fundos públicos e sua distribuição (localização) no espaço.2
Como integrantes de um país da periferia do capitalismo, em que pesem as novas nomenclaturas definidas pelo mainstream, as cidades brasileiras carregam uma herança pesada. A desigualdade social, uma das maiores da América Latina, e a escravidão vigente até pouco mais de um século atrás são características que se somam a um Estado patrimonialista e à universalização da “política do favor”. De que forma essas características aparecem nas cidades? Como não é o caso de fazermos uma leitura extensa, pois este texto é apenas um ponto de partida, vamos priorizar o fato de que grande parte de nossas cidades é construída pelos próprios moradores em áreas invadidas – muitas delas ambientalmente frágeis – ou adquiridas de loteadores ilegais. Para a construção desses bairros não contribuem arquitetos ou engenheiros, tampouco há observância de legislação urbanística ou de quaisquer outras leis, até mesmo para a resolução dos (frequentes) conflitos, para a qual não contribuem advogados, cortes, juízes ou tribunais. Trata-se de uma força de trabalho que não cabe no mercado residencial privado legal, que por sua vez (e por isso mesmo) é altamente especulativo. Trata-se, portanto, de uma força de trabalho barata, segregada e excluída da cidade legal. Assim como vivemos a industrialização dos baixos salários, podemos dizer que vivemos a urbanização dos baixos salários. A melhoria desses bairros é fonte inesgotável do velho clientelismo político: trocam-se por votos a pavimentação de uma rua, a iluminação pública, uma unidade de saúde, uma linha de ônibus etc.
A cidade formal, destinada a ser simulacro de algumas imagens-retalhos do “Primeiro Mundo”, é a outra face da moeda. Uma não existe sem a outra. Os exemplos virão quando tratarmos do momento atual.
Foi sobre essa base extremamente desigual que se deu, no início dos anos 1980, o ajuste fiscal. O Brasil vinha há quarenta anos num crescimento acima dos 7% ao ano. As migalhas desse banquete traziam algum conforto para a população migrante, que chegava aos milhares nas cidades, em especial nas principais metrópoles. Com a globalização e o ajuste fiscal, a tragédia urbana se aprofundou.
A contar a partir dos anos 1980, o impacto das décadas seguintes de baixo crescimento, alto desemprego e recuo das políticas públicas e sociais determinadas pelo receituário neoliberal pode ser medido por muitos indicadores, mas vamos fazê-lo aqui pelo aumento da violência urbana. A taxa de homicídios cresceu 259% no Brasil entre 1980 e 2010. A principal vítima dos homicídios é o jovem negro e pobre, morador da periferia metropolitana.3
Com a globalização, o território brasileiro passa por notável transformação. Mudam as dinâmicas demográfica, urbana e ambiental, além das social e econômica. A exportação de commodities – grãos, carnes, celulose, etanol, minérios – ganha o centro da política econômica e sua produção reorienta os processos demográficos. A urbanização se interioriza. O tsunami dos capitais globais e nacionais passou antes pelo campo, subordinando o que encontrou pela frente: terras indígenas ou de quilombolas, florestas amplamente derrubadas, o MST, criminalizado, e lideranças, inclusive religiosas, assassinadas.
Contraditoriamente, foi nesse período que floresceu uma nova política urbana, em torno da qual se organizaram movimentos sociais, pesquisadores, arquitetos, urbanistas, advogados, engenheiros, assistentes sociais, parlamentares, prefeitos, ONGs etc. Construiu-se a Plataforma de Reforma Urbana, e muitas prefeituras de “novo tipo” (ou democrático-populares) adotaram novas práticas urbanas. Além de incluir a participação social – orçamento participativo, por exemplo –, priorizou-se a urbanização da cidade ilegal ou informal, que era invisível até então para o urbanismo e as administrações públicas. Esse movimento logrou criar um novo quadro jurídico e institucional ligado às cidades – política fundiária, habitação, saneamento, mobilidade, resíduos sólidos –, além de novas instituições, como o Ministério das Cidades (2003), o Conselho das Cidades (2004) e as conferências nacionais das Cidades (2003, 2005 e 2007). O Estatuto da Cidade, festejado no mundo todo como exemplar, foi aprovado no Congresso após treze anos de luta popular, em 2001.
Por mais paradoxal que possa parecer, apesar de todo esse avanço institucional, quando o governo Lula retomou em 2009 os investimentos em habitação e saneamento numa escala significativa, após quase trinta anos de estagnação nesse sentido, as cidades se orientaram em uma direção desastrosa.
As primeiras medidas de combate à fome e à pobreza constituíram um círculo virtuoso de fortalecimento do mercado interno. Os principais programas sociais do governo Lula, continuados pelo de Dilma Rousseff, foram o Bolsa Família, o Crédito Consignado, o Programa Universidade para Todos (ProUni), o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o Programa Luz para Todos. Garantiu-se também um aumento real do salário mínimo (de cerca de 55%, entre 2003 e 2011, conforme o Dieese). Os classificados em “condição de pobreza” diminuíram sua representação de 37,2% para 7,2% nesse mesmo período. Além disso, o crescimento tanto da economia quanto das taxas de emprego trouxe esperança de dias melhores.4
Em 2007, o governo federal lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), voltado para o investimento em obras de infraestrutura econômica e social. O modelo visava à desoneração fiscal de produtos industriais e buscava alavancar o emprego na indústria da construção. Após a crise de 2008, essa orientação foi aprofundada. Em 2009, foram lançados o PAC II e o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida, desenhado por empresários da construção e do mercado imobiliário em parceria com o governo federal. Teve então início um boom imobiliário de enormes proporções nas grandes cidades. Enquanto em 2009 o PIB brasileiro e da construção civil foram negativos, contrariando a tendência anterior, em 2010 o crescimento nacional foi de 7,5% e o da construção civil, de 11,7%.5 Em seis regiões metropolitanas, o desemprego, que atingia 12,8% em 2003, caiu para 5,8% em 2012. A taxa de desemprego da construção civil no período diminuiu de 9,8% para 2,7%.6 O investimento de capitais privados no mercado residencial cresceu 45 vezes, passando de R$ 1,8 bilhão em 2002 para R$ 79,9 bilhões em 2011,7 e os subsídios governamentais (em escala inédita no país) cresceram de R$ 784.727 para mais de R$ 5,3 bilhões em 2011.8
O coração da agenda da reforma urbana, a reforma fundiária/imobiliária, foi esquecido. Os movimentos sociais ligados à causa se acomodaram no espaço institucional em que muitas das lideranças foram alocadas. Sem tradição de controle sobre o uso do solo, as prefeituras viram a multiplicação de torres e veículos privados como progresso e desenvolvimento. Certa classe média viu suas possibilidades de galgar à casa própria aumentarem, especialmente graças às medidas de financiamento estendido e à institucionalização do seguro incluídas no Minha Casa, Minha Vida.
Com exceção da oferta de emprego na indústria da construção, para a maioria sobrou o pior dos mundos. Em São Paulo, o preço dos imóveis aumentou 153% entre 2009 e 2012. No Rio de Janeiro, o aumento foi de 184%. A terra urbana permaneceu refém dos interesses do capital imobiliário e, para tanto, as leis foram flexibilizadas ou modificadas, diante de urbanistas perplexos.9 A disputa por terras entre o capital imobiliário e a força de trabalho na semiperiferia levou a fronteira da expansão urbana para ainda mais longe: os pobres foram para a periferia da periferia.10 Novas áreas de proteção ambiental acabam sendo invadidas pelos sem alternativas, pois a política habitacional está longe do núcleo central do déficit.11 Os despejos violentos foram retomados, mesmo contra qualquer leitura da nova legislação conquistada por um Judiciário extremamente conservador.12 Favelas bem localizadas na malha urbana sofrem incêndios, sobre os quais pesam suspeitas alimentadas por evidências constrangedoras.13
Os megaeventos – como a Copa e as Olimpíadas – acrescentam ainda mais lenha nessa fogueira. Os capitais se assanham na pilhagem dos fundos públicos, deixando inúmeros elefantes brancos para trás. Mas é com a condição dos transportes que as cidades acabam cobrando a maior dose de sacrifícios por parte de seus moradores. E embora a piora de mobilidade seja geral – isto é, atinge a todos –, é das camadas de rendas mais baixas que ela vai cobrar o maior preço.
O tempo médio das viagens em São Paulo era de 2 horas e 42 minutos em 2007. Para um terço da população, esse tempo é de mais de três horas.14
A desoneração dos automóveis somada à ruína do transporte coletivo fizeram dobrar o número de carros nas cidades. Em 2001, havia em doze metrópoles brasileiras 11,5 milhões de automóveis e 4,5 milhões de motos; em 2011, 20,5 milhões e 18,3 milhões, respectivamente. Os congestionamentos em São Paulo, onde circulam diariamente 5,2 milhões de automóveis, chegam a atingir 295 quilômetros das vias.
O governo brasileiro deixou de recolher impostos no valor de R$ 26 bilhões desde o final de 2008 (nesse mesmo período, foram criados 27.753 empregos), e US$ 14 bilhões (quase o mesmo montante dos subsídios) foram enviados ao exterior. Há mais subsídios para a circulação de automóveis (incluindo combustível e outros itens) do que para o transporte coletivo.15
A prioridade ao transporte individual é complementada pelas obras de infraestrutura dedicadas à circulação de automóveis. Verdadeiros assaltos aos cofres públicos, os investimentos em viadutos, pontes e túneis, além de ampliação de avenidas, não guardam qualquer ligação com a racionalidade da mobilidade urbana, mas sim com a expansão do mercado imobiliário, além, obviamente, do financiamento de campanhas.
O forte impacto da poluição do ar na saúde da população de São Paulo, com consequente diminuição da expectativa de vida, tem sido estudado pelo médico Paulo Saldiva, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto Saúde e Sustentabilidade. O comprometimento da saúde mental (depressão, ansiedade mórbida, comportamento compulsivo) tem sido estudado pela psiquiatra Laura Helena Andrade, também pesquisadora da USP. É da vida, do tempo perdido, mas também da morte, literalmente, que estamos tratando.
Concluindo: para fazer frente a esse quadro, aqui apenas resumido, temos no Brasil leis, planos, conhecimento técnico, experiência, propostas maduras e testadas nas áreas de transporte, saneamento, drenagem, resíduos sólidos, habitação... Mas, além disso, o primeiro item necessário à política urbana hoje é a reforma política, em especial o financiamento de campanhas eleitorais. Então, que viva a moçada que ganhou as ruas. Se fizermos um bom trabalho pedagógico, teremos uma nova geração com uma nova energia para lutar contra a barbárie.


Ermínia Maricato 

Professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e professora visitante da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Formulou a proposta do Ministério das Cidades, no qual foi ministra adjunta (2003-2005).

Ilustração: Jota K.
Este artigo faz parte do livro Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, a ser lançado em agosto. A publicação (Boitempo e Carta Maior) terá 112 páginas e vai custar R$ 10 [e-book: R$ 5].
1 Ver, da autora, artigos anteriores que tratam do assunto em: .
2 Essas ideias, aqui toscamente rascunhadas, estão baseadas em bibliografia de autores que se ocuparam da leitura marxiana da questão urbana: Henri Lefebvre, David Harvey, Christian Topalov, Jean Lojkine, Alain Lipietz, Manuel Castells, Sergio Ferro e Nilton Vargas (esses dois últimos no Brasil), entre outros.
3 Cf. Julio Jacobo Waiselfisz, “2012 | A cor dos homicídios no Brasil”, Mapa da Violência. Disponível em: .
4 Marcio Pochmann, Nova classe média? Trabalho na pirâmide social brasileira, São Paulo, Boitempo, 2012.
5 Cf. a página da internet da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC). Disponível em: .
6 Idem.
7 Cf. as páginas na internet da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip) e do Banco Central do Brasil. Disponíveis, respectivamente, em: e .
8 Cf. Teotônio Costa Rezende, “O papel do financiamento imobiliário no desenvolvimento sustentável do mercado imobiliário brasileiro”, palestra apresentada no Sindicato da Habitação (Secovi), São Paulo, 1º dez. 2012.
9 Ver Ana Fernandes, “Salvador, uma cidade perplexa”, Carta Maior, 21 set. 2012. Disponível em: ; e Jurema Rugani, “Participação social, a Copa, a cidade: como ficamos?”, Carta Maior, 24 ago. 2012. Disponível em: .
10 Ver Leticia Sigolo, “Sentidos do desenvolvimento urbano: Estado e mercado no boom imobiliário do ABCD” (título provisório), doutorado em andamento, FAU-USP.
11 Ver Luciana Ferrara, “Autoconstrução das redes de infraestrutura nos mananciais: transformação da natureza na luta pela cidade”, tese de doutorado, FAU-USP, 2013.
12 A respeito das remoções forçadas, ver o material de pesquisa coletado pelo grupo Observatório de Remoções, da FAU-USP. Disponível em: . Ver ainda o blog da urbanista e professora de arquitetura Raquel Rolnik: .
13 Sobre incêndios em favelas, ver João F. Finazzi, “Não acredite em combustão espontânea”, Carta Maior, 11 set. 2012. Disponível em: .
14 Cf. Companhia do Metropolitano de São Paulo – Metrô, Pesquisa origem e destino 2007. Disponível em: .
15 Ver Marcos Pimentel Bicalho, “O pesadelo da imobilidade urbana: até quando?”, Carta Maior, 4 jul. 2012. Disponível em: .

sábado, 24 de agosto de 2013

É possível outro sistema financeiro?


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Divulgação do lucro bilionário dos bancos revela como eles dominaram economia capitalista. E convida a descobrir novas formas de oferecer crédito sem concentrar riqueza 

Por Paulo Kliass*


Apenas poucos dias após os principais bancos privados apresentarem seus resultados relativos ao primeiro semestre deste ano, agora vem a notícia bombástica do Banco do Brasil (BB). A maior instituição financeira nacional, um banco bicentenário e constituído sob a forma de empresa de economia mista, registrou em seu balanço o maior lucro semestral de uma instituição do gênero no País. Foram R$ 10 bilhões de lucro líquido no período de janeiro a junho.
A divulgação de tais números espantosos deveria contribuir para a ampliação do debate a respeito das funções e do modelo do sistema financeiro nos tempos de hoje, no capitalismo global e também aqui em nossas terras.
Afinal, se somarmos esse lucro do BB aos outros 3 maiores bancos privados, chegaremos à cifra de R$ 26 bi somente para o primeiro semestre. Como houve 123 dias úteis no período, podemos raciocinar com um lucro líquido diário de R$ 211 milhões apenas para os 4 grandes bancos. Um lucro horário de quase R$ 27 mi em jornada de 8 horas e de quase meio milhão de reais por minuto. Uma loucura! São números que escancaram a supremacia do poder do financismo e a total submissão das autoridades governamentais à sua força.
Bancos públicos quase privados
Em termos bastante objetivos, um banco não produz nada. Outra particularidade interessante: um banco não opera com recursos próprios. Os bancos oferecem serviços, aos quais a maioria da população é obrigada a recorrer para sobreviver na sociedade, tal como ela se organiza nos dias de hoje. Mas a cada nova etapa de desenvolvimento do sistema capitalista, eles se fortalecem em sua função de promover a intermediação de recursos e de oferecer um conjunto enorme de novos serviços que combinam evolução tecnológica e instrumentos sofisticados do sistema financeiro. Como muitas dessas funções são de natureza pública e ocorrem em ambientes bastante oligopolizados, faz-se necessária a presença do Estado. Seja como agente direto (por meio de bancos estatais), seja por meio da regulação, da fiscalização e do controle das atividades do setor.
Felizmente para a sociedade brasileira, a onda do neoliberalismo não logrou levar a cabo a privatização dos dois maiores bancos públicos, que ainda pertencem ao governo federal e se subordinam ao Ministério da Fazenda. Refiro-me ao BB e à Caixa Econômica Federal (CEF). Mas tais instituições continuaram a operar praticamente como se privadas fossem, seja na sua relação com a clientela seja na política de concessão de crédito. Quem é correntista de algum deles sabe das práticas a que seus funcionários são obrigados a desenvolver, em função de uma orientação estratégica geral da direção da empresa. Direito do consumidor, critérios básicos de cidadania? A coisa passa longe desse tipo de princípio, uma vez que o interesse é a realização de resultados, o lucro no final do exercício.
Durante alguns meses, em 2011, ainda houve um início de movimento para que os 2 gigantes fossem utilizados pelo governo como importante instrumento de política econômica, com o intuito de obrigar a banca privada a reduzir suas margens de ganho e pressionar a que oferecessem crédito a taxas de juros mais “razoáveis”. Porém, logo em seguida tudo voltou como dantes, no quartel de Abrantes. Mas, afinal, qual é a lógica de estabelecer uma regra de conduta para o maior banco público que seja a de se comportar à maneira de seus concorrentes privados e buscar a obtenção de lucros a qualquer preço?
Lucro não é melhor critério de eficiência
Na verdade, há uma grande confusão entre a necessidade de melhoria no funcionamento das empresas e instituições públicas e o fato delas se mirarem no exemplo dos conglomerados privados como critério de aferição de sua eficiência. Nada mais equivocado, especialmente em se tratando de um setor como o financeiro. O BB não será mais eficiente em sua ação se continuar trilhando o caminho da “bradesquização” de suas atividades. Mimetizar o desempenho do financismo privado não soma ponto algum à avaliação do retorno que o BB proporciona à sociedade brasileira. O enfoque do lucro como instrumento de avaliação da performance da empresa deixa de considerar que a natureza pública da instituição deve prevalecer em qualquer análise de seu desempenho.
Um banco público deve, sim, apresentar uma eficiência em sua ação. E nesse aspecto existe ainda um longo caminho a ser percorrido. Parece desnecessário repetir aqui o óbvio. O ponto a reter, no entanto, é que os meios de se avaliar a qualidade de sua ação devem ser diferentes dos utilizados pelos bancos privados. Mais do que qualquer outra instituição financeira, o banco estatal deve dar conta de bons retornos em termos de sua função social. A acumulação de lucros a qualquer preço deveria passar longe de seus programas de planejamento estratégico. Sua prioridade deve ser a oferta de crédito a setores e clientes que não conseguem acesso no mercado privado, bem como a utilização de sua vasta rede de agências pulverizadas para reforçar o contato mais estreito com as comunidades espalhadas pelo Brasil afora
A generalização das atividades financeiras em nossa sociedade e a dependência cada vez maior dos indivíduos, famílias e empresas a esse tipo de alternativa em nossas vidas cotidianas são fenômenos que carregam uma força e um sentido inequívocos. No entanto, a lógica a nortear nossas relações sociais e econômicas deveria ser o reconhecimento da função social das instituições financeiras – tanto as públicas quanto as privadas. Com isso, não poderia haver espaço para prejuízos provocados à maioria da população pela ação espoliadora da banca. Caberia ao Estado, por meio de seus grandes bancos e por intermédio da regulamentação (via Banco Central), o estabelecimento de condições para evitar abusos e limites no comportamento de tais instituições.
Alternativas: cooperativas de crédito e bancos éticos
Por outro lado, também seria essencial que a administração pública estimulasse o surgimento e o fortalecimento de outras formas de organizações financeiras. Alguns exemplos podem ser lembrados, por se situarem justamente fora da lógica da instituição financeira privada que visa tão somente o lucro. É o caso, por exemplo, das cooperativas de crédito. Elas são o espaço, por excelência, onde se concretiza a máxima de colocar em contato os poupadores de recursos e aqueles que necessitam dos mesmos na forma de empréstimo. Como a cooperativa não tem por objetivo a realização de lucro, as taxas e as margens praticadas nas operações podem ser bastante reduzidas na comparação com aquelas utilizadas pela banca privada.
Deveria ser enfatizado também o movimento dos chamados bancos éticos, que ganha cada vez mais força no espaço europeu. O aprofundamento da crise econômico-financeira naquele continente tem reduzido bastante a credibilidade social nas instituições bancárias tradicionais. O contraponto a essa falta de confiança no sistema em geral, e nos bancos em particular, é a busca de alternativas para as aplicações e os empréstimos. Em geral, os bancos éticos são instituições que oferecem taxas mais reduzidas, tanto na captação dos recursos quanto na oferta de crédito na outra ponta. Além disso, não operam com empresas ou setores de alto risco e comprometem-se com os princípios da sustentabilidade (econômica, social e ambiental) e da transparência em suas operações.
A natureza particular da atividade financeira transforma o setor em elemento que sintetiza as contradições sociais e econômicas de toda a sociedade. Ali estão presentes os aspectos mais marcantes do capitalismo contemporâneo. O sistema financeiro é intrinsecamente portador e reprodutor da desigualdade. Basta ver a diferença de tratamento na forma como são atendidos os clientes VIP e a grande massa de assalariados, aposentados/pensionistas e demais beneficiários de programas sociais. O sistema financeiro comporta um alto grau de assimetria entre aquilo que o economês chama de “agentes da oferta e agentes da demanda”. Um punhado de conglomerados que cabem nos dedos das mãos em relação comercial junto a centenas de milhões de usuários, correntistas e clientes. O sistema financeiro é espoliador de recursos e direitos da grande maioria dos indivíduos e empresas que são obrigados a se utilizar de seus serviços. Basta ver a quantidade de tarifas que conseguem cobrar (com a complacência dos órgãos fiscalizadores) e os lucros bilionários que conseguem acumular a cada exercício.
Tributação para promoção de maior justiça social
Esse é um dos argumentos para que ele seja o locus por excelência para se praticar maior grau de justiça fiscal e social. O princípio da Taxa Tobin também deve ser aplicado nas transações financeiras no interior do território nacional. Assim, caberia a criação de alíquotas progressivas desse tipo de imposto, de acordo com o valor das transações efetuadas. O valor da tributação pode ser absolutamente residual no âmbito de cada operação individualmente (era o caso da extinta CPMF), mas certamente resultará em volumes significativos, quando arrecadados no conjunto das atividades financeiras ao longo de um determinado período de tempo.
Finalmente, um sistema financeiro mais justo e solidário deve comportar alíquotas de imposto de renda mais elevadas, com o objetivo de promover um maior retorno social para os lucros acumulados privadamente no interior dos grandes conglomerados empresariais que o compõem. E veja que não cabe o argumento de que isso viria inviabilizar o sistema privado, em razão da suposta alta carga tributária. Trata-se apenas de reduzir a margem de lucratividade estratosférica do setor, obrigando a que as instituições que o integram participem de forma mais ativa de sua própria função social.
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*Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.