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segunda-feira, 30 de junho de 2014

Dez anos de cotas na universidade: o que mudou?

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Índice de negros, mestiços e índios no ensino superior multiplicou-se. Seu desempenho é notável. Balanços desmentem preconceito inicial. Mas S.Paulo ainda resiste…


Por Igor Carvalho, na Revista Fórum

Em 1997, apenas 2,2% de pardos e 1,8% de negros, entre 18 e 24 anos cursavam ou tinham concluído um curso de graduação no Brasil. O baixo índice indicava que algo precisava ser feito. “Pessoas estavam impedidas de estudar em nosso país por sua cor de pele ou condição social. Se fazia necessário, na época, uma medida que pudesse abrir caminho para a inclusão de negros e pobres nas universidades”, lembra a pesquisadora e doutora em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Teresa Olinda  Caminha Bezerra.
A solução encontrada para que se diminuísse o déficit histórico de presença de negros e pobres nas universidades brasileiras foi a adoção de ações afirmativas por meio de reservas de vagas, que ficaram conhecidas como cotas. Porém, por todo o país, houve resistências à sua implementação.
Em 2003, a Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul começou a usar fotos enviadas por estudantes para decidir quais poderiam ter acesso às vagas, que foram determinadas por uma lei aprovada pela assembleia legislativa daquele estado. O “fenótipo” exigido era composto por “lábios grossos, nariz chato e cabelo pixaim”. A ação gerou protestos de movimentos negros. Ainda na Uems, em 2004, o professor de Física Adriano Manoel dos Santos se tornou réu em um processo na Justiça do estado por racismo. Ele teria dito, na sala de aula, que a universidade deveria “nivelar por cima, e não por baixo” o ensino, fazendo alusão aos cotistas presentes na sala, entre eles o estudante Carlos Lopes dos Santos, responsável pela ação judicial.
No Rio de Janeiro, em 2004, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) anunciou que rejeitaria uma possível política de cotas. O conselho de ensino da instituição, formado por professores, alunos e funcionários rejeitou a ação afirmativa. E o Ministério Público Federal (MPF) do Paraná entrou, em 2004, com um recurso na Justiça pedindo que a Universidade Federal do Paraná (UFPR) não adotasse o sistema de cotas em seu vestibular. O Judiciário paranaense freou a prática entendendo que a reserva de cotas afrontava “o princípio constitucional de isonomia e reforça práticas sociais discriminatórias.”
Já em 2012, quando a Universidade de Brasília (UnB) já havia completado oito anos de distribuição de vagas pelo sistema de cotas, o Partido Democratas (DEM) entrou com recurso no Superior Tribunal Federal contra a medida, alegando, inclusive “racismo”.
Mas a resistência às cotas não se dava somente no âmbito de conselhos das instituições ou do Judiciário, e muitas vezes se dava por meio de atitudes racistas. Durante um torneio esportivo envolvendo faculdades de Direito, em 2005, torcidas adversárias se referiam à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) como “Congo”, por sua diversidade racial. A alcunha foi adotada pelos alunos da instituição carioca, e até hoje o país africano é símbolo de suas equipes.
Após algumas universidades estaduais e federais aderirem à sistemas de cotas, os números apresentados no começo da matéria começaram a apresentar melhoras. Subiu de 2,2% para 11% a porcentagem de pardos que cursam ou concluíram um curso superior no Brasil; e de 1,8% para 8,8% de negros. Os números são do Ministério da Educação (MEC), em levantamento de 2013. Parte dos movimentos negros questiona os números, considerados “tímidos”. “Não podemos nos conformar com esses dados, são baixos ainda. Há avanços, mas estão muito longe de significar os resultados que buscamos”, afirma Douglas Belchior,  do conselho geral da UneAfro e da Frente Pró Cotas Raciais.
Uerj, o motor propulsor
Em 2013, foram completados 10 anos da primeira experiência brasileira com cotas. A Uerj autorizou, no vestibular de 2002, que Pretos, Pardos e Indígenas (PPI) autodeclarados solicitassem suas vagas por meio do sistema e a distribuição das matrículas ficou assim: 20% para negros, 20% para alunos de escola pública e 5% para portadores de necessidades especiais. Em 2007, o governador Sérgio Cabral determinou que no percentual de 5% deveriam ser inseridos os filhos de policiais, bombeiros e agentes penitenciários mortos.
De 2003 a 2012, já ingressaram na Uerj,  pelo sistema de cotas, 8.759 estudantes. Destes, 4.146 são negros autodeclarados, outros 4.484 usaram o critério de renda, enquanto 129 pelo percentual de portadores de deficiência, índios. “O desempenho da UERJ é excelente. Os cotistas derrubaram o mito de que o nível cairia nos cursos, o desempenho deles é ótimo”, elogia Teresa Olinda Caminha Bezerra, que produziu, em parceria com o professor de Administração Pública, também da UFF, Cláudio Gurgel, o artigo “A política pública de cotas nas universidades, desempenho acadêmico e inclusão social”, de agosto de 2011.
Neste estudo, Teresa e Gurgel ajudam a derrubar um dos mitos do discurso anti-cotas. Dos 32 cursos oferecidos pela UERJ, seis são analisados no artigo, todos da turma ingressante no ano de 2006, e apontam para uma equivalência de notas no desempenho entre cotistas e não-cotistas, que contrapõe os valores alcançados no vestibular. No curso de Administração, os cotistas tiveram uma média de 30,48 pontos no vestibular, contra 56,02 dos não cotistas, quase o dobro de diferença. Porém, o desempenho durante o curso mostra um crescimento no rendimento dos cotistas, que chegam à média de 8,077 contra 8,044 dos não cotistas.
Fonte: “Política de cotas em universidades e inclusão social: desempenho de alunos cotistas e sua aceitação no grupo acadêmico”. Tese de doutoramento de Tesesa Olinda Caminha.
A superação demonstrada pelos alunos cotistas é considerada “espetacular” por Teresa. “Eles rompem barreiras como preconceito e o histórico de ensino precário, mostrando que esse mito do ‘nível’ é apenas isso, um mito, sem qualquer base cientifica que se justifique.” Outro preceito desmentido no estudo é o da evasão (ver tabela abaixo), o que configuraria um “fracasso escolar”, nas palavras de Teresa e Gurgel. Nos seis cursos avaliados, a evasão de não cotistas é sempre maior.
Fonte: “Política de cotas em universidades e inclusão social: desempenho de alunos cotistas e sua aceitação no grupo acadêmico”. Tese de doutoramento de Tesesa Olinda Caminha
Hoje, dez anos depois da experiência da Uerj, 32 das 38 universidades estaduais já adotaram modelos de ações afirmativas. No princípio, leis estaduais obrigavam as instituições a oferecem cotas, caminho seguido por 16 delas. Porém, com o passar do tempo, a outra metade das adesões foi espontânea, se dando por meio de resoluções dos conselhos universitários.
Alckmin e as “ilhas do privilégio branco”
Entre as 32 instituições que tem ações afirmativas há uma divisão importante. Enquanto 30 delas se utilizam do modelo de cotas para a inclusão de negros, alunos de escolas públicas e portadores de deficiência, somente a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) optaram pelo sistema de bônus.
O formato é criticado por especialistas e movimentos sociais. “O bônus é horrível porque não reserva vagas, não estabelece uma condição para que o estudante negro possa acessá-las. As alternativas que foram colocadas, do College até a atual bonificação são ineficazes, elas não reconhecem o elemento racial como fundamental para a garantia do direito ao acesso às universidades”, explica Douglas Belchior.
“Os números que eles [USP e Unicamp] mostram são autoexplicativos, é uma política equivocada. Política pública tem que ser pragmática, se ela não produz resultado, não deu certo. O bônus você pode regular para fazer diferença, mas nessas universidades não querem que se faça a diferença”, afirma o cientista político do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Uerj e coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (Gemaa) João Feres Júnior.
Na USP, a bonificação oferecida à alunos PPI é de apenas 5% na média. Porém, o estudante só terá acesso ao benefício se for aprovado na primeira fase do vestibular. O sistema funciona desde 2006, quando foi criado o Programa de Inclusão Social (Inclusp). Números divulgados pela USP mostram que desde 2006 o índice de ingressantes na universidade por meio do Inclusp variou entre 24% e 29%, sendo que o maior índice foi alcançado em 2009. Em 2012, último ano com dados compilados, o índice ficou em 28%.
Porém, a instituição paulista não desmembra os dados, impossibilitando que se saiba quantos negros e pardos conseguiram entrar na universidade. “A USP tenta mascarar os números, aliás os números falam o que você quiser. Os 28% apresentados pela USP são uma mentira apresentados assim. 28% quem? Quantos são negros? Em quais cursos eles ingressaram?”, pergunta Silvio de Almeida, presidente do Instituto Luiz Gama. Em matéria de junho de 2012, o jornal O Estado de S. Paulo revela que, em 2011, dos 26% de aprovados pelo Inclusp, apenas 2,8% eram negros e 10,6%, pardos, totalizando 1.409 alunos, entre os 90 mil da universidade.
Na Unicamp, o sistema de bonificação oferece 20 pontos ao candidato que se autodeclarar PPI e mais 60 para os que pedem acesso por ter baixa renda. Porém, a média de nota da universidade de Campinas é de 500 pontos, chegando a 700 pontos em cursos como o de Medicina. O resultado da política de inclusão da Unicamp é um índice baixo de negros, pardos ou índios que acessaram a universidade. Desde 2003, quando o modelo foi adotado, o percentual variou entre o mínimo de 10,7% no primeiro ano e o máximo de 16% em 2005. No ano de 2013, apenas 13,2% de PPIs entraram na Unicamp.
A culpa para o fraco desempenho é do governo paulista, para Douglas Belchior. “Em São Paulo, há um interesse político, que vem de cima, de manter a USP e a Unicamp como ilhas do privilégio branco. A tropa conservadora do [governador Geraldo] Alckmin tem maioria absoluta na Alesp, onde não se consegue instalar nem mesmo uma CPI sobre o cartel do Metrô, que é um escândalo absurdo. Nas universidades, os conselhos são dominados por educadores ligados ao PSDB e ao Alckmin.” A terceira estadual de São Paulo, a Universidade Estadual Paulista (Unesp) reservou pela primeira vez, em dezembro de 2013, vagas para cotistas. Foram apenas 391 vagas para negros, pardos e indígenas, do total de 7.259 disponíveis.
A Frente Pró-Cotas Raciais, de São Paulo, iniciou uma campanha com o objetivo de conseguir 200 mil assinaturas para que um Projeto de Lei de iniciativa popular seja encaminhado e votado na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). No documento, o movimento pede que o estado separe 25% das vagas disponíveis nas universidades.
Sudeste inclui menos
Geraldo Alckmin (PSDB), tentou, em 2013, aprovar o Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (Pimesp), projeto que foi massacrado por parlamentares e ativistas, que o consideravam racista, sendo derrotado nos conselhos universitários. O Pimesp propunha que os alunos aprovados no vestibular, na modalidade cotas, passassem a integrar um colégio comunitário que teria o intuito de nivelar os alunos considerados, pelo estado, mais “fracos”. Eram os chamados “colleges”.
Segundo o estudo “As políticas de ação afirmativa nas universidades estaduais”, de novembro de 2013, do Gemaa, coordenado por João Feres Júnior, a inércia paulista coopera para que a região Sudeste (16,7%) seja a que menos inclui no país, contra 40,2% do Centro-Oeste, 32,6% do Nordeste, 29% do Sul e 26,6% do Norte. “São Paulo tem estaduais gigantes que não incluem. O Rio de Janeiro tem uma estadual eficiente e que é pioneira, mas é pequena. Minas Gerais tem um sistema “vagabundo”. Voltando para São Paulo, a USP não funciona, a Unicamp também e a Unesp nunca gerou vagas. O Alckmin nunca criou uma regulamentação decente. O Sudeste, mesmo nas federais, quando aprovada a lei (leia abaixo), foi muito resistente em aceitá-la”, afirma Feres Júnior.
Silvio de Almeida lamenta que Alckmin não siga o mesmo prumo da maioria das universidades estaduais do país. “Ao se colocar numa postura de resistências às políticas de inclusão, que já se provaram eficientes, o governo paulista se coloca de maneira totalmente contrária aos interesses de uma parcela significativa de São Paulo.”
Lei obriga adesão de política de cotas nas federais
No segundo semestre de 2004, a Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira instituição de ensino superior federal a adotar o modelo de cotas raciais como política de ação afirmativa. À época, se reservou 20% das vagas para quem se autodeclarasse como PPI.
Somente em 2012 foi aprovada a Lei 12.711, determinando que as universidades federais devem destinar 50% de suas matrículas para estudantes autodeclarados negros, pardos, indígenas – conforme definições usadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE-, de baixa renda, com rendimentos igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita, e que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. O número de cotas para negros, pardos e indígenas é estipulado conforme a proporção dessa população em cada estado, segundo último Censo do IBGE, em 2010.
Dados apresentados pelo Gemma em seu estudo “O impacto da Lei 12.711 sobre as universidades federais”, de novembro de 2013, indica um crescimento no número de estudantes negros as universidades comandadas pela União. “Em 2003, pretos representavam 5,9% dos alunos e pardos 28,3%, em 2010 esses números aumentaram para 8,72% e 32,08%, respectivamente”, aponta o documento.
Antes da lei ser aprovada, 18 das 58 universidades federais do país ainda resistiam em aplicar alguma política de cotas ou bônus. Desde o vestibular de 2013, por força da legislação, todas as instituições já aderiram, ampliando o número disponível de vagas para cotistas de 140 mil para 188 mil. Silvio de Almeida, assim como a Frente Pró-Cotas Raciais, entende que a lei federal precisa ser revista, ampliando o número de vagas para cotistas. “Se vamos levar em consideração o percentual da população paulista de negros para estabelecer a quantidade de vagas, isso tem que ser feito em cima dos 100% das vagas, e não dos 50%, porque não seremos, no caso de São Paulo, 34,6% de negros na universidade, mas sim metade desse número. As demais vagas, continuarão nas mesmas mãos.”
O argumento é reforçado por Feres Junior, do Gemaa. “A Lei federal de cotas foi muito difícil de aprovar, acho que politicamente é difícil que os movimentos sociais consigam modificar esse percentual agora. Porém, eles tem razão, da forma como está, você tem um teto baixo. É claro que existem negros entrando pela ampla concorrência, mas ainda é um número tímido.”

domingo, 29 de junho de 2014

Participação Social, o novo fantasma das elites

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Reação feroz dos conservadores ao decreto de Dilma revela incapacidade de compreender sociedades atuais e interesse de manter política como monopólio dos “representantes”

Por Ladislau Dowbor

O texto na nossa Constituição é claro, e se trata nada menos do que do fundamento da democracia: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Está logo no artigo 1º, e garante portanto a participação cidadã através de representantes ou diretamente. Ver na aplicação deste artigo, por um presidente eleito, e que jurou defender a Constituição, um atentado à democracia não pode ser ignorância: é vulgar defesa de interesses elitistas por quem detesta ver cidadãos se imiscuindo na política. Preferem se entender com representantes.

A democracia participativa em nenhum lugar substituiu a democracia representativa. São duas dimensões de exercício da gestão pública. A verdade é que todos os partidos, de todos os horizontes, sempre convocaram nos seus discursos a que população participe, apoie, critique, fiscalize, exerça os seus direitos cidadãos. Mas quando um governo eleito gera espaços institucionais para que a população possa participar efetivamente, de maneira organizada, os agrupamentos da direita invertem o discurso.

É útil lembrar aqui as manifestações de junho do ano passado. As multidões que manifestaram buscavam mais quantidade e qualidade em mobilidade urbana, saúde, educação e semelhantes. Saíram às ruas justamente porque as instâncias representativas não constituíam veículo suficiente de transmissão das necessidades da população para a máquina pública nos seus diversos níveis. Em outros termos, faltavam correias de transmissão entre as necessidades da população e os processos decisórios.

Os resultados foram que se construíram viadutos e outras infraestruturas para carros, desleixando o transporte coletivo de massa e paralisando as cidades. Uma Sabesp vende água, o que rende dinheiro, mas não investe em esgotos e tratamento, pois é custo, e o resultado é uma cidade rica como São Paulo que vive rodeada de esgotos a céu aberto, gerando contaminação a cada enchente. Esta dinâmica pode ser encontrada em cada cidade do país onde são algumas empreiteiras e especuladores imobiliários que mandam na política tradicional, priorizando o lucro corporativo em vez de buscar o bem estar da população.

Participação funciona. Nada como criar espaços para que seja ouvida a população, se queremos ser eficientes. Ninguém melhor do que um residente de um bairro para saber quais ruas se enchem de lama quando chove. As horas que as pessoas passam no ponto de ônibus e no trânsito diariamente as levam a engolir a revolta, ou sair indignadas às ruas. Mas o que as pessoas necessitam é justamente ter canais de expressão das suas prioridades, em vez de ver nos jornais e na televisão a inauguração de mais um viaduto. Trata-se aqui, ao gerar canais de participação, de aproximar o uso dos recursos públicos das necessidades reais da população. Inaugurar viaduto permite belas imagens; saneamento básico e tratamento de esgotos muito menos.

Mas se para muitos, e em particular para a grande mídia, trata-se de uma defesa deslavada da política de alcova, para muitos também se trata de uma incompreensão das próprias dinâmicas mais modernas de gestão pública.

Um ponto chave, é que o desenvolvimento que todos queremos está cada vez mais ligado à educação, saúde, mobilidade urbana, cultura, lazer e semelhantes. Quando as pessoas falam em crescimento da economia, ainda pensam em comércio, automóvel e semelhantes. A grande realidade é que o essencial dos processos produtivos se deslocou para as chamadas políticas sociais. O maior setor econômico dos Estados Unidos, para dar um exemplo, é a saúde, representando 18,1% do PIB. A totalidade dos setores industriais nos EUA emprega hoje menos de 10% da população ativa. Se somarmos saúde, educação, cultura, esporte, lazer, segurança e semelhantes, todos diretamente ligados ao bem estar da população, temos aqui o que é o principal vetor de desenvolvimento. Investir na população, no seu bem estar, na sua cultura e educação, é o que mais rende. Não é gasto, é investimento nas pessoas.

A característica destes setores dinâmicos da sociedade moderna é que são capilares, têm de chegar de maneira diferenciada a cada cidadão, a cada criança, a cada casa, a cada bairro. E de maneira diferenciada porque no agreste terá papel central a água; na metrópole, a mobilidade e a segurança e assim por diante. Aqui funciona mal a política centralizada e padronizada para todos: a flexibilidade e ajuste fino ao que as populações precisam e desejam são fundamentais, e isto exige políticas participativas. Produzir tênis pode ser feito em qualquer parte do mundo, coloca-se em contêiner e se despacha para o resto do mundo. Saúde, cultura, educação não são enlatados que se despacham. São formas densas de organização da sociedade.

Eu sou economista, e faço as contas. Entre outras contas, fizemos na Pós-Graduação em Administração da PUC-SP um estudo da Pastoral da Criança. É um gigante, mais de 450 mil pessoas, organizadas em rede, de maneira participativa e descentralizada. Conseguem reduzir radicalmente, nas regiões onde trabalham, tanto a mortalidade infantil como as hospitalizações. O custo total por criança é de 1,70 reais por mês. A revista Exame publica um estudo sobre esta Organização da Sociedade Civil (OSC), porque tenta entender como se consegue tantos resultados com tão poucos recursos. Não há provavelmente instituição mais competitiva, mais eficiente do que a Pastoral, se comparada com as grandes empresas, bancos ou planos privados de saúde. Cada real que chega a organizações deste tipo se multiplica.

A explicação desta eficiência é simples: cada mãe está interessada em que o seu filho não fique doente, e a mobilização deste interesse torna qualquer iniciativa muito mais produtiva. Gera-se uma parceria em que a política pública se apoia no interesse que a sociedade tem de assegurar os resultados que lhe interessam. A eficiência aqui não é porque se aplicou a última recomendação dos consultores em kai-ban, kai-zen, just-in-time, lean-and-mean, TQM e semelhantes, mas simplesmente porque se assegurou que os destinatários finais das políticas se apropriem do processo, controlem os resultados.

As organizações da sociedade civil têm as suas raízes nas comunidades onde residem, podem melhor dar expressão organizada às demandas, e sobre tudo tendem a assegurar a capilaridade das políticas públicas. Nos Estados Unidos, as OSCs da área da saúde administram grande parte dos projetos, simplesmente porque são mais eficientes. Não seriam mais eficientes para produzir automóveis ou represas hidroelétricas. Mas nas áreas sociais, no controle das políticas ambientais, no conjunto das atividades diretamente ligadas à qualidade do cotidiano, são simplesmente indispensáveis. O setor público tem tudo a ganhar com este tipo de parcerias. E fica até estranho os mesmos meios políticos e empresariais que tanto defendem as parceiras público-privadas (PPPs), ficarem tão indignados quando aparece a perspectiva de parcerias com as organizações sociais. O seu conceito de privado é muito estreito.

Eu, de certa forma graças aos militares, conheci muitas experiências pelo mundo afora, trabalhando nas Nações Unidas. Todos os países desenvolvidos têm ampla experiência, muito bem sucedida, de sistemas descentralizados e participativos, de conselhos comunitários e outras estruturas semelhantes. Isto não só torna as políticas mais eficientes, como gera transparência. É bom que tanto as instituições públicas como as empresas privadas que executam as políticas tenham de prestar contas. Democracia, transparência, participação e prestação de contas fazem bem para todos. Espalhar ódio em nome da democracia não ajuda nada.

sábado, 28 de junho de 2014

O gol fatal - Pasolini e o futebol-arte

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Por Pier Paolo Pasolini.*
Neste artigo, escrito pouco depois da final da Copa do Mundo de 1970 e publicado no Il Giorno, em 3/1/1971, Pier Paolo Pasolini desenvolve sua distinção entre “futebol de prosa”, praticado pelos europeus na época, e o “futebol de poesia”, característico de brasileiros e não-europeus em geral. Enquanto o primeiro seria voltado exclusivamente para os resultados e regido pela observância às regras do sistema, o segundo se basearia sobretudo na capacidade de invenção de cada jogador, resultando o gol de uma subversão prazerosa do código, e não do que chama ironicamente de “otimização dos podemas”.
A Boitempo recupera o artigo clássico do cineasta, poeta, intelectual e entusiasta do futebol durante a emocionante  Copa de 2014, em um cenário histórico de capitalismo e futebol altamente globalizados, e aproveita para interrogar seus leitores a respeito da atualidade da intervenção e das categorias (prosa/poesia) de Pasolini.
A publicação também se dá no contexto do especial /megaeventos do Blog da Boitempo, espaço aberto na esteira do lançamento do livro Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?, que busca aprofundar a reflexão entre futebol e sociedade.
***
Em meio ao debate atual sobre os problemas linguísticos que separam artificialmente literatos de jornalistas e jornalistas de jogadores, fui indagado por um gentil repórter do “Europeo”; mas as minhas respostas saíram cortadas e depauperadas no tablóide (por causa das exigências jornalísticas!). Porém, como o assunto me interessa, gostaria de voltar a ele com mais calma e com a plena responsabilidade sobre aquilo que digo.
O que é uma língua? “Um sistema de signos”, responde do modo hoje mais exato um semiólogo. Mas esse “sistema de signos” não é apenas, necessariamente, uma língua escrita-falada (esta que usamos agora, eu escrevendo e você, leitor, lendo).
Os “sistemas de signos” podem ser muitos. Tomemos um caso: eu e você, leitor, estamos numa sala onde também estão presentes [o jornalista e ex-porta-voz do presidente italiano Alessandro Pertini, Antonio] Ghirelli e [o jornalista esportivo da Itália Gianni] Brera, e você quer me dizer algo sobre Ghirelli que Brera não deve ouvir. A situação impede que você me fale por meio do sistema de signos verbais, e então é preciso recorrer a um outro sistema de signos, por exemplo, o da mímica; aí você começa a revirar os olhos, a entortar a boca, a agitar as mãos, a ensaiar gestos com os pés etc.
Você é o “cifrador” de um discurso “mímico” que eu decifro: isso significa que possuímos em comum um código “italiano” de um sistema de signos mímico.
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Pintura, cinema e futebol
Outro sistema de signos não-verbal é o da pintura; ou o do cinema; ou o da moda (objeto de estudo de um mestre nesse campo, Roland Barthes) etc. O jogo de futebol também é um “sistema de signos”, ou seja, é uma língua, ainda que não-verbal. Por que digo isso (que em seguida pretendo desenvolver esquematicamente)? Porque a “querelle” que contrapõe a linguagem dos literatos à dos jornalistas é falsa. E o problema é outro.
Vejamos. Toda língua (sistema de signos escritos-falados) possui um código geral. Tomemos o italiano: usando esse sistema de signos, eu e você, leitor, nos entendemos porque o italiano é um patrimônio nosso, comum, “uma moeda de troca”. Entretanto cada língua é articulada em várias sublínguas, e cada uma destas possui, por sua vez, um subcódigo: os italianos médicos se compreendem entre si -quando falam o jargão especializado- porque todos eles conhecem o subcódigo da língua médica; os italianos teólogos se compreendem entre si porque detêm o subcódigo do jargão teológico etc. etc.
A língua literária é também uma língua de jargão, com um subcódigo próprio (em poesia, por exemplo, em vez de dizer “speranza” é possível dizer “speme”, mas nós não estranhamos essa coisa engraçada porque se sabe que o subcódigo da língua literária italiana demanda e admite que, em poesia, sejam usados latinismos, arcaísmos, palavras truncadas etc. etc.).
O jornalismo não é senão um ramo menor da língua literária: para compreendê-lo, valemo-nos de uma espécie de sub-subcódigo. Em palavras pobres, os jornalistas são simplesmente escritores que, a fim de vulgarizar e simplificar conceitos e representações, se valem de um código literário, digamos -para ficarmos no campo esportivo-, de segunda divisão. Assim a linguagem de Brera é de segunda divisão se comparada à linguagem de Carlo Emilio Gadda [escritor italiano, 1893-1973] e de Gianfranco Contini [crítico literário].
E a língua de Brera é, talvez, o caso mais bem qualificado do jornalismo esportivo italiano. Portanto não existe conflito “real” entre escritura literária e jornalística: o problema é que esta, coadjuvante como sempre foi, agora exaltada por seu uso na cultura de massa (que não é popular!), encampa pretensões um tanto soberbas, de “parvenu”. Mas vamos ao futebol.
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O futebol é um sistema de signos, ou seja, uma linguagem. Ele tem todas as características fundamentais da linguagem por excelência, aquela que imediatamente tomamos como termo de comparação, isto é, a linguagem escrita-falada.
“Podemas”
De fato as “palavras” da linguagem do futebol são formadas exatamente como as palavras da linguagem escrita-falada. Ora, como se formam estas últimas? Formam-se por meio da chamada “dupla articulação”, isto é, por infinitas combinações dos “fonemas” -que, em italiano, são as 21 letras do alfabeto.
Os “fonemas” são, pois, as “unidades mínimas” da língua escrita-falada. Se quisermos nos divertir definindo a unidade mínima da língua do futebol, podemos dizer: “Um homem que usa os pés para chutar uma bola”. Aí está a unidade mínima, o “podema” (se quisermos continuar a brincadeira). As infinitas possibilidades de combinação dos “podemas” formam as “palavras futebolísticas”; e o conjunto das “palavras futebolísticas” constitui um discurso, regulado por normas sintáticas precisas.
Os “podemas” são 22 (mais ou menos como os fonemas): as “palavras futebolísticas” são potencialmente infinitas, porque infinitas são as possibilidades de combinação dos “podemas” (o que, em termos práticos, equivale às passagens da bola entre os jogadores); a sintaxe se exprime na “partida”, que é um verdadeiro discurso dramático.
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Os cifradores desta linguagem são os jogadores; nós, nas arquibancadas, somos os decifradores: em comum, possuímos um código.
Quem não conhece o código do futebol não entende o “significado” das suas palavras (os passes) nem o sentido do seu discurso (um conjunto de passes).
Não sou nem Roland Barthes [1915-1980] nem Greimas [linguista, 1917-92], mas, como diletante, se quisesse, poderia escrever um ensaio sobre a “língua do futebol” bem mais convincente do que este artigo.
Aliás, penso que se poderia escrever um belo ensaio intitulado “Propp Aplicado ao Ludopédio”, já que, naturalmente, como qualquer língua, o futebol tem o seu momento puramente “instrumental”, rígida e abstratamente regulado pelo código, e o seu momento “expressivo”.
Pouco antes, disse que toda língua se articula em várias sublínguas, cada qual com um subcódigo.
Pois bem, com a língua do futebol também é possível fazer distinções desse tipo: o futebol também possui subcódigos, na medida em que, de puramente instrumental, se torna expressivo.
Há futebol cuja linguagem é fundamentalmente prosaica e outros cuja linguagem é poética. Para explicar melhor a minha tese, darei -antecipando as conclusões- alguns exemplos: [o meio-de-campo italiano] Bulgarelli joga um futebol de prosa, é um “prosador realista”; Riva [maior goleador da história da seleção italiana] joga um futebol de poesia, é um “poeta realista”.
Corso joga um futebol de poesia, mas não é um “poeta realista”: é um poeta meio “maudit”, extravagante.
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Prosa e poesia
[Gianni] Rivera [meio-campista italiano que disputou a final da Copa de 1970, contra o Brasil] joga um futebol de prosa: mas sua prosa é poética, de “elzevir”.
Também Mazzola [João José Altafini. Jogou pelo Palmeiras e pela seleção brasileira, sendo campeão em 1958. Depois se transferiu para a Itália e se naturalizou italiano, chegando a jogar pela seleção na final da copa de 70 contra o Brasil] é um prosador elegante e poderia até escrever no “Corriere della Sera”, mas é mais poeta que Rivera: de vez em quando ele interrompe a prosa e inventa, de repente, dois versos fulgurantes.
Note-se que não faço distinção de valor entre a prosa e a poesia; minha distinção é puramente técnica.
Entretanto nos entendamos. A literatura italiana, sobretudo a mais recente, é a literatura dos “elzevires”: os escritores são elegantes e, no limite, estetizantes; a substância é quase sempre conservadora e meio provinciana… Em suma, democrata-cristã. Todas as linguagens faladas em um país, mesmo as mais especializadas e espinhosas, têm um terreno comum, que é a cultura desse país: a
sua atualidade histórica.
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Assim, justamente por razões de cultura e de história, o futebol de alguns povos é fundamentalmente de prosa, seja ela realista ou estetizante (este último é o caso da Itália); ao passo que o futebol de outros povos é fundamentalmente de poesia.
Há no futebol momentos que são exclusivamente poéticos: trata-se dos momentos de gol. Cada gol é sempre uma invenção, uma subversão do código: cada gol é fatalidade, fulguração, espanto, irreversibilidade. Precisamente como a palavra poética. O artilheiro de um campeonato é sempre o melhor poeta do ano. Neste momento, [Giuseppe] Savoldi [jogador do Bolonha, do Nápoli e da seleção italiana] é o melhor poeta. O futebol que exprime mais gols é o mais poético.
O drible é também essencialmente poético (embora nem sempre, como a ação do gol). De fato, o sonho de todo jogador (compartilhado por cada espectador) é partir da metade do campo, driblar os adversários e marcar. Se, dentro dos limites permitidos, é possível imaginar algo sublime no futebol, trata-se disso. Mas nunca acontece. É um sonho (que só vi realizado por Franco Franchi [1922-92, um dos principais nomes do cinema cômico italiano] nos “Mágicos da Bola”, o qual, apesar do nível tosco, conseguiu ser perfeitamente onírico).
Quem são os melhores dribladores do mundo e os melhores fazedores de gols? Os brasileiros. Portanto o futebol deles é um futebol de poesia – e, de fato, está todo centrado no drible e no gol.
A retranca e a triangulação é futebol de prosa: baseia-se na sintaxe, isto é, no jogo coletivo e organizado, na execução racional do código. O seu único momento poético é o contrapé seguido do gol (que, como vimos, é necessariamente poético).
Em suma, o momento poético do futebol parece ser (como sempre) o momento individualista (drible e gol; ou passe inspirado).
O futebol de prosa é o do chamado sistema (o futebol europeu). Nesse esquema, o gol é confiado à conclusão, possivelmente por um “poeta realista” como Riva, mas deve derivar de uma organização de jogo coletivo, fundado por uma série de passagens “geométricas”, executadas segundo as regras do código (nisso Rivera é perfeito, apesar de Brera não gostar, porque se trata de uma perfeição meio estetizante, não-realista, como a dos meio-campistas ingleses ou alemães).
O futebol de poesia é o latino-americano. Esquema que, para ser realizado, demanda uma capacidade monstruosa de driblar (coisa que na Europa é esnobada em nome da “prosa coletiva”): nele, o gol pode ser inventado por qualquer um e de qualquer posição. Se o drible e o gol são o momento individualista-poético do futebol, o futebol brasileiro é, portanto, um futebol de poesia. Sem fazer distinção de valor, mas em sentido puramente técnico, no México [em 1970] a prosa estetizante italiana foi batida pela poesia brasileira.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Nesta tarde de 26.06, mais uma manifestação dos oficiais da baixada santista que teve o apoio do SINTRAJUS representado pelo diretor Sérgio Augusto Heidrich Crochemore  e ASSOJUBS representado Rosangela dos Santos e Alexandre dos Santos em frente ao teatro Coliseu em Santos

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quinta-feira, 26 de junho de 2014

TJ-SP: PORTARIA Nº 9.018/2014

O PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, DESEMBARGADOR JOSÉ RENATO NALINI, no uso de suas atribuições legais,

CONSIDERANDO o Plano de Cargos e Carreiras dos servidores do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Lei Complementar nº 1.111/2010, que prevê a evolução profissional dos servidores na carreira do Tribunal de Justiça por meio dos institutos da Progressão e Promoção;

CONSIDERANDO o disposto nos artigos 13 a 19 e 21 a 27 da Lei Complementar nº 1.111/2010, e 6º e 7º da Portaria nº 8.623/2012;

CONSIDERANDO, o Projeto de Lei Complementar nº 42/2013 em tramitação, que altera o disposto no artigo 17 da Lei Complementar nº 1.111/2010;

CONSIDERANDO, finalmente, o disposto no inciso III do artigo 9º da Portaria nº 8.623/2012 e a necessidade de regulamentar os procedimentos relativos à Progressão e Promoção de 2013, diante do Provimento nº 89/2013, que retroagiu seus efeitos a 07 de dezembro de 2010;

R E S O L V E:

Artigo 1º - Desde que sejam as únicas interrupções, as ausências médicas a que se refere à Lei Complementar nº 1.041/2008, registradas no período de 01/07/2010 a 30/06/2013, não serão consideradas na apuração do interstício mínimo de 02 (dois) anos de efetivo exercício, exclusivamente no processo de progressão ou promoção do exercício de 2013.

Artigo 2º - Os servidores afastados para o exercício de mandato representativo em entidades de classe concorrerão à progressão ou promoção a partir do exercício de 2013.

Artigo 3º - Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

REGISTRE-SE. PUBLIQUE-SE. CUMPRA-SE.

São Paulo, 28 de maio de 2014.

(a) JOSÉ RENATO NALINI, Presidente do Tribunal de Justiça

Disponibilização: Diário da Justiça Eletrônico, segunda-feira, 23 de junho de 2014  - Caderno Administrativo, São Paulo, Ano VII - Edição 1674, p. 01.

Para além da ocupação do território: Notas sobre o discurso da “Pacificação” e seus críticos




O processo de “pacificação” das favelas cariocas, iniciado em 2008 e reforçado pouco depois com a vitória da candidatura da cidade do Rio de Janeiro para sediar dois grandes eventos internacionais, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, tornou-se um consenso que unifica a política, as empresas de mídia, a Universidade, setores privados, produtores culturais e, é claro, a maioria dos moradores da cidade. Para implantá-lo, o governo do estado do Rio de Janeiro tem à sua disposição não apenas o aparato policial-militar das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e recursos oriundos de diversas fontes, mas conta ainda com o apoio decisivo dos formuladores de intervenções públicas, especialmente as de caráter “social”, que se desenvolvem a partir de iniciativas como o programa UPP Social (coordenado pelo centro de pesquisas e planejamento da Prefeitura) e novos cursos voltados para as demandas específicas do mercado de segurança.
Através da repercussão midiática, as UPPs tornam-se, para o Rio, símbolos de um novo momento repleto de possibilidades, e o Rio, um símbolo para o País. No plano cultural, um exemplo inequívoco dessa articulação é o filme 5x Pacificação, de 2012, realizado por jovens cineastas moradores de favelas, que tenta mostrar as UPPs a partir do ponto de vista de “quem vive o dia a dia das comunidades cariocas”. O objetivo, diz um dos diretores, é “causar uma reflexão para que todo mundo siga junto com a secretaria de segurança”.1 Toda essa mobilização é parte de um programa de recriação da imagem da cidade que vai muito além da “retomada de territórios” e envolve grandes investimentos e processos de reestruturação urbana em larga escala, que encontram sua justificativa quase sem réplica nos “megaeventos” usados como indutores da acumulação privada.
Do amálgama de intervenções estatais, negócios lucrativos e formas de representação midiática e cultural “dirigidas” resulta o desaparecimento quase total da opinião pública independente.2 As implicações dessa nova realidade sobre os saberes especializados e o que restou da reflexão propiciada pela forma estética são evidentes. Por isso, entre aqueles que abordam o processo de “pacificação” com maior distanciamento, podem aparecer alguns posicionamentos dissonantes e até mesmo conflitos abertos contra o “pastiche midiático”, mas em nenhum momento lhes é permitido deixar de elogiar as ocupações militares.
A imprensa também se encarrega de colocar dúvidas sobre aspectos parciais da “pacificação”, de modo a não deixar dúvidas sobre o conjunto – e sobre a sua própria atuação na cobertura dos fatos. Esse posicionamento dúbio criou um padrão interpretativo que oscila entre a exaltação da ocupação militar e a denúncia altaneira dos “desvios” ou imperfeições do policiamento permanente nas favelas. Um argumento comum entre os defensores mais discretos das práticas em curso é o de que o Estado deve criar – ou fortalecer – uma esfera pública capaz de instaurar o diálogo entre os diferentes “atores sociais” envolvidos nas ocupações. Para alcançar tal meta, seria necessário investir na criação de uma polícia “comunitária” ou “de aproximação” que garantisse o exercício pleno da cidadania aos moradores das favelas ocupadas.
O alvo das críticas é quase sempre o esvaziamento das iniciativas locais, obstruídas, de uma forma ou de outra, pela “policialização” dos conflitos sociais. Fala-se, por exemplo, de como “a estreita ligação entre UPP Social e a unidade policial, além das fortes relações com o setor empresarial, desenha um modelo novo de definição do social” (FLEURY, Sonia. “Militarização do social como estratégia de integração – o caso da UPP do Santa Marta”. In: Sociologias, Porto Alegre, ano 14, n. 30, mai./ago. 2012, pp. 194-222.). Na mesma linha de argumentação, o sociólogo Luiz Werneck Vianna fala de uma “política social sem política”, evidenciando, no modelo de ocupação militar, a ausência de organizações livres da sociedade civil.3
Em outras abordagens, fica a impressão de que a ambiguidade em questão seria menos um produto das interpretações do que um dado estrutural do próprio caso analisado. A imprecisão dos objetivos da política de segurança teria produzido uma prática que não se definiu pela “guerra” ao crime ou pela mudança da cultura policial. Em todo caso, “ao menos como projeto as UPPs são, de fato, uma novidade muito positiva”, diz Luiz Antonio Machado da Silva, acrescentando que “seu sucesso depende de um acompanhamento menos eufórico, capaz de indicar os riscos de seu desvirtuamento e gerar expectativas menos desmesuradas como as atuais, em relação tanto a prazos e metas de „pacificação‟ quanto ao alcance do programa” (“As várias faces das UPPs”).
Apesar desse tipo de crítica ao tom eufórico das coberturas jornalísticas, cabe ressaltar a mídia tem adotado uma postura idêntica à defendida pelo professor, guardadas as diferenças de conteúdo, quando se move alternadamente entre a ideologia da “libertação”, representada pelas bandeiras hasteadas sobre territórios conquistados, e os discursos mais pragmáticos, que cobram das autoridades apenas a redução imediata dos conflitos ou a limitação da ação das quadrilhas nas favelas. Também não se pode negligenciar o fato de que as denúncias sobre a “migração de crime” após a ocupação das favelas, bem como sobre a atuação de grupos milicianos nas periferias da cidade, têm surgido antes na imprensa do que no debate universitário e têm até pautado muitas pesquisas que, no final das contas, por modéstia metodológica, revelam-se inconclusivas. De qualquer forma, os dois casos monstram que, em geral, as intervenções militarizadas são contestadas em função de algo que se crê ser um efeito secundário, mas, em última análise, elas permanecem legitimadas graças aos resultados imediatos até aqui obtidos, ainda que as finalidades da “pacificação” permaneçam pouco claras.
Uma atitude inversa, que se coloca em inequívoca oposição à militarização, pode ser observada nos comentários mais diretamente identificados com posições de “esquerda”, que tendem a enxergar as UPPs como instrumentos de criminalização da pobreza e ampliação das formas de controle social. Longe de representar um “desvio” ou um efeito colateral das políticas oficiais, a “policialização” da vida cotidiana e dos conflitos no interior das áreas ocupadas seria a própria finalidade das operações estatais. Na sequência de um longo histórico de controle social penal das camadas populares, as UPPs são denunciadas como dispositivos (no sentido foucauldiano dos mecanismos de operação material do poder) de ocupação militar e como laboratórios de novas técnicas de administração repressiva das populações marginalizadas. Ainda nessa perspectiva, as UPPs se aproximariam mais de uma forma “biopolítica” de gestão global da vida dos indivíduos, como se pode verificar nas inúmeras proibições, regulamentações e sistemas de vigilância impostos aos moradores, do que das experiências do chamado “policiamento comunitário”- amiúde evocado pelos meios de comunicação para legitimar as ocupações. Para Vera Malaguti,
o fato das UPPs estarem restritas ao espaço de favelas, e de algumas favelas, já seria um indício luminoso para desvendar o que o projeto esconde: a ocupação militar e verticalizada das áreas de pobreza que se localizam em regiões estratégicas aos eventos esportivos do capitalismo vídeo-financeiro (…) Com isso queremos frisar que as UPPs aprofundam as desigualdades e as segregações socioespaciais no Rio de Janeiro [grifo meu] (“O Alemão é muito mais complexo”).
Com argumentação semelhante, Joana Moncau define as UPPs como “mecanismos de controle e condicionamento das classes populares, cuja característica principal é a ocupação militar do território. Nesse sentido, não é nenhuma espécie de polícia comunitária, como alguns afirmam, mas uma clara ocupação militar” (“Unidades de polícia pacificadora, uma nova face da repressão policial no Brasil”). Aqui, enfim, caberia retomar o problema do esvaziamento das associações coletivas locais, porém não mais como um fenômeno secundário e quase acidental, mas como um projeto deliberado de monopolização das iniciativas nos territórios ocupados a fim de garantir a “governamentalidade” dos pobres e defender interesses privados sob a fachada da libertação dos territórios. Ainda sobre a relação entre ocupação militar e interesses econômicos, outra abordagem chega ao ponto de afirmar que “os espaços gigantescos de moradia dos pobres se tornaram grandes jazidas de acumulação para o capitalismo cognitivo” (COCCO, Giuseppe. “A guerra no Rio de Janeiro: a ofensiva do capitalismo cognitivo”), o que teria transformado as favelas em atrativos espaços de consumo disputados por empresas privadas e grupos mafiosos (milícias). Com isso, a militarização do espaço urbano, mais identificada com a ocupação das Forças Armadas do que com a das UPPs – embora uma tenha aberto o caminho para a outra – seria um elemento necessário para garantir essa “nova fronteira” da acumulação.
Quando os agentes do Estado ocupam indefinidamente uma favela sem que isto melhore o acesso aos direitos dos moradores, diz Michel Misse, a territorialização que caracterizava a atuação do tráfico de drogas é prolongada, seja sob influência policial ou das Forças Armadas. De acordo com Misse, as UPPs dão continuidade à lógica de operar por territórios ao invés de romper a territorialidade e integrar os diferentes espaços da cidade. “O desafio da permanência [das UPPs] agora não é, como se supõe, o de „levar políticas públicas‟ para os territórios, mas, por paradoxal que pareça, desterritorializá-los, isto é, integrá-los como bairros normalizados à cidade” (“Os rearranjos de poder no Rio de Janeiro”). Por trás desta lógica está a idéia autoritária de que “a comunidade pertence ao Estado”, como mostra Marcelo Lopes de Souza, que também desenvolve sua análise a partir do olhar sobre o território: através da “reconquista” – expressão que evoca “fervor patriótico e fanatismo religioso” –, a pacificação instaura um controle social cada vez maior sobre o espaço urbano. Já não estamos falando apenas dos territórios da pobreza. A utilização das Forças Armadas para finalidades de controle, dando suporte às UPPs nos grandes complexos de favelas, resulta na “militarização da questão urbana” e na domesticação dos segmentos mais mobilizados da sociedade (“A ‘reconquista do território’, ou: um novo capítulo na militarização da questão urbana”). Também aqui, diga-se de passagem, vemos reproduzida a diferença entre a perspectiva sociológica que capta os descaminhos de um processo considerado, em seus aspectos gerais, como positivo ou necessário, e a denúncia do caráter essencialmente autoritário da militarização.
Outras análises, igualmente focadas na crítica da ideologia da “pacificação”, têm chamado a atenção para a forma negociada das intervenções policiais. O conjunto de acordos oficiosos entre os executores da política de segurança do Estado e as redes do tráfico estaria reorganizando a estrutura do crime. Mais: o poder policial-militar exercido através do policiamento permanente teria se constituído como uma forma embrionária de “milícia institucionalizada”, pois muitos policiais, conforme diversas denúncias noticiadas pela imprensa, têm se beneficiado de sua posição para criar fontes de renda ilegais ligadas ao varejo de drogas ou aos serviços “alternativos” que proliferam nos espaços da pobreza.4
Além dos discursos produzidos pela mídia e pelas pesquisas universitárias, outras vozes também se fazem ouvir, manifestando perspectivas diferentes sobre o processo de “pacificação”. Na fala das lideranças comunitárias, por exemplo, surgem diferenças importantes em relação ao discurso dos “especialistas”. Em primeiro lugar, a necessidade, por parte de tais lideranças, de administrar conflitos e de representar a comunidade não permite que as denúncias de violências e arbitrariedades sejam colocadas em segundo plano. É grande o sentimento, entre os moradores das favelas ocupadas, de que o policiamento permanente não muda imediatamente a cultura e as práticas policiais no trato com os moradores. Por outro lado, a diminuição dos conflitos e incursões policiais violentas se reflete, na opinião majoritária dos moradores, em aprovação, e gera expectativas favoráveis nos locais onde o programa não foi implantado.5 Assim, quanto ao posicionamento em relação às UPPs, a maioria das lideranças adota um discurso de acomodação, que tenta colaborar e, ao mesmo tempo, cobrar das autoridades as prometidas políticas sociais e econômicas de “integração”.
A necessidade de políticas públicas capazes de garantir a contrapartida social das ocupações surge como a reivindicação principal: “nós queremos o poder público presente, não só o braço armado do poder público”, diz um líder comunitário do Morro da Mineira.6 Outro fator determinante para a incorporação parcial do discurso “oficial” pelas lideranças é a cooptação política, que ocorre não apenas por causa de interesses individuais, mas porque as reivindicações populares tendem a ganhar mais legitimidade junto à “opinião pública” quando não confrontam a ideologia oficial da “pacificação”. Mesmo assim, existem aqueles que não enxergam muitas diferenças entre as UPPs e outras experiências de controle policial. É o caso de Rumba Gabriel, do Movimento Popular de Favela, para quem a UPP é apenas um novo rótulo, exigido pelo momento político atual, para mascarar velhas práticas autoritárias.7 Também aparece na fala de algumas lideranças que adotam uma posição crítica às UPPs a tese de que o programa seria uma “fachada de segurança” para dar uma resposta imediata aos investidores do projeto olímpico, o que não se coaduna com as críticas que descrevem um reforço do controle social sobre a pobreza. Além disso, é importante compreender o conjunto das favelas ocupadas como espaços heterogêneos, nos quais convivem diferentes camadas sociais, ou diferenças entra as “partes altas”, menos integradas à cidade, e as “partes baixas”, entre o comércio formal e o informal. Portanto, não se pode esperar uma reação uniforme da população local, tendo em vista que, junto com a ocupação policial-militar, ocorrem processos de regulamentação dos serviços e atividades locais, além da proibição de eventos culturais responsáveis pela geração de muitos empregos e da expressiva ampliação do fluxo de pessoas que vêm de fora das comunidades.
Entre os agentes do Estado, nova dualidade: nas falas dos comandantes da PM encontramos apenas um resumo da versão doutrinária do projeto, sem que elas difiram das formulações da secretaria de segurança. Os discursos oficiais vão sendo elaborados de acordo com as demandas mais urgentes. As UPPs, que eram apenas um experimento localizado, ganharam corpo e apoio político e midiático quando começou a crescer a atenção internacional sobre a cidade do Rio de Janeiro. Em seguida, o programa tornou-se instrumento decisivo do governo do estado na disputa política no Rio de Janeiro. A “pacificação” da cidade foi enaltecida pela cobertura midiática durante a ocupação das favelas do Complexo do Alemão e da Penha, no final de 2010 (embora o episódio tenha sido protagonizado pelas Forças Armadas, em uma operação imprevista que resultou das intervenções da Polícia Militar em outras favelas), e as UPPs foram apresentadas como “territórios da paz”, tornando-se uma marca de exportação para outras cidades. Porém, o que os políticos não dizem e a maioria dos especialistas finge não perceber pode ser constatado a partir do ponto de vista da corporação policial, ainda que se trate apenas de uma formulação tosca: em contraste com as declarações oficiais, prevalece entre os policiais a idéia de que as UPPs visam apenas à segurança da Copa e das Olimpíadas, além de se configurar como um “programa eleitoreiro” para tranqüilizar a classe média (CANO, 2012: 8-9). Igualmente relevante é o surgimento de manifestações de clara hostilidade ao programa por parte dos próprios policiais, como a clivagem no interior dos batalhões entre os PMs mais antigos e os recrutas formados para atuar nas UPPs, que não são reconhecidos pelos primeiros como “verdadeiros policiais”. Além disso, uma pesquisa com soldados lotados nas “unidades pacificadoras” mostra que 70% deles prefeririam realizar outro tipo de policiamento (CANO, 2012: 8-9).
É flagrante o contraste entre as idéias norteadoras do programa de “pacificação” e a sua implantação, especialmente no que diz respeito à promessa de ocupar todas as favelas cariocas. No entanto, pronunciamentos mais recentes do secretário de segurança, José Mariano Beltrame, indicam uma espécie de inflexão realista: “não pretendemos usar o projeto em todas as favelas, e isso também não é o remédio definitivo para os nossos problemas”, disse o secretário em um momento de crise gerado a partir das evidências de que os conflitos entre traficantes prosseguiam nas periferias.8 Isso significa que, contrariando muitas expectativas, o policiamento permanente não deve se converter em uma política de segurança para o conjunto da cidade, só que menos por causa da carência de recursos do que pela natureza do programa. O modelo de policiamento que vem sendo adotado nas ocupações exige cinco vezes mais PMs por morador do que o patrulhamento convencional e, em muitos casos, conta ainda com instalações provisórias e condições de trabalho bastante precárias. Mas isso não explica tudo. O fato é que as UPPs foram concebidas a partir de uma perspectiva que vê as favelas ocupadas como espaços de ilegalidade incrustados na cidade. As UPPs não podem se generalizar porque só são possíveis onde existe um nítido contraste entre a favela e a cidade formal, o que elucida a escolha das áreas centrais e dos bairros das camadas mais abastadas (além das principais vias de acesso e circulação da cidade) em detrimento das áreas periféricas, que contam com os maiores índices de violência.
Esse quadro nos coloca diante de uma dificuldade que é anterior à questão da estratégia de segurança adotada pelo Estado e que as coberturas jornalísticas costumam se esforçar para nos fazer esquecer: as ocupações das favelas não foram precedidas por nenhuma reforma das instituições policiais. Helio Luz, ex-chefe da Polícia do Rio de Janeiro entre 1995 e 1997, diz que o fato de colocarem recrutas para montar as UPPs revela o descontrole e a corrupção nas polícias.9 Por sua vez, Luiz Eduardo Soares, secretário de segurança pública entre 1999 e 2000, que também considera as UPPs uma continuação dos “mutirões pela paz” e do GPAE, afirma que as virtudes do programa “não terão futuro se as polícias não forem profundamente transformadas” (“A crise no Rio e o pastiche midiático”). Mas a UPP não avança nesse sentido: o treinamento diferenciado não diminuiu a truculência e o autoritarismo, mantendo a desconfiança mútua entre moradores e policiais. Se as operações com altos índices de mortalidade diminuíram, a convivência forçada com um aparato repressivo fortemente armado e que exerce um controle permanente sobre a vida cotidiana das favelas produziu novos atritos. Desde 2009, o Estado ampliou o número de policiais, mas a formação “diferenciada” tem esbarrado nos problemas da urgência e da falta de recursos, o que resulta na eliminação de critérios de seleção e na redução do tempo de formação dos recrutas. Além disso, a relação entre “qualificação” e “eficiência” é menos direta do que parece – e sempre se deve levar em considerações aspectos como a definição de objetivos políticos, os interesses materiais e as motivações individuais. Ainda sobre esse aspecto, deve-se recordar que, em 2000, os policiais do GPAE receberam treinamento especial, incluindo instruções sobre legislação, direitos humanos e abordagem de pessoas. Mesmo assim, cerca de 70% dos policiais empregados no grupamento foram transferidos por desvios de conduta. Embora existam semelhanças entre o GPAE e as ocupações atuais, não faltam diferenças, sobretudo na amplitude das operações e no apoio político e midiático, ambos indissociáveis do projeto olímpico. Existe também uma significativa diferença de concepção. Ao contrário das UPPs, o programa anterior não previa a manutenção de grandes contingentes policiais nos locais ocupados. Essa diferença reflete uma preocupação maior com a redução dos índices de criminalidade violenta do que com o controle de territórios estratégicos. De qualquer forma, o programa não foi adiante por falta de apoio político e em função das denúncias envolvendo um problema para o qual as UPPs também não apresentam solução: a corrupção das polícias.
Ao descrever esse conjunto de análises, opiniões e posicionamentos a respeito da “pacificação”, pretendi colocar em evidência as implicações deste processo e o amplo conjunto de questões que ele suscita. Em primeiro lugar, interessa o modo como a problemática da segurança pública se articula com aspectos centrais da dinâmica da cidade. Em um texto anterior, “Cidade Olímpica: sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência na cidade do Rio de Janeiro”, persegui as pistas dessa articulação.10
Nele, argumentei que a lógica da “pacificação” possui três dimensões, todas relacionadas entre si, de modo que nenhuma delas pode ser plenamente compreendida se isolada das demais. Em primeiro lugar, trata-se de uma imagem de segurança a qual a cidade precisa estar associada: mesmo tendo nascido como um experimento relativamente autônomo, o programa das UPPs só ganhou força quando começou a fazer parte de um projeto mais abrangente de reestruturação urbana.
Esse projeto reproduz uma longa tradição de grandes reformas, inaugurada pela administração de Pereira Passos, no início do século XX, que tem sua razão de ser não na melhoria das condições de vida da população, mas na necessidade de modificar a imagem da cidade. Como já foi dito, coube às novas unidades de policiamento permanente diminuir o sentimento de insegurança da população através da ocupação de pontos estratégicos da cidade. Também a imagem do Estado e a legitimidade de suas intervenções estavam em questão, tendo em vista os números alarmantes de supostos confrontos letais envolvendo policiais. Com a sinalização de uma mudança das formas de enfrentamento da criminalidade que logrou, a despeito da manutenção de altos índices de violência, a construção de um consenso a respeito dos seus êxitos, a cidade do Rio pôde voltar a ser um cenário atrativo para investimentos de grande porte.
Nesse sentido, o “ufanismo televisivo” é parte integrante e indispensável da lógica da “pacificação”. É nesse contexto que os chamados “megaeventos” esportivos surgem como os grandes catalisadores que devem atrair parceiros privados e mobilizar grande parte da população local em torno da “renovação” da cidade. Para isso, os organizadores dos eventos, que não deixaram de inspecionar as primeiras UPPs antes que a sede dos jogos fosse escolhida, contam com o favorecimento do poder público e com uma série de medidas de exceção capazes de, em pouco tempo, produzir a adequação da cidade ao projeto olímpico.
É aqui que entra o segundo aspecto da “pacificação”: as UPPs participam ativamente na consolidação de um novo modelo de cidade empreendedora. Isso acontece em função da escolha das áreas privilegiadas, que devem se tornar mais seguras para o conjunto de investimentos e na produção de novas segregações socioespaciais pois, juntamente com as UPPs – e, em parte, através delas –, a política de remoções tem ganhado novo fôlego. Por sua vez, a valorização imobiliária decorrente não só das ocupações, mas do conjunto de transformações urbanas atuais, não deve ser considerada um simples epifenômeno. Através de inúmeras declarações oficiais, podemos constatar que as áreas ocupadas são escolhidas também em virtude das possibilidades de valorização patrimonial.
Por fim, as UPPs têm servido para garantir, nas favelas ocupadas, a “integração” de serviços e atividades informais a todo um conjunto de novas articulações pela via econômica, cujos exemplos mais expressivos são um banco popular na Cidade de Deus e a privatização dos serviços na zona portuária sob a vigilância da UPP da Providência. Esse último dado nos coloca diante de mais um aspecto da “pacificação”, que é o fortalecimento do controle social já mencionado.
Cabe apenas ressaltar que, ao contrário da visão ingênua de alguns críticos, não estamos diante de um programa passageiro, e sim de uma forma adensada de controle que modifica a dinâmica da cidade e altera também a relação entre o Estado e os segmentos mais pobres da população. Por outro lado, a cidade do Rio de Janeiro assistiu, nos últimos dez anos, à ascensão de novas formas de regulação social armada, que tem se intensificado – e não por acaso – nas áreas negligenciadas pelo programa de “pacificação”. Em meio a esse processo contraditório, as periferias que atraem a migração do tráfico, e para as quais já se disse abertamente que as UPPs não são uma solução, continuam a ser as principais vítimas da política extra-oficial de execuções e desaparecimentos.
As favelas sempre constituíram relações de cooperação em seu espaço interno, a partir das quais surgiu um discurso um tanto idealizado sobre as “comunidades”. No plano da economia urbana, elas são parte de um “circuito inferior” que se relaciona com o conjunto das atividades presentes na cidade (SANTOS, Milton. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. São Paulo: EDUSP, 2004.). Porém, no plano social, são abundantes as medidas de urgência e de sobrevivência que, mesmo sem qualquer perspectiva de mudança social, se caracterizam muitas vezes por não assumirem a forma de relações mercantis. A integração das favelas ocupadas ocorre de forma muito parcial ou seletiva. A via da “formalização” das atividades não tem contrapartida em termos de projetos sociais ou de organização coletiva. De um lado, ela agrava as segregações através da elevação dos custos gerais da reprodução das moradias e, de outro, estimula, nos espaços marginalizados, as mesmas relações presentes no restante da cidade. Em consequência, os moradores das chamadas “comunidades” se parecem cada vez mais com indivíduos atomizados que podem apenas trocar serviços entre si. As poucas formas de organização social existentes ficam comprimidas entre as pressões econômicas e um sistema de vigilância permanente. Por isso, não é acidental que as UPPs obstruam as iniciativas coletivas. Se o auge dos movimentos comunitários na década de 1980 estava associado ao reconhecimento dos direitos da população pobre, a conjuntura inaugurada na década seguinte, que pode ser caracterizada como uma viragem política de caráter “neoliberal”, foi dominada pelas idéias fixas do mercado e da ordem urbana. A partir de então, a idéia de integração, antes associada às demandas coletivas que só podiam ser atendidas através de políticas universalistas, foi ressignificada até se tornar uma espécie de privatização da vida cotidiana por meio do consumo individual.11 Duas questões surgem a partir desse quadro. Além da necessidade de compreender a transformação da política de segurança em um momento decisivo da “renovação” da imagem da cidade, surge o desafio de articular a problemática da violência com o desenvolvimento da crise urbana.
No que diz respeito à relação entre violência e reestruturação urbana, podemos dizer, muito resumidamente, que o problema principal é o tratamento monográfico ou unilateral dispensado a temas que, pela sua própria natureza e dinâmica, só podem ser compreendidos como partes de uma totalidade concreta. Para um determinado “campo” de investigação teórica que se debruça sobre a problemática da segurança, os elementos negligenciados são a cidade e o urbano. Isso ocorre, por exemplo, quando algumas análises apontam que a limitação, por assim dizer, espacial, do programa das UPPs, decorre exclusivamente da falta de recursos para a expansão e manutenção de novas unidades. O que desaparece nesse tipo de comentário é a produção de segregações, bem como a reconfiguração territorial do crime – quer se trate dos grupos de traficantes que abandonam as áreas mais “nobres” da cidade, quer das milícias, que ocupam as áreas “descuidadas” pelo Estado. Em outros momentos, a dimensão espacial volta à cena, mas adquire um sentido mais retórico que analítico. Assim, podemos ler que “as UPPs são uma proposta de política de segurança pública específica para áreas da cidade que podem ser reunidas sob o nome de territórios da pobreza”.12
Se o que está em questão é a ocupação dos “territórios da pobreza”, como foi afirmado, então convém perguntar: por que motivo as regiões mais pobres da cidade (sem falar nos municípios limítrofes, ainda mais pobres e mais violentos) são, precisamente, os locais que permanecem fora do alcance direto da pacificação? É que o problema parece estar colocado de modo invertido. Não se trata de ocupar os “territórios da pobreza”, mas de controlar a massa de pessoas pobres que permanece em aglomerados de pobreza no interior ou em contato com os territórios nos quais a riqueza circula. Em todo caso, a questão de saber por que, afinal de contas, a lógica da “pacificação” privilegia as áreas “nobres” é respondida pelo mesmo autor, agora não do ângulo do especialista, mas da razão cínica: considero possível que o simples deslocamento das atividades criminais para regiões mais recônditas da cidade, associado à discrição no uso de armas pelos criminosos que permanecem atuando nas áreas nobres, venha a reduzir o sentimento generalizado de medo e insegurança… (“Afinal, qual é a das UPPs?”: 3).
Outro campo de investigação que nos interessa mais diretamente é o das pesquisas urbanas. Também aqui se verifica o mesmo desencontro. Mesmo alguns pesquisadores que fazem parte do debate sobre o “novo modelo de cidade” em gestação, como Raquel Rolnik ― relatora da ONU para o direito à moradia adequada ―, enxergam as UPPs somente como “condicionalidades”, sem relação direta com os “megaeventos”.13 Essa questão também foi alvo da reflexão de um Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas que reúne, entre outros, integrantes da Central de Movimentos Populares, da Justiça Global, do Observatório das Metrópoles e do Fórum Popular de Orçamento do Rio de Janeiro. O Comitê produziu o dossiê “Megaeventos e violação dos direitos humanos no Rio de Janeiro”, com o qual compartilho uma série de pontos de vista e que tem, desde já, o mérito de colocar em foco a relação entre as UPPs e a lógica do empreendedorismo urbano. Para o coletivo de autores,
o que fica claro no caso do Rio de Janeiro é que o projeto de atração de investimentos tão propagandeado pelo poder público municipal e estadual com a realização da Copa do Mundo de futebol de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016 tem como um componente importante a expulsão dos pobres das áreas valorizadas ou que serão contempladas com investimentos públicos. Outra faceta dessa política é a criação das UPPs (…) tendo em vista que não é possível deslocar todos os pobres das áreas „nobres‟ da cidade [grifo meu]. (DOSSIÊ, 2012: 8).
Contudo, ao analisar mais de perto o tema da segurança pública, o dossiê afirma, em patente contradição com o próprio diagnóstico acima, que as UPPs, definidas como um programa “inspirado no conceito de policiamento comunitário, que tem como estratégia a busca de uma parceria entre a população e as instituições de segurança”, “trazem uma série de benefícios para os moradores”, incluindo a “inserção no mercado formal” e a “redução dos homicídios” (DOSSIÊ, 2012: 51). Na opinião dos autores, esse conjunto de elementos positivos seria contrabalançado apenas pela crescente especulação imobiliária nas favelas ocupadas, provocando a expulsão dos mais pobres. Ao não enfatizar diferenciações econômicas no interior das comunidades ocupadas – o caráter seletivo da “integração” -, os autores em questão são levados, em outra contradição, a considerar a mercantilização das favelas como um “benefício para os moradores”. Ao mesmo tempo em que o Comitê denuncia a substituição de uma política de segurança eficaz pela produção de uma “imagem de segurança” voltada para a atração de investidores, o seu documento considera que o principal instrumento dessa representação ideológica de uma “cidade segura” para o capital, a UPP, é uma “importante conquista” em relação às políticas anteriores, e termina as considerações sobre a política de segurança cobrando a extensão do programa para o conjunto da cidade, pois “há outras centenas de comunidades que ainda não receberam as UPPs” (DOSSIÊ, 2012: 52).14
Além disso, o documento, que caracteriza vagamente as UPPs como “inspiradas” no policiamento comunitário ― e, assim, coloca-se em uma posição ainda mais frágil que a das abordagens sociológicas descritas acima ―, também as considera como parte de um programa meramente instrumental a serviço dos interesses envolvidos na organização dos grandes eventos: “é claro que esse investimento em segurança faz parte de um projeto maior de reterritorialização urbana e de controle social”, que seriam “elementos chaves dos megaeventos”. (DOSSIÊ, 2012: 51). Aqui seria necessário inverter o argumento e mostrar como é que grandes eventos de porte internacional tornaram-se, especialmente a partir da experiência de Barcelona, no início dos anos 1990, elementos importantes para a concepção de um “projeto maior” de reestruturação urbana orientado pelos princípios da gestão empresarial. Se a lógica da “pacificação” não pode ser explicada a partir de uma hierarquia dedutiva que a converta em simples instrumento de interesses econômicos, o que exige um desvelamento das articulações entre a crise urbana e as intervenções no âmbito da segurança, tampouco cabe atribuir a um “megaevento” a capacidade de produzir, por si só, a reconfiguração da dinâmica territorial da cidade. De qualquer forma, a imagem desenhada pelo dossiê permanece, malgré lui, essencialmente correta para caracterizar um modelo de cidade segregada que está sendo produzida aqui e agora: Depois da Copa e das Olimpíadas, corre-se o risco de se acordar numa cidade onde os que consomem, vivem e lucram no mercado formal das partes mais nobres da cidade podem ter acesso quase instantâneo à segurança, enquanto as camadas sociais menos favorecidas vivem sob a vigilância de um regime militar altamente armado e treinado para defender os interesses mercantis” (DOSSIÊ, 2012: 54).
Quanto à segunda questão, cabe, antes de tudo, reconhecer que se trata de um tema difícil, quase não abordado por aqueles que se dedicam à questão urbana e que ultrapassa os limites destas notas. É preciso considerar que a expansão do modelo do tráfico de drogas baseado no controle territorial armado não é compreensível sem referência ao processo de esvaziamento econômico da cidade a partir da segunda metade da década de 1970. 15 No caso do Rio de Janeiro, também não se pode esquecer que essa situação de urbanização sem crescimento econômico resultou no modelo atual de ocupação das periferias e na favelização. O que se viu a partir de então foi não apenas o domínio territorial de partes da cidade pelas facções de traficantes armados mas, igualmente, a proliferação dos famigerados grupos de extermínio, que constituíam uma espantosa “solução” privada encontrada por comerciantes e políticos locais para suprir a ausência do aparato policial nas regiões carentes da cidade. Ao mesmo tempo, a corrupção policial se tornava decisiva no fortalecimento das redes do tráfico de drogas e armamentos pesados. Nas favelas, os métodos de tortura abolidos pelos rituais punitivos modernos, que incluem esquartejamentos e pessoas queimadas dentro de pneus, foram reproduzidos nos “tribunais” do tráfico, em longas expiações públicas que bem poderiam ilustrar a ostentação dos suplícios descrita por Foucault em seu livro sobre o nascimento da prisão. Esse quadro de barbárie que acompanha todo o período de crescimento da pobreza urbana alimentou o que foi oportunamente classificado como uma “guerra particular” entre traficantes e policiais, sem falar nos conflitos permanentes entre as facções do tráfico. O Rio de Janeiro viu o antigo status de “Cidade Maravilhosa” desaparecer em manchetes de jornais que descreviam a cidade como um cenário de guerra e decadência econômica. Assim, a força das armas impôs relações brutais que, de tão freqüentes, foram naturalizadas: incursões violentas nos morros, práticas sistemáticas de tortura nas delegacias e unidades prisionais e faccionalização de territórios periféricos.
Nessa atmosfera de decomposição social é que surgem as primeiras tentativas de reversão da crise, incluindo a presença recorrente das Forças Armadas nas ruas da cidade. Mas essa reversão, idealizada desde o início dos anos 1990 até culminar na realização do projeto da “Cidade Olímpica”, não ocorreu a partir de uma mudança que revertesse o quadro de pobreza e desigualdade. Ao contrário, ela deixou os mecanismos de exclusão social intactos. O novo urbanismo está atrelado a processos concentradores de riqueza. Ele reduz a gestão pública à criação de contextos favoráveis aos interesses privados e
reforça a segurança patrimonial e a vigilância privada contra as estratégias de sobrevivência dos pobres. Com a imagem de segurança produzida pelas UPPs é possível voltar a fazer da cidade um lugar atrativo para investimentos reunidos em poucas mãos, que são capazes de absorver os segmentos mais qualificados da mão-de-obra, deixando em segundo plano os serviços básicos e as condições materiais de reprodução da maior parte da população. Esse padrão de investimento sem planejamento, guiado unicamente pelos lucros da especulação sobre o preço dos terrenos, estimulou a política de remoção dos pobres, que retornou com força nos últimos anos. Em função do tipo de investimento recebido, a cidade do Rio tem permanecido alheia até mesmo à redução da pobreza que se verifica no cenário nacional com a ampliação do consumo na base da pirâmide social. Na última década, de fato, ocorreu não só um aumento (em termos absolutos e relativos) da favelização, o que indica uma ampliação da pobreza, mas a cidade vem se tornando cada vez mais cara e desigual. Não há, portanto, como falar em “novas fronteiras” para a acumulação. Antes, o capitalismo de crédito popular e endividamento deveria ser visto como sintoma dos limites do crescimento impostos por uma crise estrutural que tem se mostrado irreversível. Os cenários da “Cidade Olímpica”, da qual as UPPs são parte essencial, têm devolvido aos “cariocas” a auto-estima, enquanto as periferias se convertem em espaços de atuação dos poderes mafiosos. Aqui, a crise urbana torna-se central para compreender as formas de regulação social armada e a economia de pilhagem. A atuação dos grupos milicianos nas brechas de um poder estatal, cuja capacidade de intervenção global é solapada devido aos altos custos de manutenção do “aparato”, não é uma estratégia consciente de poder, mas um momento dessa crise.16 A crescente redução da lucratividade do tráfico, que expressa a mesma situação do ângulo de uma economia ilegal, ampliou substancialmente o quadro de crise ao levar as diferentes facções a práticas cada vez mais irracionais. Se em algum momento foi possível ver a “opção pelo tráfico” como fruto da racionalidade econômica, o morticínio verificado nos últimos anos ― especialmente entre os jovens das favelas e periferias ― torna ridículo esse tipo de cálculo supostamente racional, do mesmo modo que as novas drogas baratas introduzidas já no contexto de crise não são capazes de criar um “novo mercado” para o tráfico, podendo, apenas, ampliar o espetáculo “pós-urbano” de desagregação social.
A “Cidade Olímpica” torna-se cada vez mais dual: da mesma forma que a Reforma Passos acabou com a “promiscuidade” entre camadas sociais na antiga área central, dando origem a favelas e ocupações suburbanas irregulares, a reestruturação pela qual a cidade vem passando nas duas últimas décadas (e, com maior ênfase, desde o início das obras de preparação para os eventos esportivos internacionais) ampliou as segregações e as formas violentas de administração da pobreza. Essa estratégia urbana, comum em metrópoles de países periféricos, faz parte de uma “economia básica de distribuição dos espaços, que implica a construção de dois territórios dentro de uma mesma sociedade” (MENEGAT, Marildo. “A guerra civil no Brasil”. In: O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006, pp. 105-122.).17
A cidade que pretendia repetir o aparente sucesso de Barcelona – que, nesse meio tempo, se tornou mais do que duvidoso – conseguiu apenas reproduzir algumas das lições de Medellín, cidade que inspirou uma série de aspectos do nosso modelo de “pacificação”, desde a concepção geral das ocupações permanentes até alguns detalhes como os teleféricos, parques literários e acanhados projetos sociais idealizados para “disputar” os jovens com as redes do tráfico. Mas a maior “lição”, que, aparentemente, confirmava uma ideia repetida de forma dogmática pela maioria dos especialistas, é que a redução da pobreza não é uma condição para enfrentar o problema da criminalidade.
Em todo caso, o que já acostumamos a chamar de “enfrentamento da violência” não significa uma menor necessidade de regulação armada da sociedade e, muito menos, uma redução substancial dos crimes violentos. Trata-se apenas de criar um impacto positivo com o qual se espera garantir um “salto nos negócios”. Também aqui Medellín nos oferece um exemplo: a “pacificação”, que varreu os grupos insurgentes das favelas, conseguiu substituir os conflitos e massacres cometidos por paramilitares por assassinatos seletivos de lideranças comunitárias. Com a posterior desmobilização desses grupos, o centro da cidade finalmente se tornou um lugar mais seguro para os negócios, incluindo o boom imobiliário financiado com o dinheiro das drogas. Enquanto isso, “milícias civis” infiltradas por traficantes e ex-paramilitares se convertiam em grupos legalizados de vigilância privada. Não foram poucos os que viram a articulação entre negócios ilícitos, corrupção política e paz armada como um bom exemplo.
Será uma nova lição de Medellín?



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NOTAS

2. Desde há muito se sabe que “todos os especialistas são midiático-estatais, e só dessa forma são reconhecidos como especialistas” (DEBORD, 1988: 31).
4. Para exemplos de interpretação que partem dessas denúncias, ver Alves e Martins (ALVES, José Cláudio. “Uma guerra pela regeografização do Rio”; MARTINS, Leonardo. “UPP: Unidade de Polícia Pacificadora ou um projeto de poder?”).
5. Uma pesquisa da FVG realizada em 2009 avaliou a opinião de moradores nas duas primeiras UPPs: “No mínimo 95 de cada 100 entrevistados apoiaram a expansão dessa política para outras comunidades e 90% desejava que a iniciativa continuasse indefinidamente em sua região” (CANO, Ignácio (coord). „Os Donos do Morro‟: uma avaliação exploratória do impacto das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) no Rio de Janeiro”. Relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.: 6). Essa aprovação esmagadora deve ser relativizada de duas maneiras. Primeiro, porque ela se refere a duas UPPs que serviram de “modelo”: a do morro Dona Marta e a da Cidade de Deus. Em outros casos, o processo de instalação das UPPs apresenta outras características e enfrenta maiores dificuldades, além de contar com menor apoio local. Em segundo lugar, a aprovação alta não elimina o sentimento negativo em relação aos policiais, que é provocado por diferentes “abusos” cometidos nas favelas ocupadas. Além disso, já se constatou que a presença do policiamento permanente aumenta as denúncias de pequenos crimes nas áreas ocupadas, mas inibe as denúncias quando o alvo é a própria polícia – o que mascara as estatísticas de corrupção e práticas violentas cometidas pelos policiais lotados nas UPPs. Quanto ao temor de que a “pacificação” acabe após os grandes eventos que a cidade vai sediar, ele não se deve somente à perspectiva de interrupção dos já escassos programas sociais, mas também – e principalmente – por causa da incerteza quanto a uma possível volta dos traficantes armados.
7. Entrevista ao autor realizada em outubro de 2012. Rumba destaca ainda a continuidade entre as UPPs e o GPAE (Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais), criado em 1999 mas logo encerrado. Michel Misse também descreve a estratégia do GPAE como algo muito parecido com a atual, na qual “territórios seriam primeiramente „conquistados‟ dos traficantes e depois „controlados‟ por forças especiais localizadas fisicamente na área” (MISSE, 2012).
9. “Eu não entendo por que colocam recrutas para montar UPPs. Eles dizem que, na média, são uns 200 recrutas com um oficial. Nas 14 UPPs, dá algo em torno de 2,8 mil recrutas, 3 mil recrutas. Então, 3 mil recrutas estão resolvendo a situação da criminalidade no Rio? Tem um contingente de 40 mil policiais, mais 10 mil na Polícia Civil, que não resolveram o problema da criminalidade. É isso que estão dizendo? Se é isso, estão confirmando que o problema é corrupção” (“O Estado criou estes caras”).
10. Marcos Barreira, “Cidade Olímpica: sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência na cidade do Rio de Janeiro”, em Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. Org. Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira. São Paulo: Boitempo, 2013
11. O ex-prefeito César Maia, que protestou contra a “privatização” das ruas pelo comércio ambulante, foi um dos principais ideólogos dessa virada que culminou no projeto da “Cidade Olímpica”. Não por acaso, os temas da ordem urbana e da militarização da segurança também fizeram parte da sua “agenda” desde o inicio dos anos 1990. Mas, no que diz respeito às políticas urbanas, essa inflexão deve ser relativizada. Fruto da conjuntura de crise estrutural, o governo de Leonel Brizola, no início da década de 1980, já teve como característica a impossibilidade de realizar investimentos públicos em grande escala para a reforma urbana. Diante do problema da habitação popular, o governo foi forçado a “conduzi-lo oficialmente nos moldes do que já vinha sendo feito espontaneamente” pela população pobre da cidade. A atuação do governo e das administrações municipais, consideradas as duas décadas em questão, consistiu em aceitar, legalizar e promover algumas melhorias nas favelas – tudo isso em meio a um “giro culturalista” que substituiu as idéias de planejamento global da cidade pela revalorização do “espaço comunitário” e das “soluções criativas” dos moradores das favelas. Sobre isso ver o texto de Maurilio Lima Botelho, “Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos pobres”, em Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. Org. Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira. São Paulo: Boitempo, 2013.
12. Luiz A. M. da Silva, “Pacificação ou controle autoritário”, entrevista.
13. “Já estão sendo aprovadas várias excepcionalidades para a Copa do Mundo”, diz Raquel Rolnik, em entrevista concedida à revista Caros Amigos de janeiro de 2011.
14. Caso semelhante ao do Dossiê aqui analisado é o do deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL, que, durante a campanha para a prefeitura, desenvolveu um discurso bastante articulado sobre o “modelo de cidade” baseado na lógica do mercado, mas evitou confrontar diretamente o programa das UPPs. Foi mérito inegável de sua campanha (e de sua ação parlamentar) deslocar o foco do debate para o que poderíamos chamar de lado obscuro da “pacificação”, ou seja, o crescimento alarmante dos grupos milicianos nas periferias da cidade. A dificuldade de interpretar as UPPs como parte do “modelo de cidade” denunciado pela campanha de Freixo não deve ser vista apenas como uma incapacidade de compreensão da lógica da “pacificação”. Mais do que isso, ela expressa a contradição que se verifica no interior das camadas populares, que se consideram ao mesmo tempo “libertadas” e “oprimidas” pelo policiamento permanente. Em todo caso, Freixo não deixou de observar, em várias intervenções, as diferenças entre o programa das UPPs e os princípios do “policiamento comunitário”.
15. O que ocorreu num quadro mais abrangente de endividamento estatal e de esgotamento dos modelos periféricos de desenvolvimento: “Planejamento urbano, política de transporte de massa, programa habitacional, zoneamento espacial, todos os principais pontos de uma política urbana ampla desapareceram com a crise geral do Estado e da economia desenvolvimentista. Foi nesse contexto que o chamado “problema favela” explodiu, já que essas áreas de precariedade urbana e habitacional continuaram a crescer aceleradamente, apesar de o país estar passando por um freio demográfico, isto é, próximo da última fase da transição populacional”, Maurilio Lima Botelho, “Crise urbana no Rio de Janeiro”, cit.
16. As abordagens que enxergam o desenvolvimento das milícias ou a criminalização dos pobres como o objetivo das intervenções na segurança pública acabam promovendo apenas uma inversão do ponto de vista segundo o qual tais fenômenos seriam efeitos secundários das estratégias de segurança do Estado. Com a referida inversão corre-se o risco de perder a dimensão estrutural do problema, que se vê reduzida à intencionalidade dos “atores sociais”. Dito de outro modo: é um tanto absurdo afirmar que as estruturas mafiosas e a vigilância nas favelas são objetivos inconfessos que as políticas de Estado devem “mascarar”. Mesmo quando os agentes do Estado fabricam um inimigo como o “crime organizado” – ou eles próprios se organizam de forma ilegal –, o fazem através de relações de poder e interesses imediatos e não “a serviço” de um projeto político. A ampliação dos mecanismos de controle sobre a população pobre não é, portanto, nem um efeito secundário nem uma meta a ser alcançada e sim um segundo aspecto, igualmente importante, das novas formas de administração da pobreza que se impõe aos governos quando os mecanismos de integração social perdem força. As milícias, por sua vez, talvez sejam a expressão mais clara dessa integração “falhada”.
17. Mas não se pode dizer que tal processo siga fielmente a uma “estratégia de classe” ou que seja determinado pela “espacialização da dinâmica de classes” como sustenta o autor. A segregação espacial corresponde, antes, a uma diferenciação entre os segmentos da população que se encontram em uma situação de maior “integração” à lógica econômica e o segmento de “não-rentáveis”, que também podem ser definidos como uma massa de “desclassificados”. Em outras palavras: a espacialização dos conflitos sociais não é redutível a um conflito de classes. Além disso, também é claro que essa diferenciação entre as elites econômicas e as camadas médias, de um lado, e a população pobre, de outro, não exclui o fato de que o grande volume de investimentos e obras públicas mobiliza um contingente assalariado de baixa qualificação e mal remunerado, mas que se torna parcialmente integrado, o que ajuda a produzir uma diferenciação no interior das camadas populares.

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Marcos Barreira é psicogeógrafo, especializado em teoria situacionista e autor do artigo “Cidade Olímpica: sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência na cidade do Rio de Janeiro”