Um panorama do debate sobre o futuro da internet — que pode empoderar as sociedades ou controlá-las. E sugestões concretas sobre como interferir neste destino.
Por Ana Cristina D’Angelo, em Página 22 | Ilustrações: Eloar Gazelli
O blecaute das grandes corporações funcionou por enquanto. Os
projetos Sopa e Pipa [1] foram retirados da pauta do Congresso
norte-americano. Mas ainda paira a ameaça de regulação da internet com a
justificativa do combate à pirataria e a proporção que o debate
alcançou resulta em oposição, mas também em pressão para que outros
países avaliem uma conduta parecida.
O jogo de forças põe na corda bamba a previsão do filósofo da
cibercultura Pierre Lévy de que, condicionado pela mídia digital, o
espaço público do século XXI será caracterizado por maior liberdade de
expressão, oportunidade de escolha das fontes de informação, além da
livre associação em comunidades, grafos de relações pessoais ou
conversas criativas que florescem na rede (acesse aqui). Mas a aflição pode arrefecer – não sumir –, se considera- da a essência hacker: caminhar pelas brechas.
“Invadir um sistema é encontrar uma brecha; o sistema fecha a brecha e
o hacker encontra outra, e assim por diante, estamos sempre
reocupando”, define Pedro Markun, um dos fundadores da Casa da Cultura
Digital em São Paulo, o templo aberto dos coletivos criativos em
constante experiência para novos usos e compartilhamento do conhecimento
– é outra leitura pertinente para a palavra “hacker”.
Gilberto Gil também endossa a urgência de movimento e atenção quando o
assunto é a ameaça à liberdade digital: “É preciso estar atento e
forte, não temos tempo de temer a morte”, espalhou o músico por aí.
Pedro Markun faz parte da rede Transparência Hacker, uma lista de
discussão e ações formada por 860 pessoas para uma nova forma de fazer
política. A Transparência opera na direção da alfabetização para a
inteligência coletiva. Se não basta leitura de jornais e livros para um
cidadão consciente, quem vai estimular a capacidade de estabelecer
prioridades, selecionar fontes, filtrar informação, categorizar e
classificar dados, característica dos participantes da nova esfera
pública, como também nos lembra Pierre Lévy?
E, antes da interpretação apressada de que se trata do gueto jovem da
classe média, ou coisa de nerd, Cátia Kitahara, fundadora do braço
brasileiro do WordPress, o programa livre mais usado para criar blogs e
sites, lembra que a periferia é um oásis do hackerismo, desde os gatos
de energia elétrica ou a proliferação insuspeita de lan houses, ou celulares multimídia que permitem que a informação seja produzida e trafegue sem amarras.
“A cultura hacker não é um fenômeno de classe. Está próxima do dia a
dia dos excluídos, da periferia, e é uma arma contra sistemas fechados
que privilegiam alguns. Acontece que a palavra ‘hacker’ ainda está
associada à tecnologia da informática”, diz Cátia. Ela também integra o
Hacklab, um hackerspace paulistano no qual se preza a autogestão, o compartilhamento e a experimentação.
Nessa direção do que tem mudado na vida pública, pode-se arriscar que
tal fuçador profissional é fruto do desencanto com sistemas de governo,
crenças, partidos e regimes. Ou, como deduz o filósofo Vladimir Safatle
no artigo “A década do desencanto”, publicado na Folha de S.Paulo,
os novos personagens que entraram em cena na política mundial e
transformaram 2011 no ano das revoltas sabem que todo verdadeiro
movimento sempre começa com a mesma frase: “Não acreditamos mais”.
Desencanto, nesse caso, perde seu caráter pejorativo para impulsionar
ações concretas, menos arrogantes e com o espírito da partilha.
E foi com a crença no impossível que o Transparência Hacker conseguiu
materializar seu projeto mais ambicioso e ironicamente simples: o
Ônibus Hacker. Um antigo ônibus de banda, comprado, transformado e
adaptado para percorrer pequenas cidades brasileiras, como uma grande
celebração, aportando nos coretos mais distantes, com toda sua potência
colorido-simbólica, e dotado das ferramentas humanas e tecnológicas para
interagir com o acaso.
Na bagagem, fazer crer para qualquer cidadão que seu poder não é uma
fábula, mas está, por exemplo, em propor projetos de lei diretamente no
âmbito municipal – com 5% de assinaturas a proposta vai à votação
direta, explica Pedro Markun –, cobrar transparência nos gastos públicos
ou montar uma rádio para sua comunidade.
A tecnologia, nesse caso, é informação decodificada. Não a que chega
aos borbotões e acaba gerando efeito contrário, porque o sujeito não
consegue distinguir o que lhe serve. Mas a informação que pressupõe o
ouvir primeiro.
O Ônibus Hacker foi financiado pelo Catarse (veja texto no fim da página),
plataforma colaborativa que gerou R$ 56 mil vindos de 464 doadores –
outra artimanha da cultura digital que tem dado vazão a projetos
democraticamente, sem intermediários, por aclamação de muitos. A
necessidade de sair do privilegiado circuito de São Paulo e alcançar
outras plagas norteia a estrada do ônibus para este ano, conta Markun.
Existem pedidos para um rolê do ônibus em João Pessoa e Curitiba,
festivais, eventos e grupos. “Teve gente que abriu o jogo e disse,
claramente: “Veja, não sabemos com proceder nas próximas eleições, o que
deve orientar nossos votos, queríamos vocês aqui”, revela Markun.
EMBRIÃO E INOVAÇÃO
No porão da mesma Casa da Cultura Digital, outra turma maquina
invenções em um espaço aberto, nos quais quem tiver interesse em testar
tecnologias, criações inovadoras de construção de hardwares e softwares
pode participar. O Garoa Hackerspace já construiu coisas tão distintas
quanto uma impressora 3D ou um aparelho para você desenhar e fazer música ao mesmo tempo.
Trata-se de um embrião do que poderiam ser centenas de núcleos de
pesquisa e inovação no País, na visão de Pedro Abramovay, curador do
Festival Cultura Digital – o evento que, no fim do ano passado, pôs em
evidência e comemorou ações tão distintas e complementares como o Ônibus
Hacker, as invenções do Garoa, as ações do movimento Occupy, e reuniu
mais de 6 mil pessoas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em
debates, mostras, exibições, experimentos e oficinas.
A alguns meses das eleições municipais, Abramovay acredita que as
plataformas dos candidatos podem contemplar projetos como a criação dos hackerspaces,
na perspectiva de serem mecanismos eficientes e baratos de incentivo à
inovação e pesquisa. “São Paulo, por exemplo, poderia construir espaços,
com um mínimo de equipamento, para serem geridos coletivamente, nas
mais distintas regiões da cidade. Poderia virar a capital mundial dos hackerspaces. Haddad, Chalita, Bruno Covas, prestem atenção nisso!”, convoca o curador, em artigo publicado no seu blog.
As cidades e os estados, sobremaneira, têm um papel mais imediato e
balizador na perspectiva da nova política, emergente da cultura digital.
Merece ser falado aos quatro cantos o que fez Porto Alegre ao criar o
espaço de colaboração cidadã www.portoalegre.cc.
Cada um dos 82 dos bairros estão representados na plataforma, uma
cópia fiel e digital de como a cidade funciona. Ali o morador pode
navegar pelo mapa e publicar conteúdos diretamente em redes sociais como
Twitter, Facebook, YouTube e Vimeo, falando de situações que lhe tocam
na cidade. Pode convocar seus pares para apoiar seus projetos, e falar
direto com o poder público, entre outras ações.
Inspirado no conceito de wikicidades, é exemplo de inovação
bem-sucedida em que o cidadão interfere, acompanha, cobra. E também o
Cidade Democrática, a plataforma que propõe fazer o link entre ONGs,
governos e cidadãos em torno de propostas concretas, caminha com os
novos ventos. As questões a serem resolvidas pelos governos, na proposta
do Cidade Democrática, provêm das pessoas.
O que falta, para espanto, é que as pessoas realmente digam mais do
que precisam, revela Rodrigo De Luna, que integra o grupo. “Para isso,
contamos com os jovens da geração digital e com a comunidade hacker para
abrir caminho”, diz. “O Cidade Democrática está fundado na lógica
hacker, que pressupõe que todos podem acessar e usar o que está
disponível, porque o valor está no uso e não na propriedade das
informações”, acrescenta.
Outro “wiki” mais conhecido, o Wikileaks passa por maus bocados com o
bloqueio de suas contas pelas principais instituições financeiras. Mas,
fiel ao princípio hacker, o projeto tem encontrado brechas para receber
o dinheiro dos doadores por meio de parceiros/instituições pulverizados
pelo mundo. Em São Paulo, um local de doação é a Casa da Cultura
Digital, que recebe cheques de doadores para o Wikileaks.
O VELHO E O NOVO
Mas até onde este “novo mundo” se encontra com o velho mundo, dos
partidos, vereadores, juízes, foros institucionalizados que ditam as
regras e determinam o futuro da sociedade? Pedro Markun acha que o fim
dos partidos está próximo. “As instituições estão sendo desmanteladas
por descontentamento, novas coisas surgirão, talvez um ‘occupy eleição’, por exemplo”, arrisca. Já Leonardo Brant, produtor e jornalista que criou um reality show virtual
de economia criativa [2], pensa que a mudança demanda tempo. “ É
preciso haver diálogo entre o novo e o velho. Para haver eficácia
política é preciso chegar às instâncias de representação, aos partidos,
ao sistema eleitoral. O ativismo precisa entrar no mundo real, nas
relações interpessoais. Precisa sair do Second Life”, opina.
Os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula criaram seus
institutos independentes como forma de pensar a vida pública na
perspectiva da política 2.0 [3], tal como a senadora e ex-candidata à
Presidência Marina Silva está à frente do Instituto Democracia e
Sustentabilidade (IDS). São todos, como o ex-ministro Gilberto Gil,
entusiastas da cultura digital, o que não deixa de ser, cada um a seu
modo, um hackerismo sobre ideias frescas e aplicáveis em gestação nesse novo cenário.
Uma avalanche sedutora de experimentação, de risco e de ativismo pode
considerar essencial para um mundo melhor, por exemplo, a criação de
uma plataforma digital em que os sujeitos estejam livres para depositar
suas paixões e encontrar aliados para elas. Explicou. Daniel Waismann,
programador e empreendedor digital e também um apaixonado por tango,
levantou-se e disse acreditar que o mundo será muito melhor caso as
pessoas tenham onde exercitar suas paixões. “Eu proponho uma plataforma
digital na qual as pessoas possam falar sobre suas paixões, encontrar
pessoas com os mesmos desejos, alugar um espaço e lá exercitar o que
gostam.” De pronto, o empresário Oswaldo Oliveira, da Empresa Teia,
levantou-se e disse: “Pode desenvolver a plataforma, eu serei seu sócio
financiador”. A cena ocorreu em São Paulo durante o Encontro sobre
Tecnologia e Ativismo, organizado pela Avina, fundação criada por um
suíço para o desenvolvimento sustentável na América Latina.
O LADO SOMBIO DA FORÇA
Mas o mundo digital também tem suas sombras e não seria exagero dizer
que o poder massivo e aparentemente natural das mídias sociais de
grandes corporações digitais, como Google, Facebook e afins, vem na
contramão do que propõe a cultura hacker, adepta de software livre e
redes sociais abertas.
Evgeny Morozov, pesquisador-visitante da Universidade de Stanford e autor de The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom (algo
como “A ilusão da rede: o lado sombrio da liberdade na internet”),
publicou um artigo assustador sobre o que se trama neste ambiente e
sobre o que não fomos consultados.
“Estamos entregando nossas vidas, fotos de família, memória, histórias e relações sociais a serviços cômodos (ao usuário). Isso é muito ingênuo”, afirma Leo Germani, do HackLab.
Ainda mais cômodos porque, pelo conceito de “compartilhamento sem
fricção”, o que seria a próxima tacada do Facebook, o site não mais
“perguntaria” ao usuário se ele quer compartilhar um link, uma música,
um texto, mas faria isso automaticamente entre nossos pares, nos
poupando dos botões de “curtir” ou “descurtir”. Como um big brother, daria conta de tudo o que fazemos on-line e, não bastasse, distribuiria essa informação a quem bem entendesse.

Dessa maneira, delata o artigo de Morozov, estaríamos cada vez mais numa bolha, fazendo circular interesses comuns, sem lugar para o acaso, a surpresa ou o que estivesse muito fora desse gosto médio.

Dessa maneira, delata o artigo de Morozov, estaríamos cada vez mais numa bolha, fazendo circular interesses comuns, sem lugar para o acaso, a surpresa ou o que estivesse muito fora desse gosto médio.
“É hora de percebermos que o Facebook está eliminando a alegria, o
caos e a natureza idiossincrática da internet, e substituindo tudo isso
por sorrisos artificiais e eficiência tediosa (e, portanto, ‘sem fricção’)”, diz o pesquisador, que vê nisso um desastre ao pensamento crítico.
Essa tendência aparece ainda em dois bons vídeos. O primeiro, do Tedx Concordia,
trata da perda de “serendipidade”, um neologismo para denotar
descobertas ao acaso. Lenny Rachitsky mostra, então, como a vida seria
muito pior sem essa abertura para o inesperado. No segundo, Eli Pariser discorre
sobre as “bolhas de filtros” a que estamos submetidos quando navegamos
pela internet, dirigindo nosso olhar e evitando que entremos em contato
com o contraditório e o inesperado.
Mas, com o alcance indubitável da mídia social, ficar de fora é mesmo
uma boa? Pedro Markun acha que se trata de uma relação de amor e ódio.
As mídias sociais são os principais canais para divulgação das ações
culturais, do ativismo e de propostas no âmbito da cultura digital.
Por outro lado, existe o pseudoativista, detonador e apoiador de
qualquer causa na rede, mas que mal se move da cadeira para uma ação na
vida real. “Um exemplo claro disso pra mim foi um evento no Anhangabaú.
Vi várias pessoas compartilhando informações do evento, mas quase
ninguém ia por causa da chuva. Elas achavam que estavam fazendo alguma
coisa pelo simples fato de compartilharem a notícia, mas praticamente
não fizeram nada”, conta Cátia Kitahara, do Hacklab. (mais sobre o assunto em entrevista com Márcia Tiburi)
A revolução digital não tem volta, mas há distintos pontos de vista
sobre o controle da internet pelas grandes corporações. Leo Brant, do
Empreendedores Criativos, acha que os velhos vícios serão substituídos
por novos vícios e que o poder concentrador dos grandes conglomerados de
mídia tende a aumentar com as novas tecnologias. “Não acredito numa
subversão total do padrão de consumo de informação”, afirma.
Já Rodrigo de Luna, do Cidade Democrática, pensa que as formas de
controle terão de se aprimorar muito para dar conta do salto evolutivo
da web. “Essa tensão sempre vai existir, mas hoje é muito mais difícil
controlar.” E assim voltamos às brechas, do início desta reportagem,
aquelas às quais os peixes urbanos e coloridos de Eloar Guazelli, em
meio ao concreto vertical, fazem uma bela analogia.
Crowdfunding– semente de uma nova lógica de mercado?
Uma das recentes ideias mais bacanas e bem-sucedidas foi a proliferação e afirmação dos sites de financiamento colaborativo, ou crowdfunding. Sem intermediários ou apoio de órgãos públicos ou institucionais, o crowdfunding consegue
“jogar pra galera” uma seleção de propostas interessantes e colocar
sonhos de pé, viabilizando-os financeiramente. Cabe ao internauta a
decisão de contribuir ou não para bancar o que é proposto.
Essas plataformas encaixam-se no que Marina Silva chama de
“democracia prospectiva”, ou seja, buscar a democracia pelas frestas,
por onde é possível, em cima da criatividade que a multitude oferece.
No Brasil, o Catarse, um dos mais conhecidos, foi a ferramenta para viabilizar um documentário sobre a construção da Usina de Belo Monte, o maior projeto que passou pela plataforma, apoiado por 3.429 pessoas, atingindo o valor de R$ 140 mil.
Rodrigo Maia, um dos sócios do Catarse, acha que o crowdfunding é
apenas a ponta do iceberg de toda uma nova lógica de mercado que surge.
“São sintomas de algo que está por vir, advindo da necessidade que as
pessoas têm de se relacionar de forma mais direta e personalizada, sem
intermediários.”
Sobre a possibilidade de uma bolha à vista, com a multiplicação
desses sites e um possível espectador bombardeado e confuso com tantas
opções, Rodrigo diz que, “no futuro, veremos o sistema de crowdfunding flexibilizado, com uma série de derivações, e é isso que impedirá o esgotamento do modelo”.
Do total de 1.013.725 pessoas que já apoiaram algum projeto no Kickstarter, pioneira e maior plataforma de crowdfunding existente, 84% só ajudaram um único projeto. Do restante, 16% são apoiadores recorrentes, e equivalem a 166.823 pessoas.
Os dados mostram que a grande maioria das pessoas só vai apoiar
projetos de uma pessoa conhecida, na qual elas têm confiança e acreditam
no trabalho, o que é inerente ao sistema do crowdfunding,
segundo Maia. Mas diz também que estes 16% que apoiam mais de um
projeto, de uma forma ou de outra, acreditam no sistema, e o enxergam
como uma alternativa importante. guardadas as proporções, as
estatísticas se repetem no Catarse.
A avaliação é que o potencial de crescimento do crowdfunding é
enorme para os próximos anos. Um longo caminho para ferramentas que
começaram quase ingenuamente, juntando gente que desejava ir a um show,
por exemplo, como é o caso do Queremos ou o da simpática Vaquinha que reproduziu on-line o método mais singelo e conhecido de “passar o chapéu”.
[1] Stop Online Piracy Act (Sopa), ou Lei Contra a Pirataria Online, e Protect intellectual Property Act (Pipa), ou Lei de Proteção à Propriedade intelectual.
[2] O projeto Empreendedores Criativos selecionou sete empreendimentos criativos. O objetivo é analisar e desenvolver de forma colaborativa cada uma dessas ideias, como um reality show que faz com que as dúvidas e informações no decorrer de seu processo alcancem todos os interessados.
[3] A expressão é usada para caracterizar o envolvimento colaborativo dos cidadãos nas plataformas dos governos, aproveitando a inteligência coletiva e o potencial que a internet oferece para a troca de informações e ideias.
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