Sobre democracia: que democracia queremos?

Paulo Cannabrava Filho*
Paulo Cannabrava Filho Perfil Revista Diálogos do Sul








Nos tempos que correm há muita gente questionando o que temos como democracia, a chamada de democracia representativa.
À direita e à esquerda parece haver consenso de que o presidencialismo de coalizão, não funciona, ou não está funcionando devido ao excessivo fisiologismo dos integrantes desse Congresso. Mas também não funcionou no passado. A verdade é que evoluiu para um presidencialismo de colisão.
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O parlamentarismo foi rechaçado pelo povo em plebiscito em 1962 e de novo pelos constituintes em 1988. Vão contra a maré os que pregam retorno a um parlamentarismo que tampouco funcionou e não vai funcionar porque tanto um regime como o outro têm como fundamento uma democracia representativa que não representa nada mais que interesses de grupos que se opõem a qualquer tipo de reforma.

Diante do exposto, a primeira pergunta que uma reflexão sobre o tema suscita é: quem representa quem na democracia formal? ou, representativa de quem, cara pálida?
Mesmo com a presença de um indígena (ocacique Juruna, na Câmara) e de um negro (Abdias do Nascimento também na Câmara e depois no Senado) o que ficou provado é que o Congresso não é representativo das maiorias, mas direcionado a preservar o status quo,ou seja, a hegemonia de uma elite minoritária e concentradora de poder..
Darcy Ribeiro não escondeu sua frustração. Foi ele quem inventou a candidatura e eleição de Juruna e trouxe o Abdias consigo como suplente quando foi eleito senador. Talvez ele tenha feito isso para testar sua descrença no sistema. Darcy era um tipo incrível, um raro intelectual com grande capacidade executiva. Ele convenceu o Brizola a fazer os Cieps e foi o “secretário de obras” que acompanhou a compra e a construção, tijolo por tijolo. Destruíram o Cieps como conceito. Darci, como senador deixou sua marca, a revista “Carta. Falas, Reflexões, Memórias”, de indiscutível valor mas difícil de ser consultada. Escreveu muito, sua obra prima, o Povo Brasileiro, não é leitura obrigatória nas escolas nem nas faculdades, mas no mundo inteiro o respeitam como um expoente da moderna antropologia. Não temos mais burguesia nacional estricto sensu, temos gerentes a serviço das transnacionais, asseverou Darcy.
Mexendo nos meus alfarrábios, encontrei um mímeo de Paulo Leite Ribeiro, texto de 1963,  em que com clareza meridiana e se reportando a Bertrand Russell, ele diz que “está em tempo de se compreender é que ainda está longe de haver democracia. Vivemos apenas um sistema tendente à democracia, de primária representação popular, que acoberta, em suas aparências, de bela roupagem jurídica, bela e fundamental, mas não suficiente, um complexo de ditaduras mais ou menos draconianas, dos grupos de pressão, “panelas”, famílias, chefes, etc., as quais estruturam a trama de poderes, ostensivos ou velados, que com o domínio de seus respectivos clãs, comandam o ‘gigante” macrossocial, (um fenômeno estatístico), cujo comportamento é a média ponderada dos comportamentos individuais. E o pior é que a insegurança dos desajustamentos atuais revive a filosofia hedionda do maquiavelismo, como recurso imediatista de sobre nadar ao jugo do poder dominante. “A técnica de sorrir pela frente e apunhalar pelas costas, a intolerância e a frieza cruel são as notas dominantes em todos os escalões sociais e profissionais, como manifestações da filosofia materialista predominante”. O texto, um tanto empolado, é de atualidade indiscutível.
Nas comunidades andinas, enquanto existiram depois da independência até sua destruição a partir da globalização, vigorava o Conselho dos Anciãos além da Assembleia Comunal.
Evo Morales foi o único que, entendendo que a democracia formal historicamente tem sido instrumento de exclusão social, tratou de organizar os excluídos para o exercício do poder. Foram mais de 500 anos de marginalização dos povos originários. Haja resistência. Esse povo, apesar de tanta violência e alienação conseguiu manter seus idiomas e tradições. A democracia do Estado Plurinacional da Bolívia está funcionando.
Bolívia e em alguma medida também o Equador, estão demonstrando que o caminho para os excluídos é a organização e a educação. Organizar e educar com vistas a conduzir seu próprio destino requer valorizar seus valores autênticos. No processo, nas comunidades, nos bairros e pequenas cidades  o povo organizado forma seus próprios lideres que vão preparados disputar espaço nos órgão de poder da minoria, para questionar com voz ativa e tendo propostas alternativas ao modelo de perpetuação da dependência.
No Panamá, na Revolução liderada por Omar Torrijos, o poder legislativo era a Assembleia Nacional de Corregimentos (municípios). Cada município organizava o seu poder através de eleição direta, esse poder local elegia os representantes para a Assembleia Nacional. Obviamente isso levou a uma presença majoritária do povo e minoritária das velhas e entreguistas oligarquias. Era uma maravilha, o Executivo tinha que se subordinar a um poder legislativo de extração popular. Conclusão: depois da invasão das tropas dos Estados Unidos, tudo voltou como dantes. Restabeleceram a democracia representativa formal tão ao gosto do Império e, das elites servis.
No Brasil o processo de dominação colonial foi muito mais prolongado e muito mais poderoso, no sentido de construir um pensamento hegemônico. Governadores Gerais, Reino, Império, República dos Oligarcas além de longo foi draconiano. Era proibido pensar, não havia escolas para o povo, só para as elites e seus serviçais. Depois, mesmo com a criação das universidades, formam-se quadros para preservação do status quo. Além do mais se demonizou e destruiu a todos quanto lutaram por mudanças.
Nos vizinhos, notadamente nos países de civilizações milenares, a resistência dos indígenas e dos negros resultou na construção e preservação de espaços culturais. A literatura que rompe com o colonialismo e tenta ser local, por seu sucesso se torna universal. Isso é muito importante para fundar o pensamento libertário. É uma base para valorizar a criação dos excluídos, formar uma corrente de pensamento nacional.
É impressionante a atualidade de José Martí ao apontar o caminho: “A história da América, dos incas para cá, há que ensinar ao detalhe, mesmo que não se ensine dos Arcontes da Grécia. Nossa Grécia é preferível à Grécia que não é nossa. Para nós é mais necessária”. Pois é. A universidade deveria estar pensando crítica e criativamente o país. Não esta.
Estamos em uma conjuntura a exigir reformas. Que tipo de reformas? Agrária, Bancária, Tributária, Urbana, entre tantas. Já vivemos isso intensamente nas décadas de 1950-1960, principalmente durante o governo de João Goulart (1961-1964).
Percebe-se a convergência dessas duas conjunturas ainda que distantes mais de 50 anos. É o tamanho de nosso retrocesso.
Temos como lição da história que as reformas podem reforçar ou manter o status quo, ou podem avançar em mudanças apontadas à uma mudança maior, que dê melhores condições para o país se desenvolver e o povo construir seu futuro.
Venezuela (de Chávez), Equador e Bolívia conduzem processos com profundo conteúdo antioligárquico e anti-imperialista, ao mesmo tempo em que constrói um pensamento próprio, fundado na recuperação da história das lutas gloriosas desses povos, das tradições indígenas, do pensamento dos libertadores. São Processos legítimos.
Argentina e Brasil, principalmente Brasil, pura enganação. Na Argentina menos porque é muito forte a tradição de organização do povo, dos trabalhadores e até dos sem trabalho, além da riqueza intelectual. O país passará por mal bocados.
No Brasil, até pequenos avanços na construção de espaços democráticos como Orçamento Participativo, Conferências da Cidade, Conselhos (comunitários) de Educação, Saúde, Segurança, foram abandonados. As medidas de inclusão social foram cosméticas, não resiste às intempéries. O país se especializou em destruir sua própria história, em demonizar todo pensamento oposto ao conservadorismo e ao servilismo à metrópole.
Impôs-se um Congresso de maioria de latifundiários, empresários ou representantes de conglomerados empresariais, fundamentalistas neopentecostais. Sem duvida o pior Congresso de nossa história. Os partidos e os mandatos transformados em trampolim de ascensão social. O povo, um obstáculo a ser domado. A mídia faz o trabalho coadjuvante de manter alienados não o povo, mas aqueles que a lêem, classe média desamparada.
É certo que há que reconhecer importantes avanços inclusivos: maior acesso ao ensino técnico e universitário, bolsa família com erradicação da fome… A inclusão na escola, contudo, foi acompanhada da deterioração do ensino e da transformação das escolas em mercadorias. Melhor dizendo, com a compra das escolas pelo capital financeiro aluno se transformou em commodities, deve dar lucro.
A euforia do consumo sustentado pelo boom e altos preços das commodities de um lado e, de outro, a ausência de investimento em infraestrutura sem deter o processo de desindustrialização. Essa é a realidade resultante da falta de planejamento e de visão estratégica. Mas, não é esse o foco desta reflexão. O que é importante ressaltar é a falência do sistema representativo. O fracasso econômico apesar do desgaste do neoliberalismo no âmbito mundial. Sem mudar esse sistema representativo nada mudará.
Algum avanço houve no âmbito das relações internacionais. O Sistema Interamericano (OEA, JID, BID) consagrado como instrumento da hegemonia dos Estados Unidos perdeu significado. Agora e parece que definitivamente, impõe-se a Unasul, os blocos regionais e a articulação Sul-Sul, materializada nos BRICS.
O Império contra-ataca. Já dividiu os latino-americanos com o Acordo do Pacífico (Chile, Colômbia) a Alca (México) e tenta seduzir com um novo Pacto Atlântico para quebrar a unidade dos Brics.
Essa contra ofensiva reforça a importância da integração de Nossa América sonhada por Bolívar. Essa integração só será completa quando em cada país vigorar a nova democracia que merecemos, livre da ditadura do capital financeiro e do pensamento único.
A questão fundamental que se coloca, é a de repensar o país, a começar pela construção da democracia. Que democracia queremos?
  • Jornalista editor de Diálogos do Sul – São Paulo, 6 de fevereiro de 2016