Vivemos dias difíceis para o senso de humanidade, diriam muitos, pois
exemplos de selvageria e de insensibilidade de homens contra homens se
alastram como centelha em folhas secas. O novo milênio, assim, parece
assistir a um revival do que poder-se-ia chamar “desumanismo”, ou perda da capacidade de se solidarizar com a dor alheia.
Ora, não vimos impérios inconquistáveis despejarem toda a sua fúria
sobre mulheres, crianças e velhos em pleno alvorecer do século XXI
enquanto entoavam discursos sobre “democracia”, “justiça” e “coragem”? E
não fizeram isso com orgulho, com o peito estufado e sob o aplauso de
multidões catárticas?
Por que nos espantamos, então, quando o Estado brasileiro pisoteia
outros desvalidos de composição análoga à dos povos orientais enquanto é
ovacionado pelas mesmas multidões tomadas por perversão análoga à
necrofilia? Se o homem é capaz de fazer o que os Estados Unidos fizeram
no Oriente Médio, por que não faria o que estão fazendo com os
flagelados do Pinheirinho e congêneres?
A desumanidade parece poderosa, vigorosa e vencedora, pois não?
Olhando do ponto de vista histórico, porém, a resposta é negativa. A
impiedade humana não diminuiu através dos séculos, mas a cada dia é mais
repudiada, o que torna o mundo contemporâneo muito menos desumano do
que era há um século, por exemplo.
Tortura ou castigos físicos já foram políticas de Estado. Hoje,
apesar de existirem, são ilegais. Os direitos à moradia digna, à
instrução, à liberdade de expressão, entre outros, podem não ser
realidade, mas ao menos existem como dogmas, quando, em outros tempos,
jamais se cogitaria defendê-los publicamente.
Em outros tempos, o Brasil chacinaria a população do Pinheirinho
assim como os Estados Unidos chacinaram a população do Iraque e ninguém
ligaria muito. Hoje, atender completamente aos instintos bestiais dos
desumanos seria um escândalo sem precedentes e teria conseqüências, ao
menos em termos de ampla reprovação pública.
A má notícia, entretanto, é a de que o senso de humanidade da nossa
espécie evolui tão lentamente que provavelmente essas pessoas que
degustam o sofrimento dos mais indefesos entre os indefesos terminarão
as suas vidas inúteis sem ao menos o opróbrio da sociedade.
Mas há uma boa notícia: ao lutar contra a desumanidade, planta-se um
futuro que muito provavelmente não veremos, mas que certamente terá
tornado motivo de vergonha alguém apoiar um massacre social ou literal
enquanto de seus lábios brotam conceitos como “democracia”, “justiça”,
“estado de direito” ou “coragem”.
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