Singela autópsia do judiciário atual
"Ora o que chamamos de crise do Judiciário é exatamente sua lerdeza nos julgamentos, sua leniência com os poderosos e o rigor com o qual deposita nos xadrezes das delegacias e nas penitenciárias, e lá os mantém, os pobres e os negros".
Acossado
pela sociedade, o STF (Superior Tribunal Federal) começa a restituir os
poderes do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que duas liminares
intentavam cassar – sendo que uma delas foi concedida por juiz que não a
deveria haver julgado, porque nela estava interessado.
Por enquanto, trata-se, apenas, mas esse apenas já é muito, da
confirmação da competência de julgar juízes, pois os ministros,
vitalícios como os monarcas, são inalcançáveis pelo poder correcional do
CNJ. Mas, eis a conquista de até agora, a apuração de ilícitos sai do
campo restrito e exclusivo do concílio dos pares e das sessões secretas
para o pretendido distanciamento do CNJ (presidido, aliás, pelo
presidente do STF), em julgamentos de portas abertas,
Na abertura do ano judiciário de 2012, o ministro Pelluso, em longo e
muito arquitetado discurso, no qual, na realidade, antecipava seu voto
na defesa do indefensável mandado de segurança interposto pela
Associação Brasileira de Magistrados (que já pretendeu processar a
corregedora Eliana Calmon) cujo objetivo era transformar o CNJ em grêmio
lítero-recreativo, resolveu alinhar os grandes feitos do Judiciário, e
começa referindo-se à Emenda Constitucional de 2008, a qual, até aqui,
se atribuía a trabalho de anos do Congresso Nacional. E, de costas para
a realidade, apresenta como grande, feito, para o qual pede os aplausos
da tele-platéia, o fato de “o chamado Mutirão Carcerário, realizado por juízes do CNJ e convocados ad hoc,
ter, só nos últimos 20 (vinte) meses, libertado 21.000 (vinte e um mil)
cidadãos presos ilegalmente, sem prejuízo da concessão de incontáveis
benefícios legais a que outros encarcerados faziam jus” e a esses miseráveis eram negados, completamos.
Ora o que chamamos de crise do Judiciário é exatamente sua lerdeza
nos julgamentos, sua leniência com os poderosos e o rigor com o qual
deposita nos xadrezes das delegacias e nas penitenciárias, e lá os
mantém, os pobres e os negros. Em todo o país a justiça é morosa, os
prazos são impunemente desrespeitados pelos julgadores, os cartórios são
instituições que, para dizer o mínimo, visam ao lucro, e as varas das
execuções penais, também para dizer o mínimo, são ronceiras e ineptas,
como o sistema carcerário, consabidamente corrupto e escandalosamente
falido. Nesse meio campo alimenta-se caríssimo tráfico de influências.
E
outros tráficos.
O ministro se orgulha da libertação de cidadãos presos ilegalmente
(ora viva, nós também), sem se dar conta da perversidade que é prender
ou manter presos cidadãos inocentes, pobres evidentemente, que já
cumpriram suas penas e no entanto permanecem nas enxovias esperando que
um sistema judiciário que não funciona lhes devolva a liberdade roubada.
Sobre tal ‘pormenor’, silêncio tumular.
O ministro-presidente é reincidente nesta visão míope.
Lemos em ‘Notícias do STF de 19 de dezembro de 2011: “O
primeiro Mutirão Carcerário que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
realizou no Estado de São Paulo reconheceu o direito à liberdade de 2,3
mil pessoas que se encontravam presas. Desse total, 400 detentos foram
libertados porque suas penas já estavam cumpridas ou encerradas (destaquei)
e outros 1.890 apenados receberam liberdade condicional. O mutirão
também concedeu indulto a 10 pessoas. As informações foram prestadas
pelo ministro Cezar Pelluso, presidente do Supremo Tribunal Federal
(STF) e do CNJ, em entrevista coletiva na tarde desta segunda-feira”.
De novo: o ilustre ministro Pelluso não se dá conte de que, ao invés
de comemorar a injustiça da liberdade tardia, deveria pedir desculpas à
Nação pelo crime (acima de tudo moral) que é condenar inocentes, que
permanecem nas enxovias por não lhes ser assegurada a garantia
constitucional da proteção jurisdicional.
Mas, continua a ‘Nota do STF’: “Com os números apresentados hoje, o ministro disse que já chega a mais de 36 mil o número de presos ilegalmente (destaquei) em todo o país que foram beneficiados com a liberdade, sendo 24 mil apenas na gestão do ministro Pelluso”.
Nem o discurso do ministro nem a nota do STF, evidentemente,
esclarecem a origem social, renda e cor desses presos ilegalmente
encarcerados. Essas informações seriam do maior interesse – fica aí a
sugestão para a pesquisa dos cursos de pós-graduação – e revelariam o
real caráter de uma Justiça inerte e classista, reacionária e racista,
principalmente quando está em jogo a liberdade do desprotegido. De outra
parte também não será difícil o levantamento do tempo médio em que a
inércia judicial, associada ao poder econômico que propicia as manobras
processuais (que os ministros se deleitam em discutir) consegue manter
em liberdade criminosos confessos como o jornalista Pimenta Neves, o
poderosíssimo editor do Estadão. E o ministro presidente em sua oração inaugural reclama do ‘autoritarismo’ da pressão social…
Como realizações do STF, seu presidente arrola decisões que
extrapolam a competência do Órgão e invadem o capítulo privativo do
Congresso Nacional, comprometendo a fragilíssima ‘harmonia dos Poderes’
ditada pela ordem constitucional. Ora esse ‘neo-positivismo’, invenção
ideológica que procura justificar o papel legiferante de que se arroga o
Judiciário, põe em xeque o rigor da norma, transforma em favas a ordem
jurídica, contribui para a instabilidade institucional e, isso sim, põe
em risco a respeitabilidade de que carece o Judiciário, que, como a
honra da mulher de César, precisa ser revelada todo dia.
Independentemente do conteúdo da decisão (refiro-me às ‘grandes
decisões’) o STF (como em inumeráveis oportunidades o TSE) deixou de
discutir a constitucionalidade das matérias levadas ao seu descortino,
aliás os Tribunais detestam discutir direito, o substantivo da ação,
para só conhecerem filigranas processuais (eles se deleitam nesses
desvãos, como poderá comprovar o leitor assistindo a qualquer julgamento
do Pleno), para, indo além de sua competência, de fato ‘legislar’.
Sem
mandato, sem os poderes que só a soberania popular pode outorgar, sonham
ser constituintes e legisladores. Assim também contribuindo com sua
cota de desmoralização do esvaziado (pelo Judiciário e pelo moloquiano
Executivo) Poder Legislativo, de fato o mais vulnerável, mas também o
mais transparente e o mais popular. E o mais democrático. Por isso mesmo
o mais vulnerável e o mais criticado, e o mais invejado do Poderes.
Roberto Amaral
Roberto Amaral
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