por Emiliano José, em Carta Maior
Fiquei refletindo esses dias sobre uma série de acontecimentos,
todos em São Paulo, e me perguntando, quase inocentemente, se seriam um
acaso.
Será que o Estado de São Paulo é perseguido pelo desatino, pelo
autoritarismo, pelo destempero dos governantes, pela insanidade, pelo
governo sem freios, pelo uso das armas e da brutalidade pelo Estado?
Pensei em Hannah Arendt e na banalidade do mal. Mas, falar em banalidade
do mal é falar também em quem o produz, em quem o torna uma
banalidade, e o mal se afirma não pela conjunção de personalidades
perversas, mas pela política, pelo exercício da política. Comecei,
então, nessa reflexão, a me desvencilhar do pecado da inocência, a
descartar acasos, e pensar então que pudesse haver alguma lógica em
tudo aquilo.
Afinal, foi em São Paulo que massacraram estudantes da Universidade
de São Paulo, numa violência inaceitável, incompreensível, intolerável.
Por que tantos policiais, por que uma operação daquele tamanho para
enfrentar, é, eles pensaram assim, em enfrentar, como numa guerra,
aqueles jovens desarmados? Pois é, mas aconteceu. Depois, veio o pogrom
da Cracolândia, um dos mais terríveis episódios de desrespeito aos
seres humanos que se tem notícia no Brasil recente. A referência aos
pogroms nazistas não é uma tentação panfletária. E mais recentemente, o
ataque de tropas da Polícia Militar e de contingentes da Guarda
Municipal contra a comunidade de Pinheirinho, em São José dos Campos,
para salvaguardar os interesses do conhecido especulador Naji Nahas.
Será que o destino do PSDB é converter-se mais e mais no oposto
daquilo que foi pensado pelos seus fundadores, e destaco aqui a figura
de Mário Covas como um político que, creio, tinha de fato ideais
profundamente democráticos? Não quero personalizar, não quero dizer
apenas e tão somente que o governador Geraldo Alckmin é um homem
conservador, um homem da extrema-direita, um cultor da Opus Dei. De que
adiantaria? Afinal, Serra, na campanha, fez tudo o que a Opus Dei
queria, chegou, quem sabe, a ir além, ao vestir a persona de um
autêntico Torquemada, a perseguir mulheres que abortassem. Nem adianta
dizer que Fernando Henrique, por exemplo, é a favor da descriminalização
das drogas. Onde está uma única palavra dele condenando o pogrom da
Cracolândia? É o partido que se unifica nesse tipo de política que se
desenvolve em São Paulo.
O que está em curso em São Paulo é um programa. Um pensamento. Uma
filosofia. Afastar pela violência, pela bestialidade das armas do
Estado, tudo aquilo que contrariar o pensamento dominante no Estado, e
dominante já há algum tempo. Afastar o que eles consideram fora da ordem
– os estudantes que incomodam, os drogados que sujam a cidade, os
moradores de Pinheirinho que contrariam os interesses especulativos. Por
que não pensar em dialogar exaustivamente com os estudantes e criar as
condições democráticas da desocupação da USP? Por que não imaginar uma
política consistente de saúde para enfrentar o problema dos seres
humanos usuários de crack? E uso o termo seres humanos porque necessário
nesse caso, como lembrança. Por que não negociar à exaustão para
resolver o drama de uma população inteira, em Pinheirinho, que só queria
fazer valer o direito de morar?
Há muito tempo que o PSDB desacostumou-se com o diálogo. Fernando
Henrique Cardoso começou com isto. Não há quem não se lembre dos ataques
a trabalhadores da Petrobras no seu primeiro governo. Ele copiava
Margaret Thatcher. O PSDB em São Paulo deu prosseguimento a essa visão,
com absoluto rigor e disciplina. Me recordo da reação de um
representante do governo Alckmin a respeito do pogrom da Cracolândia,
que é revoltante: “Como você consegue fazer com que as pessoas busquem
tratamento? Não é pela razão, é pelo sofrimento. Dor e sofrimento fazem a
pessoa pedir ajuda”.
Da mesma forma que se descartam políticas de saúde, tratamento para
pessoas dependentes do crack, dispensam-se as armas do diálogo, da
conversa, do convencimento dos estudantes ou dos pobres que viviam em
Pinheirinho – e aqui, como já disse, para saciar a fome especulativa de
um Naji Nahas. É como se nunca houvesse outra saída que não a da
porrada. Todos devem se convencer de que o governo tem a força, bruta, e
ponto final. Que detém o privilégio de usar as armas e fazer as
pessoas sofrerem. Que sofrendo, em todos os casos, elas entenderão o
que o governo quer, e, assim, obedecerão.
Esta é a lógica, o pensamento, a filosofia do PSDB. Não fosse, e
certamente apareceriam tantos parlamentares, tantas personalidades do
partido a condenar o que Wálter Fanganiello Maierovitch chamou, em
artigo recente publicado na revista CartaCapital, inspirado nas
lembranças de Tomás Torquemada, de “o torturante método de São Paulo”,
e, como disse anteriormente, esse torturante método espraia-se em
diversos acontecimentos, e eu lembrei aqui apenas três deles. O que me
impressiona é assistir ao governador Alckmin falando com tanta placidez
na televisão sobre o salário-aluguel que daria aos desalojados pelo seu
torturante método. Parece que foi uma operação trivial, e não outro
pogrom, como o foi Pinheirinho.
A população de São Paulo, penso, há de acordar. Não é possível
assistir passivamente a tanta violência, desrespeito aos direitos
humanos, ao Estado de Direito, que sempre pressupõe diálogo. A
democracia não pode conviver com tanto autoritarismo. E não se pense que
torcemos para que essa escalada na direção do pensamento autoritário
do PSDB prossiga. Mesmo como adversários de nosso projeto político,
gostaríamos de tê-lo como um partido democrático, capaz de governar à
base do diálogo, de compreender os movimentos sociais como um fenômeno
positivo. Infelizmente, até agora, só temos visto este partido se
contaminar por um pensamento conservador e autoritário, digno do medievo
trevoso. Infelizmente.
Emiliano José
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