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domingo, 30 de junho de 2013

Provisoriamente condenados...até que se prove o contrário




Seguindo o procedimento-padrão de encarcerar primeiro para depois analisar as condições do acusado e do próprio delito, a prisão provisória transformou-se em um instrumento para castigar os mais pobres, sejam eles culpados ou inocentes

por Patrícia Benvenuti, Cristiano Navarro

Em junho de 2012, João foi a uma panificadora no bairro da Freguesia do Ó, na zona norte de São Paulo, comprar uma pizza. Na ocasião, foi acusado por funcionários da loja de tentar furtar uma garrafa de vinho. Os responsáveis pela loja chamaram a Polícia Militar, mas antes resolveram fazer “justiça” por eles mesmos. Deram uma surra em João dentro do próprio estabelecimento comercial. Com a chegada dos policiais, em vez de proteção, João recebeu dos soldados mais porradas, além de agressões verbais e ameaças. “Ameaçaram me levar para uma pedreira e me matar.”
Após passar pela Delegacia, João foi levado ao Centro de Detenção Provisória (CDP-I) de Pinheiros, onde foi conduzido ao Regime de Observação, o chamado RO, uma cela destinada aos presos recém-chegados à unidade. Ali, João passou seus primeiros quinze dias. Sem direito a banho de sol. Onde cabiam vinte pessoas, havia setenta. Depois de sair do RO, a situação continuou difícil. Para dormir era preciso encontrar um lugar entre os presos que superlotavam a cela. A comida, péssima, era até difícil de engolir.
Enquanto esperava pelo julgamento, João só tinha notícias do andamento de seu processo por meio de sua ex-companheira e de agentes da Pastoral Carcerária. Em setembro de 2012, quatro meses depois de sua prisão, João foi finalmente julgado e absolvido.
Negro, natural de Maringá (PR), João é técnico em radiologia. Queria ter cursado uma faculdade, mas suas condições econômicas nunca permitiram. Dependente químico, João atualmente passa por um atendimento em um Centro de Atenção Psicossocial e tem planos de voltar a estudar. Sobre os quatro meses em que foi mantido preso, à espera de um julgamento que o absolveria, conclui: “Acho um absurdo. Só isso”.
***
A história de João ilustra algumas questões relacionadas à prisão provisória, um tema ainda obscuro para grande parte da sociedade brasileira. Os presos provisórios são aqueles mantidos em cárcere sem que tenha havido um julgamento definitivo. Esses presos enfrentam os mesmos problemas que se tornaram rotina no sistema prisional de todo o país. Algumas das denúncias mais constantes são superlotação, más condições de saúde e higiene, falta de assistência jurídica adequada e violência do Estado.
Entretanto, o que mais chama a atenção é o número de presos provisórios, que chega a um terço da população carcerária. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em dezembro de 2012, dos 513 mil presos brasileiros, 195 mil eram provisórios. No estado de São Paulo, dos 190 mil presos, 62 mil são provisórios.
Origens
A utilização da prisão provisória no país é antiga. Segundo Alessandra Teixeira, advogada e pesquisadora da Unesp-Marília, o Código de Processo Penal editado no início do século XIX já previa a utilização desse instrumento. Porém, os registros oficiais do período indicam poucos casos de prisões provisórias. O que enchia as cadeias era outro fenômeno, a chamada prisão correcional. Apesar de não estar previsto na lei, esse tipo de detenção era largamente utilizado para delitos como furtos e desordens públicas. “A prisão correcional, como o próprio nome diz, tem um sentido correcionalista e se voltava a controlar determinados segmentos sociais”, explica Alessandra. “A pessoa podia ficar quanto tempo determinasse o arbítrio da autoridade policial.”
Ao longo do tempo, as prisões correcionais se fundiram com as “prisões para averiguação”, em que indivíduos eram detidos sem qualquer base legal por um tempo determinado pela autoridade policial. Esse tipo de prisão perdurou até meados dos anos 1970 e só foi totalmente abolido na década seguinte, com a ascensão do movimento de democratização.
As informações sobre as prisões correcionais mostram um perfil de presos similar aos dos provisórios de hoje, como a baixa gravidade dos crimes. “Tanto em um caso como no outro, você não tem uma criminalidade necessariamente perigosa. Dá a entender um controle bastante segmentado e a partir de crimes que não necessariamente têm mais gravidade social, mas que são cometidos quase como meios de vida”, ressalta a pesquisadora.
Uso abusivo
Nos últimos dois anos, proporcionalmente, o número de presos provisórios teve um crescimento maior do que o total da população carcerária no Brasil, a quarta maior do mundo. O procedimento-padrão tornou-se encarcerar primeiro para depois analisar as condições do acusado e do próprio delito. A consequência disso é o aprisionamento desnecessário.
A prisão provisória foi o ponto de partida para o projeto Tecer Justiça: Repensando a Prisão Provisória. Com apoio da Open Society Foundations e de uma rede de entidades,1 a equipe formada pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e pela Pastoral Carcerária prestou por um ano e meio atendimento aos presos provisórios do CDP-I de Pinheiros e às presas provisórias da Penitenciária Feminina de Sant’Ana, e realizou o levantamento de informações sobre o perfil das pessoas atendidas e sobre seus processos, mediante convênio firmado com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Entre junho de 2010 e dezembro de 2011, a equipe do Tecer Justiça acessou 1.537 pessoas, aplicou 1.161 questionários, realizou 1.050 pedidos jurídicos e levantou dados de 348 processos para intervir pela obtenção da liberdade provisória. Os dados levantados pela pesquisa desenharam o perfil de presas e presos provisórios acessados nessas unidades.
O Tecer Justiça partia da hipótese de que o acesso ao defensor, logo após a prisão, e às informações processuais levaria ao aumento do número de concessões de liberdade e à consequente redução da população presa em caráter provisório. Ao final do projeto, veio a constatação: o simples aumento do número de defensores bem como o acesso à informação são somente alguns elementos na complexa cadeia de fatores que conduzem ao acesso à justiça. Barreiras institucionais e estruturas socioeconômicas cumprem um papel definitivo no acesso à justiça que somente a garantia do direito de defesa não é suficiente para superar.
Segundo o advogado Ramon Arnus Koelle, que atuou no projeto, foi possível constatar um desvirtuamento do uso da prisão provisória hoje. Ele lembra que esse instrumento jurídico, considerado de exceção, deveria ser utilizado somente em casos como possibilidade de fuga do acusado, alteração de provas ou atentado contra testemunhas. O que se observa, no entanto, é bem diferente. “Hoje ela [a prisão provisória] é usada como um mecanismo para dar uma resposta imediata a um suposto delito para o qual você não tem a apuração ainda”, afirma.
Visões da Justiça
Para o defensor público e integrante do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, Bruno Shimizu, o uso abusivo da prisão provisória é a principal causa do atual inchaço nas cadeias. “Para qualquer crime, qualquer denúncia, qualquer inquérito policial, em qualquer procedimento, o juiz tem aplicado a prisão provisória de forma absolutamente indiscriminada”, assegura.
O promotor de Justiça Criminal da Capital, Alfonso Presti, não vê a situação assim. Ele garante que a detenção só é solicitada em casos de necessidade, justificada, por exemplo, pela periculosidade do indivíduo ou do crime cometido. “O prisma que se faz é o da necessidade. Aqui não se permeia nada de raiva social”, afirma. Presti explica ainda que a prisão provisória costuma ser solicitada apenas para os casos em que se vislumbra, ao final do processo, uma condenação. Entretanto, admite que falhas ocorrem. “Não raras vezes se mantém custodiado alguém que ao final não receberá uma pena privativa de liberdade ou, ainda que receba, permanecerá em liberdade cumprindo essa pena. Mas aí é uma deficiência cognitiva do sistema de percepção penal no Brasil”, justifica.
O presidente do Conselho Executivo da Associação dos Juízes pela Democracia (AJD), José Henrique Rodrigues Torres, frisa a importância do princípio da presunção da inocência, que deve orientar todas as ações judiciais. “O juiz deve observar, primeiro, o princípio de presunção da inocência, que é constitucional, e, portanto, as prisões provisórias têm de ser deferidas apenas e tão somente diante de concretas e absolutas situações de necessidade. O juiz não está ali para prender o sujeito para proteger a sociedade − ao contrário, ele existe exatamente para garantir o estado de liberdade”, diz. Para o magistrado, a “banalização” da prisão provisória reflete a concepção dos operadores a respeito do sistema de justiça. “Criou-se essa concepção de que o direito penal é instrumentalizado para proteger a sociedade, garantir a ordem e a segurança pública, e acaba se tornando infelizmente um sistema de controle social muito forte.”
Presti concorda que a postura do Judiciário é dura, mas alega que é resultado de pressões da sociedade. Para o promotor, a Justiça é “uma caixa de ressonância da sociedade e é assim que tem de ser vista, compelindo o poder público e a administração executiva a políticas criminais mais eficazes”.
Punir os pobres
Os dados apresentados no relatório do Tecer Justiça mostram o perfil dos presos como sendo em sua maioria jovens, negros ou pardos e de baixa escolaridade. Para o coordenador jurídico da Pastoral Carcerária José de Jesus Filho, o perfil dos presos permite concluir que “a prisão provisória não interessa tanto à segurança do processo, e sim ao controle de determinada camada da população”.
Para o defensor público Bruno Shimizu, há uma relação clara entre a prisão provisória e seu alvo preferencial. Cerca de 90% dos casos, segundo o defensor público, foram desencadeados por furtos, roubos e tráfico de drogas – delitos mais cometidos pela população de baixa renda. Shimizu lembra que os juízes costumam negar pedidos de liberdade baseados em argumentos como falta de endereço fixo ou de vínculo empregatício. “Isso demonstra que a prisão provisória é o modo que o tribunal e os juízes encontraram para criminalizar a pobreza.”
Segundo o juiz Rodrigues Torres, ao insistir na “gravidade” de tais crimes, os magistrados corroboram a seletividade do sistema. A principal causa disso, para ele, é a ideologia de “segurança nacional” ainda dominante entre os juízes, “que vigorou no tempo da ditadura e hoje foi convertida em uma ideologia de segurança urbana”.
Em 2011, com o objetivo de reduzir a população carcerária, entrou em vigor a Lei n. 12.403, que modifica o Código de Processo Penal e cria alternativas à prisão provisória, como a prisão domiciliar, o monitoramento eletrônico e o pagamento de fiança. A nova lei, que poderia reverter o quadro, não teve esse efeito. Na visão de Shimizu, em vez de aplicar todas as medidas, os juízes costumam escolher majoritariamente a fiança como possibilidade de o acusado responder ao processo em liberdade, o que tem aprofundado ainda mais a desigualdade dentro do sistema.
Sem defesa
Uma possibilidade apontada para reverter o uso excessivo da prisão provisória é aumentar a rapidez do atendimento jurídico ao acusado. A maioria dos provisórios depende dos serviços da Defensoria Pública do Estado, que presta assessoria jurídica gratuita a quem não pode contratar um advogado. O trabalho dos defensores, porém, enfrenta uma série de dificuldades. Uma delas é a quantidade limitada de quadros para a gigantesca massa de processos. O estado de São Paulo possui ao todo 610 profissionais, dos quais 187 defensores atuam na área criminal. Para ter uma ideia, quando trabalhava em uma vara criminal, Shimizu possuía 2,5 mil processos sob sua responsabilidade.
Não há, por exemplo, defensores públicos para atuar no momento das prisões. Assim, o primeiro contato entre defensor e acusado costuma ocorrer cerca de três meses depois do encarceramento, minutos antes da primeira audiência de instrução perante o juiz.
O problema não atinge só a Defensoria de São Paulo. Segundo o Mapa da Defensoria Pública, existem apenas 5.054 defensores públicos estaduais. Das 2.680 comarcas brasileiras, apenas 754 contam com pelo menos um defensor.
Para Koelle, a presença de defensores públicos no momento da prisão seria essencial não apenas para garantir aos presos o acesso à informação, mas também para coibir a violência cometida por agentes do Estado contra os acusados. “Se ele [policial] sabe que só dali a um mês [o preso] vai se encontrar com um defensor público ou com alguma autoridade do Judiciário, ele tem carta branca para espancar aquela pessoa, porque em um mês os hematomas desaparecem.” Tratados internacionais também apontam mecanismos para evitar tais situações de violência, como a Convenção Americana de Direitos Humanos, que em seu artigo 7º prevê que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”.
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Pobre, negro, travesti, cadeirante, deficiente auditivo e portador do vírus HIV, aos 40 anos Rodrigo perdeu o movimento das pernas e a audição em razão de uma doença degenerativa. Desde então, vive em uma cadeira de rodas e comunica-se apenas por meio da escrita.
Apesar da saúde debilitada, Rodrigo já foi diversas vezes preso e solto por tráfico de pequeno porte. Na primeira, ele foi flagrado por policiais militares em outubro de 2010, no bairro da Vila Buarque, em São Paulo, com 3,7 gramas de cocaína escondidos dentro da atadura de sua perna. Apesar de à época ser réu primário, a Justiça lhe negou o direito de aguardar o curso do processo em liberdade. Encarcerado em uma cela sem luminosidade ou ventilação na enfermaria do CDP-I de Pinheiros, para que pudesse tomar “banho de sol” Rodrigo necessitava de um funcionário que, com boa vontade, empurrasse sua cadeira.
A equipe do projeto Tecer Justiça entrou com recurso de habeas corpusno Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), procurando mostrar que a prisão de Rodrigo oferecia alto risco à sua saúde, revelava-se uma maneira cruel de punição e violava a própria dignidade da pessoa humana. A petição destacava a posição de irracionalidade da política penal de aprisionamento sistemático de pessoas acusadas de pequeno tráfico e muitas vezes primárias.
Rodrigo, já condenado em primeira instância à pena de um ano e onze meses de reclusão em regime inicial fechado e ao pagamento de multa por tráfico de entorpecentes, teve reconhecido pelo TJ-SP o direito de aguardar o julgamento do recurso de apelação em liberdade. Meses depois da soltura, foi preso novamente, solto por um pedido da Defensoria Pública do Estado e em seguida preso mais uma vez, sempre por pequeno porte de drogas.
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Considerado um crime hediondo e encarado por governos, operadores do direito e setores mais conservadores como um “vilão” da sociedade, o tráfico de drogas é hoje um dos crimes que mais contribuem para o aumento da população prisional. Segundo dados do Depen, 23% dos homens presos tiveram a prisão motivada por crime relacionado a drogas.
Em 2006, entrou em vigor a Lei n. 11.343, chamada Lei de Drogas, que aumentou as sanções para o tráfico. Entre as mudanças está a ampliação da pena mínima prevista para o crime, de três para cinco anos, e da pena pecuniária, cuja determinação passou do intervalo entre cinquenta e 360 dias-multa para o de quinhentos a 1.500 dias-multa.
O promotor Alfonso Presti costuma se referir à droga como “a mãe de todos os crimes”, dando a entender que ela seria responsável por uma série de delitos cometidos atualmente. Para ele, aumentar o período de encarceramento do traficante, como propõe a lei, portanto, poderia ajudar a quebrar os “elos” dessa cadeia.
O juiz Torres Rodrigues, porém, questiona a eficácia da política de combate às drogas. “Gastamos milhões e milhões, prendemos milhares e milhares, e isso resultou em nada”, lamenta. Um dos principais erros do Judiciário sobre o tema das drogas, para ele, é manter a prisão provisória de todos os acusados por tráfico. De acordo com o juiz, a suposta gravidade do delito não legitima a prisão. “Não se justifica manter alguém provisoriamente preso simplesmente porque está havendo uma investigação sobre tráfico.”
Uma das principais conclusões da pesquisa “Prisão Provisória e Lei de Drogas”, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), baseada na análise de processos e em entrevistas com juízes, promotores, defensores e policiais, foi que a prisão provisória é utilizada como método punitivo. “Mais do que um dispositivo legal, [a prisão provisória] virou uma forma de exceção de punir suspeitos”, explica a pesquisadora Maria Gorete Marques de Jesus.
O projeto Tecer Justiça deparou com uma posição maciça de juízes e promotores contra a concessão de liberdade em casos relacionados a drogas, mesmo quando se trata de porte de pequena quantidade. Em geral, a pessoa acusada por crimes de drogas aguarda presa sua sentença que, quase sempre, resulta em pena de prisão em regime inicial fechado.
Usuários ou pequenos traficantes?
A Lei de Drogas passou a determinar também que o usuário de drogas não fosse mais punido com a privação de liberdade. A expectativa era de que isso reduzisse os índices de encarceramento, o que não ocorreu. Em 2006, havia no país cerca de 41 mil pessoas presas por tráfico. Em 2012, o númerotriplicou para 131 mil. Em São Paulo, no mesmo período, o número de homens presos passou de 17 mil para 54 mil. Já a população carcerária feminina presa por drogas aumentou de 4.758 em 2006 para 13.964 em 2012. Em São Paulo, passou de 1.092 para 4.344. O crescimento do encarceramento feminino por drogas supera a média geral.
Apesar de a lei antidrogas não prever a prisão do usuário, a diferenciação não depende da quantidade encontrada com o acusado no flagrante, mas sim da presunção dos agentes de segurança pública (policiais, delegados, promotores e juízes). O defensor público Bruno Shimizu garante que, na prática, o fator decisivo é a condição socioeconômica. “Se a pessoa tem dinheiro para comprar, é usuária; se não tem, é traficante. É um argumento totalmente preconceituoso, que passa pela cor da pele, pelo lugar onde a pessoa mora e como está vestida”, elucida. “Todo o nosso sistema criminal é seletivo e acarreta uma exclusão social. É um formato de controle social que acaba punindo e criminalizando a pobreza”, completa o juiz Rodrigues Torres.
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Eram três pequenos invólucros de crack que resultaram em onze meses e oito dias de espera em prisão provisória. Desde aquela madrugada de abril de 2009, em que foi presa em flagrante, na região central de São Paulo, até o momento de sua sentença, a jovem, negra, desempregada e solteira, declarou ser usuária de crack. Mesmo assim, o Ministério Público estadual pediu sua condenação sob o enquadramento de tráfico de drogas.
A demora na realização do exame químico-toxicológico e da audiência transformaram a vida de Maíra na Penitenciária Feminina de Sant’Ana em uma espera angustiante. Por fim, os próprios policiais que fizeram a prisão depuseram afirmando que a droga servia apenas para o consumo da ré e, assim, com base nos exames e nos depoimentos, a Justiça atendeu à alegação da defesa aplicando uma pena de três meses de prestação de serviços à comunidade por uso de drogas.
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Situação semelhante viveu Solange. Presa portando uma pequena quantidade de crack, ela foi solta em dezembro de 2010, depois de dezoito meses encarcerada sem nenhuma sentença. Sua primeira audiência ocorreu somente oito meses após a prisão. Apesar de alegar ser dependente química, apenas na segunda audiência, quando já havia cumprido onze meses de prisão provisória, a juíza resolveu pedir o exame toxicológico.
No entanto, a perícia só foi marcada para seis meses depois. E, no dia agendado, foi desmarcada. Um mês mais tarde, a juíza determinou que Solange aguardasse o julgamento em liberdade. Em maio de 2011, depois de todas as reviravoltas, ela foi condenada à pena de quatro anos, seis meses e 13 dias de reclusão e ao pagamento de multa pelo crime de tráfico de drogas.
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O estado de São Paulo oferece 864 vagas para presas provisórias, no entanto, 1.689 mulheres encontram-se nessa situação. Os crimes ligados ao comércio de drogas ilícitas são hoje a principal porta de entrada para as mulheres no sistema penitenciário. Na última década, a prisão de mulheres por envolvimento com o tráfico mais do que triplicou. De 2000 a 2010, a população carcerária feminina no Brasil aumentou em 261%, crescendo de cerca de 10 mil para quase 36 mil.
Em outros estados do Brasil, especialmente os de fronteira, a proporção de mulheres presas por crimes relacionados a drogas é ainda maior. No Mato Grosso do Sul, em junho de 2012, 78% das mulheres (em comparação com 34,7% dos homens) estavam encarceradas por envolvimento com crimes da Lei deDrogas. Em Roraima, esse índice chega a impressionantes 90%.
O tráfico de drogas em outros estados possui características muito distintas daquelas encontradas em São Paulo. No entanto, a mulher recorrentemente é utilizada para trabalhos de alto risco (como carregar drogas entre estados ou internacionalmente) e de pouca graduação na estrutura hierárquica das organizações criminosas. Essa é uma característica das mulheres aprisionadas por crimes relacionados a drogas, tanto brasileiras como estrangeiras.
Sônia Drigo, advogada criminalista e integrante do Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas, explica que em geral as mulheres ocupam postos baixos no comércio de drogas e são condenadas por “tráfico privilegiado”, situação em que, se a pessoa é ré primária, não se dedica à atividade criminosa nem integra organização criminosa, ou seja, não faz do tráfico um meio de vida, a pena poderia ser reduzida e a prisão substituída por pena alternativa. “Você não conhece uma líder de quadrilha. Jamais conheci uma mulher que fosse como um Fernandinho Beira-Mar ou como algum homem que se torna conhecido no Brasil todo”, comenta.
Chefes
Segundo dados levantados pelo projeto Tecer Justiça junto à Penitenciária de Sant’Ana, 61,1% das mulheres que participaram da pesquisa afirmaram estar em alguma atividade profissional no momento imediatamente anterior à prisão. Além disso, o trabalho está ligado ao sustento da família também na maior parte dos casos. No entanto, apenas 3,8% das atendidas possuíam algum tipo de trabalho formal antes da prisão, o que mostra a precariedade dos meios disponíveis para garantir esse sustento.
A advogada criminalista afirma que geralmente o envolvimento das mulheres ocorre “na busca de uma satisfação financeira imediata para cuidar dos filhos, do núcleo familiar. Se você fizer uma pesquisa, vai ver que a maioria dos filhos das presas não tem pai declarado, e elas são as chefes de família”.
Em comparação entre as duas unidades prisionais visitadas pelo projeto, é possível constatar uma maior dependência de filhos de pessoas presas entre a população carcerária feminina do que a masculina. Das mulheres atendidas pelo projeto Tecer Justiça, 81,2% têm filhos. Essas mães moravam com os filhos em 56,2% dos casos – a coabitação é duas vezes maior em relação aos homens que são pais. Entre os homens, 53% relataram ter filhos, mas 76,3% não moram com eles. Ainda sobre as mães presas, a pesquisa anotou que 64,2% das mulheres não têm companheiro (são solteiras, divorciadas/separadas ou viúvas) e 42% têm três filhos ou mais.
Patrícia Benvenuti
Jornalista

Cristiano Navarro Jornalista, é diretor do documentário "Á sombra de um delírio verde".


Ilustração: Andre Cypriano
1 Sou da Paz, Instituto de Defesa do Direito de Defesa (DDD), Conectas Direitos Humanos, Núceo de Estudos da Violência, Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), Justiça Global.
* Esta reportagem foi produzida com o apoio do Instituto Terra Trabalho e Cidadania dentro do projeto Tecer Justiça.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

“O conflito entre o social e o ambiental é falso”


Comunidade do Horto, no Jardim Botânico/ RJ , onde moram mais de
500 famílias sob ameaça de remoção


Rogério Daflon
Canal Ibase

O professor, advogado e  jurista Edésio Fernandes é uma das maiores referências no campo do direito urbanístico no Brasil e no exterior. Com essa autoridade, Edésio, em entrevista ao Canal Ibase, classifica como absurda a intenção de se remover a comunidade do Horto. “Acho lamentável que essa decisão vergonhosa tenha partido não do prefeito Eduardo Paes ou do governador Sérgio Cabral, de quem se pode esperar esse tipo de atitude, mas do governo federal, que se diz comprometido com as propostas de inclusão socioespacial”, diz ele. O grande ponto, segundo Fernandes, seria buscar um equilíbrio entre as questões ambientais e sociais. Mas, infelizmente, muitos atores desse imbróglio estão optando pela desarmonia.

Canal Ibase: Como se consolidou a comunidade do Horto?
Edésio Fernandes: A questão do Horto é muito antiga, existem pesquisas históricas, especialmente da Laura Olivieri Carneiro (historiadora com mestrado em História Social) mostrando que os primórdios  da comunidade remontam a cerca de 200 anos, sendo que, desde o século XVI, já havia presença humana na área. Por meio de diversos processos de ocupação, direta ou indiretamente promovidos pelo governo federal, as famílias consolidaram sua ocupação. Historicamente, inclusive, havia uma demarcação mais clara entre Horto e Jardim Botânico. Em 1960, o então presidente da República, Juscelino Kubitschek, inaugurou a Escola Pública Júlia Kubitschek, visando exatamente a atender a comunidade do Horto.  Era um tempo em que o setor imobiliário não dava tanto valor àquele lugar. Tanto que,  ironicamente, nos anos 1970, cogitou-se fazer ali um conjunto habitacional do BNH (Banco Nacional de Habitação), para  receber pessoas removidas de outras favelas cariocas.  Ao longo do tempo, instituições como Ministério da Agricultura, Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal e a própria direção do Jardim Botânico deram autorizações para que se fizessem moradias  na área do Horto.

Canal Ibase:  Os moradores do Horto estão sendo chamados de invasores. Como o senhor vê essa classificação?
Edésio Fernandes: No Horto, há pessoas de 70, 80, 93 anos que nasceram e foram criadas lá. Essas pessoas têm filhos, netos e bisnetos que lá moram. Há mesmo quem tenha ligações com antigos escravos que viveram na area. Como chamar de invasor uma pessoa que nasceu lá há tantas decadas? O fato é que até os anos 1980 a “questão ambiental” nunca foi obstáculo à presença dessa comunidade, mesmo porque não havia essa questão como nós a articulamos hoje. Essa comunidade, portanto, nunca foi nociva ao Jardim Botânico. E o tempo cria direitos, esse é o princípio tradicional do direito. Você não pode penalizar toda uma comunidade se, no passado, as ações do poder publico foram no mínimo ambíguas, quando não muito assertivas, quando não houve fiscalização, mas sim tolerância de órgãos do governo federal e até mesmo incentivo à ocupação. Não há como ignorar tudo isso, taxando as pessoas de invasoras de maneira tão simplista.

Canall Ibase:  Quando a área passa a ser valorizada?
Edésio Fernandes: Com a chegada da Rede Globo nos anos 1980, as áreas vizinhas ao Jardim Botânico começam a ser ocupadas por mansões, sendo que, nos anos 1990, o Condomínio Canto e Mello, que é de alta renda, se instalou na área do parque e acima da cota 100 de edificabilidade, cometendo assim uma dupla ilegalidade. Mas essas não são situações veiculadas na imprensa, que também não questiona o fato de haver moradias de baixa renda em áreas de proteção ambiental nas periferias. Também nos anos 1980, por pressão da então recém-criada Associação de Moradores do Jardim Botânico, o governo federal entrou com uma ação judicial de reintegração de posse, pedindo a retirada de 120 das 620 famílias que lá vivem. Essa ação foi vitoriosa e transitou em julgado, mas as famílias permaneceram lá porque a ordem jurídica brasileira mudou profundamente com a Constituição Federal de 1988, que então passou a reconhecer o princípio da função social da propriedade, inclusive da propriedade pública. Também na Constituição de 1988 é aprovado no país o princípio do direito coletivo à regularização fundiária de assentamentos informais consolidados. Já em 2000 foi aprovada a emenda constitucional assegurando o direito social à moradia. E, em 2001, como complementação do Estatuto da Cidade que tinha sido aprovado, o governo federal baixou uma Medida Provisória (MP), a de número 2.220, disciplinando o instituto da Concessão de Uso Especial para fins de Moradia em bens públicos. Trata-se de uma medida que se aplica ao caso do Horto para garantir a permanência da comunidade, já que se trata de ocupação de terras da União. Essa MP não ignorou a questão ambiental, mas declarou que, quando há valores sociais de mo radia e valores ambientais a serem considerados, tem-se que buscar como princípio um cenário possível de equilíbrio entre o social e o ambiental.

Canal Ibase:    E como se deve buscar esse equilíbrio entre o meio ambiente e o social?
Edésio Fernandes:  São muitas as formas de se fazer a regularização fundiária compensando e ou mitigando os danos ambientais. Na impossibilidade de se encontrar esse equilíbrio, deve-se fazer um acordo com os moradores, pois eles também têm direitos previstos por leis que não podem ser ignorados. Não se pode mais hoje em dia, por exemplo, pensar em remover comunidades sem oferecer e discutir alternativas. Hoje, quem cuida do caso do Horto é a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), um órgão do Ministério do Planejamento. A SPU fez por dois anos um amplo levantamento das questões dos moradores do Horto e, em projeto de regularização fundiária discutido com a comunidade e elaborado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo  (FAU) da UFRJ levando em conta também a questão ambiental, propôs o reconhecimento do direito de permanência da comunidade.  Essa nova atitude do governo federal, de acordo com a nova ordem jurídica do pais, provocou uma resistência ainda maior da Associação de Moradores do Jardim Botânico, amparada pela poderosa Rede Globo.

Canal Ibase:  O que ocorreu depois disso?
Edésio Fernandes:  Surgiu então um fato inédito na história brasileira: a entrada em cena do Tribunal de Contas da União (TCU), órgão de controle interno da administração pública. Embora o TCU não seja aberto a esse tipo de interpelação direta de grupos, o órgão foi acionado pela Associação do Jardim Botânico e suspendeu o referido projeto de regularização fundiária de interesse social que vinha sendo feito pelo SPU em convênio com a  FAU. A julgar pela cobertura falaciosa da imprensa, o TCU seria um órgão do poder judiciário com poder de obrigar condutas do governo de maneira imediata. O TCU deu um prazo para que fosse feita uma nova demarcação do parque, para que fossem para executadas as remoções das famílias condenadas e ações de reintegração de posse, ainda que a ordem jurídica tenha mudado e que não fosse mais do interesse da União promover a retirada das famílias. O TCU determinou ainda que novas ações fossem propostas para remoção das demais famílias, a enorme maioria, que até hoje não foram objeto de qualquer ação judicial.

Canal Ibase:   Qual foi o resultado dessa determinação do TCU?
 Edésio Fernandes:  Uma nova demarcação foi feita por uma comissão integrada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), pelo SPU e pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional (IPHAN, neste caso porque o parque é tombado), mudando os limites tradicionais entre Horto e Jardim Botânico com base em interpretação equivocada de documentos históricos e assim condenando mais de 520 famílias à remoçãoo. A SPU, que até outro dia era favorável à permanência da comunidade e à regularizacao fundiária, bem como o IPHAN, que de acordo com noticias de jornal até então era favorável à permanência da maioria da comunidade, mudaram de posição em vista da pressão do MMA, da Fundacao Jardim Botanico, do TCU  e da Rede Globo. É interessante notar que essa comissão do governo federal não incluiu o órgão federal que é encarregado do cumprimento do Estatuto da Cidade, da MP no. 2.220 e do reconhecimento do direito social de moradia, qual seja, o Ministério das Cidades.  É um absurdo, um verdadeiro fracasso do governo federal na busca de um equílibrio entre os vários interesses e direitos envolvidos. Querer que famílias que têm direitos subjetivos sobre essa área, já que a ocupam por tanto tempo, aceitem se cadastrar para um dia poderem pagar por um imóvel sabe-se lá onde do programa Minha Casa, Minha Vida é uma afronta à ordem jurídica e à dignidade dessas familias. Até hoje, por conta da resistência da comunidade do Horto, três famílias já foram removidas – e mesmo assim através de processos que desrespeitaram todos os critérios nacionais e tratados internacionais sobre a legalidade do despejo. As três familias foram removidas à noite, sem a presença de ambulância e assistentes sociais. Seus móveis foram colocados na rua até que chegou um caminhão – com uma ordem de serviço assinada por um membro da Associação de Moradores do Jardim Botânico que tem a concessão de uma loja dentro do parque do Jardim Botânico. A Associacao dos Moradores do Horto entrou com Mandado de Segurança junto ao Superior Tribunal Federal contra a decisão, e está aguardando um pronunciamento. A Relatora Especial da ONU para o Direito de Moradia escreveu para o Presidente do STJ defendendo o direito da comunidade à permanência no local. O Conselho Nacional das Cidades passou Resolução exigindo do Governo Federal que incluisse o Ministerio das Cidades nas discussões, para que, além das questões ambientais e culturais, também a questao da moradia fosse considerada. 
  Canal Ibase:   O que esses agentes não querem enxergar nesse caso?
Edésio Fernandes: Que o conflito entre o social e o ambiental é um falso conflito. Que há cenários possíveis de articulação entre eles. Que mesmo no caso de remoções, os direitos de moradia continuam válidos, e alternativas aceitáveis têm que ser discutidas com a comunidade. Que qualquer decisão do governo federal no sentido de remover a comunidade do Horto perde qualquer credibilidade quando o próprio governo federal aceita a permanência de um  condomínio de luxo dentro da mesma área. Trata-se muito mais de preconceito de classe do que de uma questão jurídica, ou de uma questão ambiental. Pessoalmente, acho lamentável que essa decisão vergonhosa tenha partido não do prefeito Eduardo Paes ou do governador Sergio cabral, de quem se pode esperar esse tipo de atitude, mas do governo federal que se diz comprometido com as propostas de inclusão socioespacial, da função social da  propriedade pública, do direito social de moradia e da regularização fundiária de assentamentos informais consolidados. Uma vergonha.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

O preço do progresso




Enquanto perante as recentes manifestações na Turquia foi imediata a leitura sobre as “duas Turquias”, no caso do Brasil foi mais difícil reconhecer a existência de “dois Brasis”

Por Boaventura de Sousa Santos, publicado em Carta Maior

Com a eleição da Presidente Dilma Rousseff, o Brasil quis acelerar o passo para se tornar uma potência global. Muitas das iniciativas nesse sentido vinham de trás mas tiveram um novo impulso: Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente, Rio +20, em 2012, Campeonato do Mundo de Futebol em 2014, Jogos Olímpicos em 2016, luta por lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU, papel ativo no crescente protagonismo das “economias emergentes”, os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), nomeação de José Graziano da Silva para Diretor-Geral da Organização da Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), em 2012, e de Roberto Azevedo para Diretor-Geral Organização Mundial de Comércio, a partir de 2013, uma política agressiva de exploração dos recursos naturais, tanto no Brasil como em África, nomeadamente em Moçambique, favorecimento da grande agricultura industrial sobretudo para a produção de soja, agro-combustíveis e a criação de gado.
Beneficiando-se de uma boa imagem pública internacional granjeada pelo Presidente Lula e as suas políticas de inclusão social, este Brasil desenvolvimentista impôs-se ao mundo como uma potência de tipo novo, benévola e inclusiva. Não podia, pois, ser maior a surpresa internacional perante as manifestações que na última semana levaram para a rua centenas de milhares de pessoas nas principais cidades do país. Enquanto perante as recentes manifestações na Turquia foi imediata a leitura sobre as “duas Turquias”, no caso do Brasil foi mais difícil reconhecer a existência de “dois Brasis”. Mas ela aí está aos olhos de todos. A dificuldade em reconhecê-la reside na própria natureza do “outro Brasil”, um Brasil furtivo a análises simplistas. Esse Brasil é feito de três narrativas e temporalidades.


A primeira é a narrativa da exclusão social (um dos países mais desiguais do mundo), das oligarquias latifundiárias, do caciquismo violento, de elites políticas restritas e racistas, uma narrativa que remonta à colônia e se tem reproduzido sobre formas sempre mutantes até hoje. A segunda narrativa é a da reivindicação da democracia participativa que remonta aos últimos 25 anos e teve os seus pontos mais altos no processo constituinte que conduziu à Constituição de 1988, nos orçamentos participativos sobre políticas urbanas em centenas de municípios, no impeachment do Presidente Collor de Mello em 1992, na criação de conselhos de cidadãos nas principais áreas de políticas públicas especialmente na saúde e educação aos diferentes níveis da ação estatal (municipal, estadual e federal).

A terceira narrativa tem apenas dez anos de idade e diz respeito às vastas políticas de inclusão social adotadas pelo Presidente Lula da Silva a partir de 2003 e que levaram a uma significativa redução da pobreza, à criação de uma classe média com elevado pendor consumista, ao reconhecimento da discriminação racial contra a população afrodescendente e indígena e às políticas de ação afirmativa e à ampliação do reconhecimento de territórios e quilombolas e indígenas.

O que aconteceu desde que a Presidente Dilma assumiu funções foi a desaceleração ou mesmo estancamento das duas últimas narrativas. E como em política não há vazio, o espaço que elas foram deixando de baldio foi sendo aproveitado pela primeira e mais antiga narrativa que ganhou novo vigor sob as novas roupagens do desenvolvimento capitalista todo o custo, e as novas (e velhas) formas de corrupção. As formas de democracia participativa foram cooptadas, neutralizadas no domínio das grandes infraestruturas e megaprojetos e deixaram de motivar as gerações mais novas, orfãs de vida familiar e comunitária integradora, deslumbradas pelo novo consumismo ou obcecadas pelo desejo dele.

As políticas de inclusão social esgotaram-se e deixaram de corresponder às expectativas de quem se sentia merecedor de mais e melhor. A qualidade de vida urbana piorou em nome dos eventos de prestígio internacional que absorveram os investimentos que deviam melhorar transportes, educação e serviços públicos em geral . O racismo mostrou a sua persistência no tecido social e nas forças policiais. Aumentou o assassinato de líderes indígenas e camponeses, demonizados pelo poder político como “obstáculos ao desenvolvimento” apenas por lutarem pelas suas terras e modos de vida, contra o agronegócio e os megaprojetos de mineração e hidrelétricos (como a barragem de Belo Monte, destinada a fornecer energia barata à indústria extrativa).

A Presidente Dilma foi o termômetro desta mudança insidiosa. Assumiu uma atitude de indisfarçável hostilidade aos movimentos sociais e aos povos indígenas, uma mudança drástica em relação ao seu antecessor. Lutou contra a corrupção mas deixou para os parceiros políticos mais conservadores as agendas que considerou menos importantes. Foi assim que a Comissão de Direitos Humanos, historicamente comprometida com os direitos das minorias, foi entregue a um pastor evangélico homofóbico e promove uma proposta legislativa conhecida como “cura gay”. As manifestações revelam que, longe de ter sido o país que acordou, foi a Presidente quem acordou.

Com os olhos postos na experiência internacional e também nas eleições presidenciais de 2014, a Presidente Dilma tornou claro que as respostas repressivas só agudizam os conflitos e isolam os governos. No mesmo sentido, os presidentes de câmara de nove cidades capitais já decidiram baixar o preço dos transportes. É apenas um começo. Para ele ser consistente é necessário que as duas narrativas (democracia participativa e inclusão social intercultural) retomem o dinamismo que já tiveram. Se assim for, o Brasil estará a mostrar ao mundo que só merece a pena pagar o preço do progresso, aprofundando a democracia, redistribuindo a riqueza criada e reconhecendo a diferença cultural e política daqueles para quem progresso sem dignidade é retrocesso.

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

quarta-feira, 26 de junho de 2013

A extinta PEC 37, difamada da Impunidade

Por Mauro Sampaio, em Portal Acessepiauí

Era uma vez uma proposta de emenda à Constituição (PEC) numerada 37, que pretendia tornar a investigação criminal uma atividade privativa da Polícia Judiciária, a Federal e a Civil.

Apresentada em 2011, a PEC 37 sucumbiu a uma campanha difamatória liderada pelo Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel. Foi apelidada de PEC da Impunidade.

Aprovada sua admissibilidade na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e o parecer pela aprovação em comissão especial, aguardava a apreciação pelo Plenário.

Se antes havia mais de uma dezena de parlamentares que concordava que as investigações do Ministério Público eram um risco ao Estado Democrático de Direito porque feitas sem controle e critério alguns, sobraram apenas nove.

Bastaram duas manifestações em frente ao Congresso Nacional. Entre as reivindicações, a rejeição da PEC 37.

O Ministério Público não tem poder de investigação definido pela Constituição Federal, mas convenceu, com competência publicitária, que a proposta representava isso.

A PEC era apoiada pelos delegados de polícia. Ao final, eles também ficaram pichados como defensores da impunidade. Comemora-se no País a vitória do bem contra o mal.

O debate franco, maduro, honesto e necessário sobre as atribuições do Ministério Público e da Polícia Judiciária está arquivado.

CONTRA A PEC 37, MÍDIA MANIPULA OPINIÃO PÚBLICA

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terça-feira, 25 de junho de 2013

Saiba quem são os Anonymous







Em 14 de janeiro de 2008, um vídeo com o ator Tom Cruise fazendo apologia das maravilhas da Igreja da Cientologia foi parar no YouTube. A seita das celebridades de Hollywood não gostou e entrou com um pedido de violação de direitos autorais contra o canal de internet, exigindo a imediata remoção do conteúdo. Ganhou na Justiça, mas a censura desencadeou uma série de ações contra a igreja. Tanto na rede quanto nas ruas.
Em 2 de fevereiro daquele ano, duas centenas de pessoas se reuniram em frente a um centro da Igreja, na Flórida, para protestar. Manifestações também foram realizadas no mesmo dia na Califórnia (EUA) e em Manchester (Inglaterra). No dia 10 e no dia 15, os atos continuaram, cada um com cerca de 8 mil pessoas protestando em aproximadamente uma centena de cidades, incluindo Chicago, Los Angeles, Londres, Paris, Vancouver e Berlim. Detalhe: os manifestantes escondiam seus rostos sob máscaras, boa parte delas do personagem do filme “V de Vingança”, que foi inspirado num personagem histórico inglês, Guy Fawkes.
O mundo começava a conhecer o Anonymous, grupo gerado pela ação das redes e que, desde 2003, se articulava e debatia ideias em fóruns, principalmente no site www.4chan e no Internet Relay Chat (IRC).
Alguns desses militantes são hackers, com conhecimentos avançados de programação, mas boa parte, não. “Eu, por exemplo, sou escritora, redatora e estou na faixa dos 30 anos. Normalmente não dizemos nossa idade, mas estou lhe revelando para tirar o mito de que somos adolescentes. Isso não é verdade. Para você ter uma ideia, não sei nada de informática, sou uma leiga”, revela Farfalla (borboleta em italiano), militante dos Anonymous Brasil, numa conversa que tivemos pelo IRC, plataforma de bate-papo que fez muito sucesso no final dos anos 1990 e início dos anos 2000.
Os Anonymous já realizaram várias ações depois da que os tirou do anonimato global, contra a Igreja da Cientologia. Uma das mais conhecidas se deu em dezembro de 2010, quando mais de mil deles se organizaram por meio de fóruns e redes sociais para congestionar os sistemas das redes Mastercard e Visa e o serviço de pagamento PayPal por se negarem a receber contribuições para o WikiLeaks, que acabava de revelar uma série de documentos secretos das embaixadas americanas espalhadas pelo mundo.
Na sequência, em janeiro deste ano, o Anonymous entrou em ação de novo, participando da Primavera Islâmica. Seus militantes protestaram em sites do Ministério da Indústria e da Bolsa de Valores da Tunísia, em solidariedade ao movimento contrário ao governo local, que cairia dias depois. Também organizou, em fevereiro, um ataque contra sites do governo do Iêmen e foi atuante na difusão de informações sobre a revolução no Egito, principalmente quando Hosni Mubarak derrubou o sinal de internet no país.
Na Espanha, os protestos que levaram milhares à Praça do Sol começaram a ganhar corpo na rede impulsionado pelos Anonymous. Em 20 de dezembro do ano passado, eles fizeram a primeira manifestação contra a Ley Sinde, que restringia a liberdade na internet. Depois fizeram outros atos, até chegar ao mais ruidoso, em 4 de março, e que resultou, depois de 11 dias, no movimento que ficou conhecido como 15M (15 de março), quando milhares de jovens passaram a acampar na Praça do Sol, reivindicando não só mudanças na lei, como uma nova democracia no país.
No Brasil, os Anonymous ainda não são um grupo com muito espaço na rede, mas já começam a testar sua força. Estão programando, por exemplo, protestos para o dia 7 de setembro e, de alguma forma, o nome do grupo ganhou a mídia quando dos ataques a sites do governo federal em julho. Protesto que eles não assumem e é reivindicado pelo Luzlsec (ver entrevista com SilverLords, do grupo, na pagina 10).
Mas antes de continuar este texto, parênteses para um esclarecimento que Farfalla me fez na primeira pergunta de nossa entrevista: “O Anonymous não é um grupo fechado, mas uma ideia, e todos que compartilham dessa ideia são Anonymous, e não do Anonymous.” O que parece um simples jogo de palavras é uma explicação importante para entender a lógica desse novo ativismo.
Farfalla é apenas uma das pessoas que se reivindicam Anonymous, mas não é porta-voz do grupo ou muito menos uma liderança. Entender o universo Anonymous não é algo exatamente fácil, principalmente se forem utilizadas as tradicionais classificações da sociologia política. É preciso tentar entendê-lo com base na lógica da nova sociedade globalizada e em redes, que surge no contexto da revolução digital. Çom instrumentos de comunicação, pelos quais muitos falam com muitos de forma horizontal, rompendo a lógica de emissores e receptores. Rompendo a lógica de líderes e liderados. E relativizando completamente a importância das organizações intermediárias.
Entre os Anonymous, quem busca se destacar é rechaçado pelo resto da comunidade. E não há causa nobre que justifique mostrar a cara ou aparecer. No episódio do WikiLeaks, durante o processo de Julian Assange, um dos seus membros, conhecido por Coldblood, deu entrevistas a alguns veículos como BBC e Guardian falando em nome do grupo. Foi expulso.

Manifestação na internet

Richard Stallmann, o criador do movimento dos softwares livres, escreveu recentemente um artigo reproduzido no Brasil pelo O Estado de S. Paulo no qual busca explicar não só os Anonymous como os movimentos que eles realizam. No primeiro parágrafo, Stallmann já relativiza os “protestos on-line feitos pelo grupo”, que segundo ele “são equivalentes a uma manifestação na internet”, acrescentando ser “um erro classificá-los como atividade de grupos hackers (uso da astúcia brincalhona) ou de crackers (invasão de sistemas de segurança)”.
Stallmann ainda explica, por exemplo, que os manifestantes do Anonymous, quando fizeram os protestos contra a Mastercard e a Visa, não tentaram roubar dados da empresa. “Eles entram pela porta da frente de uma página, que simplesmente não é capaz de suportar tantos visitantes ao mesmo tempo.”
O ativista também sustenta que há diferenças entre os protestos na rede. Conforme Stallmann, os organizados pelo Anonymous contra a Mastercard, por exemplo, não foram “ataques de negação de serviço” (DDoS). Ataques por DDoS são realizados por meio de milhares de computadores zumbis, como aconteceu no caso da invasão da página da Presidência da República do Brasil. Neste caso, explica Stallmann, alguém invade o sistema de segurança desses computadores (com frequência, recorrendo a um vírus) e assume remotamente o controle sobre eles, programando-os para formar uma botnet (rede de zumbis, que é um sistema em que computadores aliciados desempenham automaticamente a mesma função), que atende em uníssono às suas ordens (nessa hipótese, a ordem é sobrecarregar um servidor).
No caso das manifestações do Anonymous, segundo ele, foram ativistas que fizeram com que seus próprios computadores participassem do protesto. Pode parecer uma sutil diferença, mas é imensa. São cidadãos protestando, não máquinas operadas por uma única pessoa que invadiu uma série de outras para realizar o ataque.
O professor da Universidade Federal do ABC, Sérgio Amadeu, um dos maiores especialistas em cultura digital no Brasil, concorda com Stallmann e revela que os ataques realizados contra o site da Presidência da República foram realizados por 2 mil computadores escravizados na Itália. “Assim como defendo o direito de fazer manifestação na rua, não acho que as manifestações na internet, como as do Anonymous devam ser proibidas.” Mas ao mesmo tempo, Amadeu esclarece que há métodos diferentes e às vezes utilizados pelo mesmo grupo. “O LulzSec fez uma ação contra a Sony com uma causa, um ataque supersofisticado, em defesa da liberdade na rede. No caso dos ataques aos sites do governo, porém, e principalmente ao da Presidência da República, isso só jogou contra a liberdade na rede”, avalia.
Amadeu considera que os ataques acabaram contribuindo para que o AI-5 Digital, proposto pelo deputado federal Eduardo Azeredo, ganhasse força no Congresso. E, por isso, ele não descarta a possibilidade de os ataques terem sido realizados com esse objetivo, o que é negado em entrevista por um dos membros do LuzlSec Brasil (na página 11).
No seu artigo, Stallmann ainda chama a atenção para a precariedade de direitos na internet, que, na sua opinião, é o fator motivador dessas ações. “A internet não pode funcionar se os sites forem constantemente bloqueados por multidões, assim como uma cidade não funciona se suas ruas estiverem sempre tomadas por protestos. Mas, antes de declarar seu apoio à repressão dos protestos na internet, pense no motivo de tais protestos: na internet, os usuários não têm direitos.”
Ele faz a comparação entre as condições do mundo real e do virtual para defender sua tese. “No mundo físico, temos o direito de publicar e vender livros. Quem quiser impedir a publicação do livro tem de levar o caso a um tribunal. Para criar um site na rede, porém, precisamos da cooperação de uma empresa de concessão de domínios, de um provedor de acesso à internet (ISP) e, com frequência, de uma empresa de hospedagem, e cada um desses elos pode ser individualmente pressionado a cortar o nosso acesso.” E encerra: “é como se todos nós morássemos em quartos alugados e os senhorios pudessem despejar qualquer um sem notificação prévia.”

O espaço da política 

Gabriela Coleman, pesquisadora e professora de Mídia, Cultura e Comunicação da New York University, explicou, em entrevista por e-mail à Fórum, que foram os protestos contra a Igreja da Cientologia que deram dimensão política às ações dos Anonymous. “Originalmente Anonymous era um nome usado para coordenar brincadeiras na internet. Foram os protestos contra os abusos da Igreja da Cientologia que criaram seu braço político.” Ela diz não saber calcular quantas pessoas se definem como Anonymous, mas, confirmando a entrevista de Farfalla, registra que apenas um pequeno grupo de participantes são hackers. “Esses são os programadores qualificados, pesquisadores de segurança e administradores de sistemas que se identificam como tal. Mas há um grupo muito maior que eu não descreveria como de hackers, mas, talvez, como ‘geeks’. Estes fazem edição de vídeo, design, trabalham com ferramentas de escrita colaborativa e têm bastante know-how técnico para usar o IRC. Outros participantes, talvez a maioria, não se deva qualificar nem como hackers nem como geeks. Mas, com o tempo, eles começam a aprender alguns dos códigos culturais e de alfabetização digital, que podem transformá-los em geeks.”
A professora também conta detalhes da ação do grupo contra o governo da Tunísia. “Eles começaram a ajudar os manifestantes muito antes de a mídia tradicional noticiar com qualquer profundidade os protestos que aconteciam naquele país. Em 2 de janeiro de 2011, o Anonymous abriu uma operação chamada ‘OpTunisia’, depois que o governo bloqueou, a internet e passou a oferecer ajuda aos protestos.” Colleman acrescenta que “o ‘OpTunisia’ representou mais um momento decisivo na formação política dos Anonymous como um movimento de protestos, pois as operações anteriores residiam no campo da censura à internet, e essa da Tunísia foi ativismo a favor dos direitos humanos e da democracia e atraiu um grande número de participantes”.
O sociólogo Emir Sader, que tem acompanhado as ações das novas tecnologias na política, inclusive utilizando-se de um blogue e do Twitter para fazer o debate público, destaca que um dos pontos positivos do Anonymous e de outros movimentos da internet “é que eles podem mudar certos aspectos da luta popular, estendendo e dinamizando a capacidade de mobilização e incorporando jovens”. E cita o caso do movimento no Egito como o mais notável desse tipo de mobilização. Mas, ao mesmo tempo, pondera que “se essas ações não se articulam com propostas políticas capazes de transformar em realidades suas visões, tendem a se esvaziar”.
Para defender a sua tese, o professor cita dois movimentos. O movimento dos piqueteros, na Argentina, que, mobilizado pela explosão da crise da política da paridade com o dólar, “levantou o lema ‘Que se vayan todos’ no momento das eleições”. E que decidiu não participar do processo eleitoral para preservar “a chamada autonomia dos movimentos sociais”, que, segundo Emir, “serve para a resistência, mas não para a construção de alternativas”.
Foi isso, no entendimento do professor, que levou “os piqueteros a praticamente desaparecer enquanto movimento na Argentina e que também levou os zapatistas mexicanos, que mantêm essa visão, a se limitarem a um trabalho no estado de Chiapas, perdendo qualquer dimensão nacional”. Emir diz que isso não ocorreu nem na Bolívia e nem no Equador, “onde os movimentos sociais se constituíram como forças políticas e, uma vez no governo, promoveram processos de refundação dos seus Estados”.
Em relação ao fato de o movimento se utilizar do anonimato para promover ações, Emir considera que essa é uma arma legítima “dos que lutam para criar espaços alternativos, buscando contornar aqueles que querem desqualificá-los e criminalizá-los com a pecha de ’piratas’”. Emir também defende a liberação de documentos públicos por ativistas da rede. Na sua opinião, “conforme o critério kantiano, tudo que é publico tem que ser transparente”.

A história da máscara

A máscara utilizada pelos participantes das mobilizações pelo mundo remete ao reinado de Henrique VIII, na Inglaterra, que vigorou entre 1509 a 1547. Aquele período é considerado o mais absolutista de toda a história. Henrique VIII rompeu com a Igreja Católica e passou, ele próprio, a controlar uma nova Igreja, a Anglicana. Entre seus atos está a criação da Witchcraft Act, que levava à morte as pessoas acusadas por bruxarias.
Com a morte de Henrique VIII, seus sucessores mantiveram seus métodos e, em 1603, no reinado de James I, grupos de católicos passaram a organizar conspirações na tentativa de assassinar o Rei.
A conspiração mais famosa é a da “Pólvora”, liderada por Guy Fawkes, especialista em explosivos, e que tinha o objetivo de explodir o Parlamento no dia em que o Rei fosse discursar para os lordes ingleses.
Alguns historiadores acreditam que houve uma traição dentro do movimento e outros, que, ao tentar avisar inocentes que não ficassem no prédio no dia do atentado, a notícia acabou chegando às autoridades.
Em 5 de novembro de 1605, Guy Fawkes foi preso, enforcado e esquartejado. E esse dia passou a ser conhecido, na Inglaterra, como o dia da salvação do Rei e é comemorado aos moldes da nossa “malhação de Judas”, com um boneco representando Guy Fawkes sendo espancado e queimado nas ruas.
A máscara usada nos bonecos inspirou Allan Moore a criar, nos anos 1980, o romance “V de Vingança”, no qual o personagem mascarado tenta fazer o trabalho que Guy Fawkes não havia conseguido: explodir o Parlamento inglês.
Em 2006, em uma produção que conta com os irmãos Wachowski, o filme “V For Vendetta” é lançado e recria na telona o romance de Allan Moore, mostrando um “herói” mascarado que luta contra a manipulação da mídia e do governo conservador.

Marco Biruel

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Partidos sob ataque


















O sociólogo Rudá Ricci e o cientista político Francisco Fonseca analisam os ataques feitos contra militantes partidários durante as recentes manifestações pelo Brasil


Nas últimas semanas, protestos reuniram milhares de pessoas nas ruas de cidades de todo o país. O que inicialmente era uma manifestação organizada pelo Movimento Passe Livre contra os aumentos nas tarifas do transporte público logo se transformou, insuflada pela violenta repressão policial,  em uma mobilização de massa com uma enorme variedade de causas.

Na última quinta-feira, 20, protestos ocorreram simultaneamente em 150 municípios brasileiros. Houve repressão da polícia em alguns lugares, como já vinha acontecendo nas manifestações anteriores, mas o confronto que ganhou força, especialmente em São Paulo, foi entre manifestantes que não concordavam com a presença de nenhuma bandeira de partido político nas manifestações contra manifestantes partidários. Militantes foram agredidos, bandeiras queimadas e sedes de partidos depredadas.

O Movimento Passe Livre, que foi o estopim desta grande mobilização, anunciou que não irá mais convocar novos atos devido a hostilidade contra partidos que estiveram nos protestos desde o início e pela inserção de pautas conservadores, como a redução da maioridade penal, durante as manifestações.

Para o cientista político Francisco Fonseca, a atuação de grupos de extrema direita nos protestos fez com que uma manifestação diferenciada se tornasse um motivo de preocupação. “Aquilo que nasceu como uma manifestação não tradicional, que poderia estar apontando para uma mobilização não tradicional, sobretudo dos jovens, me parece que foi rapidamente substituído por uma grande preocupação. Eu, particularmente, estou muito preocupado”, pondera.

 “O movimento que nasceu como uma organização pelo passe livre e que teve como pauta imediata a redução das tarifas, que foi vitoriosa, acabou catalisando um conjunto de outras manifestações. Uma parte delas, bastante conservadoras, que não é do passe livre, mas de um conjunto de extrema-direita, de grupos não partidários com um discurso anti institucional. Observamos a expulsão e queima de bandeiras de partidos políticos, o que mostra uma perspectiva anti institucional que lembra o pré-64. Uma crítica a democracia, uma crítica ao conflito”, analisa Fonseca.

Para ele, a extrema direita quer tumultuar as manifestações para que a repressão da polícia seja ainda maior. “Em larga medida a violência que estamos vendo é a extrema direita, que é oportunista, lembrando a Marcha da Família com Deus pela Liberdade em 1964, que quer tumultuar para que haja mais resposta violenta das polícias, para que haja um estado de sítio e as liberdades democráticas sejam encerradas. Fala-se agora no impeachment da presidenta Dilma, um golpismo aos moldes do Paraguai”, disse Fonseca.

De acordo com o sociólogo Rudá Ricci, os partidos políticos tradicionais e centrais sindicais cometeram uma série de erros por não entenderem a mobilização nas ruas, o que colaborou com os ataques contra as instituições representativas da sociedade. “Ontem, o que ficou bem claro é que os movimentos políticos tradicionais, que são os partidos políticos clássicos e centrais sindicais, cometeram um erro atrás do outro. Não estavam entendendo o que estava acontecendo. O Rui Falcão [presidente nacional do PT] cometeu um erro histórico ao propor a onda vermelha. O PT tinha que sair na rua, não tenho dúvida nenhuma, é um partido que nasceu das ruas, não podia ficar de fora. Agora, quando você, em um movimento em que as lideranças desde o começo da semana convocam as pessoas a irem de branco, de verde amarelo ou deixavam livre para ir com a roupa do corpo, lança uma onda vermelha, você está se contrapondo, indo para o embate. Ele poderia ir para o embate contra a direita, mas, ao falar de uma onda vermelha, se destingiu e ficou em minoria”, avalia. “Acho que o Rui Falcão tem de ser responsabilizado politicamente pelos 20 sindicalistas da CUT que apanharam por sair de vermelho no Rio de Janeiro. Foi uma irresponsabilidade de gente que não sabe ler as ruas”, afirmou o sociólogo.

Ricci considera ainda que existem posições distintas no ataque aos partidos políticos. Para ele, quando estas posições distintas se juntam nas ruas parecem maioria, porém, existe uma disputa entre elas dentro das manifestações. “Acho que, primeiro, existe sim uma postura fascista, inclusive de extrema direita, no ataque a todos os partidos. É uma postura que se alimenta desse neofundamentalismo que vivemos no Brasil, que é mais forte no centro sul e que estava latente no Brasil desde 2010, quando a Marina Silva cresceu com um discurso muito radical de lideranças religiosas fundamentalistas, católicas e evangélicas. Temos um segundo grupo que está de maneira oportunista tentando pegar a onda dessa manifestação, evidentemente oposicionista e crítica, para abalar as estruturas dos partidos tradicionais. O problema é que, à medida que vem radicalizando o discurso, está perdendo o controle sobre o ataque a alguns partidos, e passa a ser algo generalizado”, explica.

O sociólogo acrescenta ainda que existe um terceiro e um quarto grupos dentro desse espectro de manifestantes. “Acho que tem um terceiro agrupamento que é de gente muito desorganizada, de pessoas completamente sem cultura política, que expressam um rancor contra quem tem poder. Acham que os partidos políticos existem só para roubar e que depois de eleitos não estão nem ai. É uma postura muito ingênua. Existe ainda um quarto bloco que realmente acha que os partidos políticos não representam mais a sociedade. Ai já é uma postura mais intelectualizada. Ou seja, os partidos políticos não se fazem presentes em nada, nem nas redes sociais, eles estão ausentes. São grupos muito difusos que, quando se juntam, parece que são maioria, mas acho que ainda está ocorrendo uma disputa dentro dessas manifestações”, acredita.

O sociólogo ainda critica aqueles que acham que a mobilização social no Brasil começou somente agora e ignoram a luta histórica dos movimentos sociais “tradicionais”, muitos deles ligados ou que contam com o apoio de partidos políticos. “O Brasil do ponto de vista da ação política de massas nunca dormiu. Você tem uma história recheada. Envolvendo os jovens você tem a campanha pelas diretas, pelo impeachment do Collor, nós nunca ficamos parados. Agora, recentemente, esse pessoal que está falando que o gigante acordou, que aliás é uma expressão usada na campanha publicitária da Johnnie Walker, basta eles irem para a zona leste para eles verem que a zona leste nunca parou. O gigante lá da zona lesta e da zona sul de São Paulo sempre esteve de pé. Tanto que eles ganharam a briga pela extensão da saúde pública, a extensão da Universidade Federal de São Paulo para a zona leste. Isso é luta popular, de enfrentamento, tanto com o Kassab como com o Haddad depois da posse. Acho que esse pessoal desconhece o país. Eu até relevo porque a grande maioria nunca agiu politicamente e nunca foi em mobilização social nenhuma. Acham que o Brasil começou agora”.

Por fim, Ricci considera que atos de violência contra qualquer partido político é um ataque a democracia. “Qualquer ato violento, principalmente contra as instituições de representação, mesmo que elas não sejam tão representativas, além de desnecessário, porque você não bate em cachorro morto, é um ataque a democracia. Sem dúvida nenhuma”.