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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Como a obsessão por segurança muda a democracia



 
A segurança está entre aquelas palavras com sentidos tão abrangentes que nós nem prestamos mais muita atenção ao que ela significa. Erigido como prioridade política, esse apelo à manutenção da ordem muda constantemente seu pretexto (a subversão política, o terrorismo...), mas nunca seu propósito: governar as populações...


Giorgio Agamben

A expressão “por razões de segurança” funciona como um argumento de autoridade que, cortando qualquer discussão pela raiz, permite impor perspectivas e medidas inaceitáveis sem ela. É preciso opor-lhe a análise de um conceito de aparência banal, mas que parece ter suplantado qualquer outra noção política: a segurança.

Poderíamos pensar que o objetivo das políticas de segurança seja simplesmente prevenir os perigos, os problemas ou mesmo as catástrofes. A genealogia remonta a origem do conceito ao provérbio romano “Salus publica suprema lex” – “A salvação do povo é a lei suprema” – e, assim, a inscreve no paradigma do estado de exceção. Pensemos nosenatus consultum ultimum e na ditadura em Roma;1 no princípio do direito canônico, segundo o qual “necessitas legem non habet” (“necessidade não tem lei”); nos Comitês de Salvação Pública2 durante a Revolução Francesa; ou ainda no artigo 48 da Constituição de Weimar (1919), fundamento jurídico do regime nacional socialista, que igualmente mencionava a “segurança pública”.

Embora correta, essa genealogia não permite compreender os dispositivos de segurança contemporâneos. Os procedimentos de exceção visam uma ameaça imediata e real, que deve ser eliminada ao se suspender por um período limitado as garantias da lei; as “razões de segurança” de que falamos hoje constituem, ao contrário, uma técnica de governo normal e permanente.

Mais do que no estado de exceção, Michel Foucault3 aconselha procurar a origem da segurança contemporânea no início da economia moderna, em François Quesnay (1694-1774) e nos fisiocratas.4 Se pouco depois do Tratado de Vestfália (1648)5 os grandes Estados absolutistas introduziram em seus discursos a ideia de que a soberania deveria velar pela segurança de seus súditos, foi preciso esperar Quesnay para que a seguridade – ou melhor, a “segurança” – se tornasse o conceito central da doutrina do governo.

Seu artigo consagrado aos “Grãos” na Enciclopédia permanece, dois séculos e meio depois, indispensável para compreender o modo de governo atual. Voltaire diz que, desde que esse texto surgiu, os parisienses pararam de discutir teatro e literatura para falar de economia e agricultura... Um dos principais problemas que os governos então precisavam enfrentar era o da escassez de alimento e a fome. Até Quesnay, eles tentavam preveni-los criando celeiros públicos e proibindo a exportação de grãos. Mas essas medidas preventivas tinham efeitos negativos sobre a produção. A ideia de Quesnay foi inverter o procedimento: em vez de tentar prevenir a fome, era preciso deixá-la acontecer e, pela liberação do comércio exterior e interior, governá-la quando ocorresse. “Governar” retoma aqui seu sentido etimológico: um bom piloto – aquele que detém o governo – não pode evitar a tempestade, mas, se ela ocorre, ele deve ser capaz de dirigir seu barco.

É nesse sentido que devemos compreender a expressão atribuída a Quesnay, mas que, na verdade, ele nunca escreveu: “Laisser faire, laisser passer”. Longe de ser apenas a divisa do liberalismo econômico, ela designa um paradigma de governo que situa a segurança – Quesnay evoca a “segurança dos agricultores e trabalhadores” – não na prevenção dos problemas e desastres, mas na capacidade de canalizá-los numa direção útil.

É preciso considerar a implicação filosófica dessa inversão que perturba a relação hierárquica tradicional entre as causas e os efeitos: pois é vão, ou de qualquer modo custoso, governar as causas, é mais útil e mais seguro governar os efeitos. A importância desse axioma não é negligenciável: ele rege nossas sociedades, da economia à ecologia, da política externa e militar às medidas internas de segurança e de polícia. É ele também que permite compreender a convergência antes misteriosa entre um liberalismo absoluto na economia e um controle de segurança sem precedentes.

Tomemos dois exemplos para ilustrar essa aparente contradição. Primeiro, o da água potável. Ainda que se saiba que esta vai logo faltar numa grande parte do planeta, nenhum país segue uma política séria para evitar seu desperdício. Ao contrário, vê-se se desenvolverem e se multiplicarem, nos quatro cantos do globo, as técnicas e usinas para o tratamento de águas poluídas – um mercado considerável no futuro.

Segundo exemplo. Consideremos no presente os dispositivos biométricos, que são um dos aspectos mais inquietantes das tecnologias de segurança atuais. A biometria surgiu na França na segunda metade do século XIX. O criminologista Alphonse Bertillon (1853-1914) se apoiaria na fotografia signalética e nas medidas antropométricas para constituir seu “retrato falado”, que utiliza um léxico padronizado para descrever os indivíduos numa ficha com seus sinais. Pouco depois, na Inglaterra, um primo de Charles Darwin e grande admirador de Bertillon, Francis Galton (1822-1911), desenvolveu a técnica das impressões digitais. Esses dispositivos, evidentemente, não permitem prevenir os crimes, mas perseguir criminosos reincidentes. Encontramos aqui ainda a concepção de segurança dos fisiocratas: é apenas com o crime cometido que o Estado pode intervir com eficácia.

Pensadas para os delinquentes recidivos e os estrangeiros, as técnicas antropométricas permaneceram por muito tempo privilégio exclusivo deles. Em 1943, o Congresso dos Estados Unidos recusou o Citizen Identification Act (Ato de Identificação do Cidadão), que visava dotar todos os cidadãos de carteiras de identidade com suas impressões digitais. Foi apenas na segunda metade do século XX que elas se generalizaram. Mas a última novidade aconteceu há pouco tempo. Os scanners ópticos, que permitem revelar rapidamente as impressões digitais e também a estrutura da íris, fizeram os dispositivos biométricos sair das delegacias de polícia para ancorar na vida cotidiana. Em certos países, a entrada nas cantinas escolares é controlada por um dispositivo de leitura óptica sobre o qual a criança pousa a mão distraidamente.

Leis mais severas que no fascismo

Preocupações se acumulam sobre os perigos de um controle absoluto e sem limites por parte de um poder que disporia de dados biométricos e genéticos de seus cidadãos. Com essas ferramentas, o extermínio dos judeus (ou qualquer outro genocídio imaginável), baseado numa documentação incomparavelmente mais eficaz, teria sido total e extremamente rápido. Em matéria de segurança, a legislação hoje em vigor nos países europeus é, em certos aspectos, sensivelmente mais severa do que a dos Estados fascistas do século XX. Na Itália, um texto único das leis sobre segurança pública (Testo Unico delle Leggi di Pubblica Sicurezza, Tulsp) adotado em 1926 pelo regime de Benito Mussolini está, no essencial, ainda em vigor; mas as leis contra o terrorismo votadas durante os “anos de chumbo” (de 1968 ao início dos anos 1980) restringiram sensivelmente as garantias nele contidas. Como a legislação francesa contra o terrorismo é ainda mais rigorosa que sua homóloga italiana, o resultado de uma comparação com a legislação fascista não seria muito diferente.

A crescente multiplicação de dispositivos de segurança testemunha uma mudança na conceituação política, a ponto de podermos legitimamente nos perguntar não apenas se as sociedades em que vivemos ainda podem ser qualificadas de democráticas, mas também e acima de tudo se elas ainda podem ser consideradas sociedades políticas.

No século V a.C., como demonstrou o historiador Christian Meier, uma transformação do modo de conceber a política já tinha se produzido na Grécia, por meio da politização (Politisierung)da cidadania. Uma vez que o pertencimento à cidade (a polis) era até então definido pelo estatuto e pela condição – nobres e membros das comunidades culturais, agricultores e comerciantes, senhores e clientes etc. –, o exercício da cidadania política se tornou um critério da identidade social. “Cria-se assim uma identidade política especificamente grega, na qual a ideia de que os indivíduos devem se conduzir como cidadãos encontra uma forma institucional”, escreve Meier. “O pertencimento a grupos constituídos com base nas comunidades econômicas ou religiosas foi relegado a segundo plano. À medida que os cidadãos de uma democracia se dedicavam à vida política, eles compreendiam a si mesmos como membros da polisPolis epoliteia, cidadee cidadania, se definem reciprocamente. A cidadania se torna assim uma atividade de uma forma de vida para aqueles para quem a polis, a cidade, constituía um domínio claramente distinto de oikos, a casa. A política se tornou um espaço público livre, oposto enquanto tal ao espaço privado onde reinava a necessidade.”6 Segundo Meier, esse processo de politização especificamente grego foi transmitido como herança à política ocidental, na qual a cidadania permaneceu – com altos e baixos, certamente – o fator decisivo.

É precisamente esse fator que hoje está se revertendo de modo progressivo: trata-se de um processo de despolitização. Antes limiar da politização ativa e irredutível, a cidadania se tornou uma condição puramente passiva, em que a ação ou a inação, o público e o privado se desvanecem e se confundem. O que se concretizava por uma atividade cotidiana e uma forma de vida se limita hoje a um estatuto jurídico e ao exercício de um direito de voto cada vez mais parecido com uma pesquisa de opinião.

“Todo cidadão é um terrorista potencial”

Os dispositivos de segurança têm desempenhado um papel decisivo nesse processo. A extensão progressiva a todos os cidadãos das técnicas de identificação outrora reservadas aos criminosos inevitavelmente afeta a identidade política. Pela primeira vez na história da humanidade, a identidade não é mais função da “pessoa” social e de seu reconhecimento, do “nome” e da “nominação”, mas de dados biológicos que não podem manter nenhuma relação com o sujeito, como os rabiscos sem sentido que meu polegar molhado de tinta deixou sobre a folha de papel ou a inscrição de seus genes na dupla hélice do DNA. O fato mais neutro e mais privado se torna assim o veículo de identidade social, removendo seu caráter público.

Se critérios biológicos, que em nada dependem da minha vontade, determinam minha identidade, então a construção de uma identidade política se torna problemática. Que tipo de relação eu posso estabelecer com minhas impressões digitais ou com meu código genético? O espaço da ética e da política que estamos acostumados a conceber perde seu sentido e exige ser repensado a partir do zero. Enquanto a cidadania grega se definia pela oposição entre o privado e o público, a casa (sede da vida reprodutiva) e a cidade (lugar do político), a cidadania moderna parece evoluir numa zona de indiferenciação entre o público e o privado, ou, para tomar emprestadas as palavras de Thomas Hobbes, entre o corpo físico e o corpo político.

Essa indiferenciação se materializa na videovigilância das ruas em nossas cidades. Tal dispositivo conheceu o mesmo destino que o das impressões digitais: concebido para prisões, ele tem sido progressivamente estendido para os lugares públicos. Um espaço videovigiado não é mais uma ágora, não tem mais nenhuma característica pública; é uma zona cinzenta entre o público e o privado, a prisão e o fórum. Tal transformação tem uma multiplicidade de causas, entre as quais o desvio do poder moderno em relação à biopolítica ocupa lugar especial: trata-se de governar a vida biológica dos indivíduos (saúde, fecundidade, sexualidade etc.), e não mais apenas exercer uma soberania sobre o território. Esse deslocamento da noção de vida biológica para o centro da vida política explica o primado da identidade física sobre a identidade política.

Mas não podemos esquecer que o alinhamento da identidade social com a corporal começou com a preocupação de identificar os criminosos recidivos e os indivíduos perigosos. Portanto, não é surpreendente que os cidadãos, tratados como criminosos, acabem por aceitar como evidente que a relação normal entre o Estado e eles seja a suspeita, o fichamento e o controle. O axioma tácito, que é preciso aqui arriscar a anunciar é: “Todo cidadão – enquanto ser vivente – é um terrorista potencial”. Mas o que é um Estado, o que é uma sociedade regida por tal axioma? Podem ainda ser definidos como democráticos ou mesmo como políticos?

Em seus cursos no Collège de France e também em seu livro Vigiar e punir,7 Foucault esboça uma classificação tipológica dos Estados modernos. O filósofo mostra como o Estado do Antigo Regime, definido como um Estado territorial ou de soberania, cuja divisa era “fazer morrer e deixar viver”, evoluiu progressivamente para um Estado de população em que a população demográfica substitui o povo político e para um Estado de disciplina, cuja divisa se inverte em “fazer viver e deixar morrer”: um Estado que se ocupa da vida dos sujeitos para produzir corpos sãos, dóceis e disciplinados.

O Estado em que vivemos hoje na Europa não é um Estado de disciplina, mas – segundo a expressão de Gilles Deleuze – um “Estado de controle”: ele não tem por objetivo ordenar e disciplinar, mas gerir e controlar. Depois da violenta repressão das manifestações contra o G8 de Gênova, em julho de 2001, um funcionário da polícia italiana declarou que o governo não queria que a polícia mantivesse a ordem, mas gerasse a desordem. Por sua vez, os intelectuais norte-americanos que tentaram refletir sobre as mudanças constitucionais induzidas pelo Patriot Act (Lei Patriótica) e a legislação pós-11 de Setembro8 preferem falar de “Estado de segurança” (security State). Mas o que quer dizer “segurança” aqui?

Durante a Revolução Francesa, essa noção estava implicada com aquela de polícia. A lei de 16 de março de 1791 e depois a de 11 de agosto de 1792 introduziram na legislação francesa a ideia, que teria uma longa história na modernidade, de “polícia de segurança”. Nos debates precedentes à adoção dessas leis, parecia claro que polícia e segurança se definiam reciprocamente; mas os oradores – entre os quais Armand Gensonné, Marie-Jean Hérault de Séchelles, Jacques Pierre Brissot – não foram capazes de definir nem uma coisa nem outra. As discussões se mantiveram essencialmente nas relações entre a polícia e a justiça. Segundo Gensonné, trata-se de “dois poderes perfeitamente distintos e separados”; e, portanto, enquanto o papel do Poder Judiciário é nítido, o da polícia parece impossível de definir.

A análise do discurso dos deputados mostra que o lugar da polícia é impossível de ser decidido, e deve continuar assim, pois se estivesse inteiramente absorvida pela justiça a polícia não poderia mais existir. É a famosa “margem de apreciação” que ainda hoje caracteriza a atividade do agente de polícia: em relação à situação concreta que ameaça a segurança pública, ele age com soberania. Fazendo assim, não decide nem prepara – como se diz erroneamente – a decisão do juiz: toda decisão implica causas e a polícia intervém sobre os efeitos, isto é, sobre algo que não pode ser decidido.

Esse não decidido não se chama mais, como no século XVII, de “razão de Estado”, mas de “razões de segurança”. O security State é, portanto, um Estado de polícia, mesmo que a definição de polícia constitua um buraco negro na doutrina do direito público: quando no século XVIII surgiu na França o Traité de la police, de Nicolas de La Mare, e na Alemanha a Gesamte Policey-Wissenschaft, de Johann Heinrich Gottlob von Justi, a polícia foi reduzida à sua etimologia de politeia e tende a designar a política verdadeira, indicando o termo “política” nessa época apenas a política externa. Von Justi nomeia assim Politik a relação de um Estado com os outros e Polizei a relação de um Estado consigo mesmo: “A polícia é a relação de força de um Estado consigo mesmo”.

Ao se colocar sob o signo da segurança, o Estado moderno deixa o domínio da política para entrar numa no man’s land em que mal se percebem a geografia e as fronteiras e para a qual nos falta conceituação. Esse Estado, cujo nome remete etimologicamente a uma ausência de preocupação (securus: sine cura), nos deixa ainda mais preocupados com os perigos a que ele expõe a democracia, já que a via política se tornou impossível; pois democracia e vida política são – ao menos em nossa tradição – sinônimos.

Diante de tal Estado, é preciso repensar as estratégias tradicionais de conflito político. No paradigma securitário, todo conflito e toda tentativa mais ou menos violenta de reverter o poder oferecem ao Estado a oportunidade de administrar os efeitos em interesse próprio. É isso que mostra a dialética que associa diretamente terrorismo e reação do Estado numa espiral viciosa. A tradição política da modernidade pensou nas transformações políticas radicais sob a forma de uma revolução que age como o poder constituinte de uma nova ordem constituída. É preciso abandonar esse modelo para pensar mais numa potência puramente destituinte, que não fosse captada pelo dispositivo de segurança e precipitada na espiral viciosa da violência. Se quisermos interromper o desvio antidemocrático do Estado securitário, o problema das formas e dos meios de tal potência destituinte constitui a questão política essencial que nos fará pensar durante os próximos anos. 



1  Em casos graves, a República romana previa a possibilidade de confiar, de modo excepcional, plenos poderes a um magistrado (o ditador).
2  Comitês que deviam proteger a República contra os perigos de invasão e da guerra civil.
3  Michel Foucault, Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France (1977-1978)[Segurança, território e população. Curso no Collège de France (1977-1978)], Gallimard/Seuil, Paris, 2004.
4  A fisiografia baseia o desenvolvimento econômico na agricultura e defende a liberdade do comércio e da indústria.
5  O Tratado de Vestfália encerrou a Guerra dos Trinta Anos opondo o campo dos Habsburgos, apoiados pela Igreja Católica, e os Estados alemães protestantes do Sacro Império. Ele inaugura uma ordem europeia fundada nos Estados-nação.
6  Christian Meier, “Der Wandel der politisch-sozialen Begriffswelt im V Jahrhundert v.Chr.”. In: Reinhart Koselleck (org.), Historische Semantik und Begriffsgeschichte, Klett-Cotta, Stuttgart, 1979.
7  Michel Foucault, Surveiller et punir [Vigiar e punir], Gallimard, Paris, 1975.
8 Ler Chase Madar, “Recrudescimento do aparato de segurança norte-americano”, Le Monde Diplomatique Brasil, out. 2012.
Giorgio Agamben é filósofo

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Amigos abastecidos

 
Hidrelétrica
 
 
 
Na Sabesp, programa de redução de perda de água é um filão para ex-diretores da empresa e apadrinhados do PSDB 
 
 
O abastecimento de água em mais de 80 cidades paulistas dependentes do Sistema Cantareira está à beira do colapso. Os números são claros e a conta não fecha: o sistema recebe hoje de seus afluentes apenas 10 metros cúbicos de água por segundo, mas envia 33,9 metros cúbicos por segundo, ou três vezes mais do que produz, para parte da Grande São Paulo e cidades da região de Campinas. O resultado é uma represa agonizante, com apenas 18,2% de sua capacidade, e o risco de racionamento iminente.
A situação era previsível e o governo de São Paulo, comandado há 20 anos pelo PSDB, havia sido alertado da necessidade de novas fontes de captação. A entrega da principal delas, o Sistema São Lourenço, está atrasada em dois anos. Ao contrário do que pensam os gestores mais bem preparados, o governador Geraldo Alckmin parece esquecer que as políticas públicas de abastecimento de água, em especial num país com tamanha reserva hídrica, dependem muito mais de um planejamento sério e eficiente do que do regime de chuvas.
Chama atenção nesse cenário o comportamento da Sabesp. Responsável por delinear e estruturar as ações relacionadas ao abastecimento de água, a Sabesp não só deixou de viabilizar novos meios de captação como conseguiu aumentar o desperdício no trajeto entre as fontes de captação existentes, incluído o Sistema Cantareira, e o consumidor.
Uma análise dos contratos assinados para execução de serviços relacionados aos programas de “Redução de Perdas” e “Uso Racional da água” expõe a promiscuidade entre o órgão público e empresas do setor de saneamento ligadas a ex-diretores da estatal. Além disso, as contratações sugerem uma explicação para o fato de, entre 2008 e 2013, período em que recebeu 1,1 bilhão de reais, o programa de perdas não ter alcançado sua meta de 30,6% de perdas reais e, ainda, ter realizado a façanha de piorar os índices da estatal: as perdas chegaram a 30,7% em 2011, alcançaram 32,1%, em 2012, e estacionaram nos 31,2%, em 2013. O que se perde no caminho entre a represa e a torneira dos consumidores daria para abastecer a cidade de Campinas, de 1,1 milhão de habitantes, que quase entrou em racionamento nos últimos dias. O padrão de países desenvolvidos fica abaixo dos 20%.
Vamos aos fatos, todos públicos, registrados em atas de pregões, relatórios do Tribunal de Contas do Estado e na Junta Comercial de São Paulo. Em 2 de fevereiro de 2010 a Sabesp encerrou uma licitação para “prestação de serviços técnicos especializados e de engenharia para o gerenciamento e assistência técnica do programa de redução de perdas” no valor de 30 milhões de reais. Sagrou-se vencedor do certame e responsável por gerenciar as ações entre 2010 e 2013, o consórcio formado pelas empresas BBL Engenharia, Gerentec Engenharia e Logos Engenharia.
Os personagens dessa contratação são, pela ordem, Gésner de Oliveira, à época presidente da Sabesp por indicação do então governador José Serra (PSDB). Atualmente, Oliveira ocupa o cargo de conselheiro na Miya Brasil, braço da multinacional Miya Group, que tem sede no paraíso fiscal de Luxemburgo e atua no Brasil como principal acionista da mesma BBL Engenharia, vencedora da licitação.
Por sua vez, a BBL tem como sócio-administrador o engenheiro Luiz Ernesto Suman, ex-diretor da Sabesp. Outro diretor egresso da BBL, Nilton Seuaciuc, fundou a Vitalux Eficiência Energética, especializada na redução de perda de água. Até 2006, quando Seuaciuc era diretor da empresa, a Vitalux havia firmado dois contratos com a Sabesp no valor de 6,7 milhões de reais. Em 2007, Seuaciuc passa a integrar os quadros da estatal, onde fica até fevereiro de 2011. Nesse meio-tempo, os contratos entre a Vitalux e a Sabesp aumentam 250% e alcançam 23,6 milhões de reais. Ao sair da estatal, Seuaciuc retornou à Vitalux e permanece lá até hoje. A Vitalux recebeu ao menos 6 milhões do programa de uso racional da água.
Sobre a segunda integrante do consórcio, a Gerentec Engenharia: desde 1995, a empresa tem como sócio Umberto Semeghini, primo do secretário de Planejamento e Desenvolvimento Regional do estado de São Paulo, Julio Semeghini. Em 2007, Umberto deixou o quadro societário da empresa após ser convidado para ocupar a diretoria de Sistemas Regionais da Sabesp.
Quando diretor da estatal, de 2007 a janeiro de 2011, sua ex-empresa saltou dos 40 milhões de reais em contratos firmados com a Sabesp nos dez últimos anos para 115 milhões reais abocanhados dos cofres públicos paulistas. Aumento de 187%.
Em abril de 2011, dois meses após deixar a Sabesp, Semeghini retornou à sua antiga empresa, agora com o dobro do capital social. O valor saiu de 2,3 milhões para 5 milhões de reais. Além de parte dos 30 milhões do contrato para gerenciamento do programa de perdas, a Gerentec recebeu ao menos 14 milhões de reais do programa de uso racional de água.
Antes de mirarmos a terceira integrante do consórcio, paremos no então diretor de Tecnologia, Empreendimentos e Meio Ambiente da Sabesp, Marcelo Salles Holanda de Freitas, signatário pela estatal do contrato de gerenciamento do programa de perdas. O engenheiro possui um extenso histórico de relação com a estatal e empresas do setor de saneamento. Entre 2004 e 2007, foi sócio da Estudos Técnicos e Projetos Etep Ltda. Deixou a consultoria para, assim como Semeghini e Seuaciuc, assumir uma diretoria da estatal no governo Serra. A Etep venceu contratos no programa de redução de perdas e uso racional de água, entre 2006 e 2013, no valor de 43 milhões de reais.
Enquanto Freitas era sócio da empresa, a Etep havia firmado 8,1 milhões de reais em contratos com a Sabesp, de forma direta ou por meio de consórcios. Após ele assumir o cargo público, entre 2007 e 2010, o valor saltou para 185,4 milhões de reais, ou 2.000% de aumento.
Dos tempos de Sabesp, Freitas leva também o relacionamento próximo com empresas prestadoras de serviços da estatal. Em seu gabinete empregava como assessora Marisa de Oliveira Guimarães, esposa de Alceu Guéiros Bittencourt, proprietário da Companhia Brasileira de Projetos e Empreendimentos (Cobrape). A empresa especializada em consultoria de projetos ganhou cerca de 75 milhões de reais em contratos da estatal no período em que Freitas foi diretor. Somente dos programas de redução de perdas e uso racional de água, entre 2006 e 2013, a Cobrape embolsou ao menos 36 milhões de reais.
Da passagem pela estatal, Freitas ainda responde como denunciado em ação proposta pelo Ministério Público na qual ele e duas empresas são instados a devolver 318 milhões de reais referentes a fraudes em uma licitação da estatal na Baixada Santista.
Em 2011, com o retorno de Freitas ao setor privado, algumas mudanças ocorreram. Sua antiga empresa, a Etep, uniu-se à terceira integrante do consórcio vencedor do gerenciamento do programa de perdas, a Logos Engenharia, para formar a Arcadis Logos S/A. A nova empresa tornou-se responsável pelo gerenciamento da redução de perdas. Venceu, em consórcio com uma companhia japonesa, a licitação de 91 milhões de reais encerrada em janeiro de 2014 e ficará responsável por nortear o programa pelos próximos quatro anos.
Além disso, em seu quadro de diretores, a Arcadis Logos possui mais dois personagens. O primeiro é o engenheiro Lineu Rodrigues Alonso. Ex-diretor da Sabesp, Alonso havia sido sócio de Freitas na Etep e, após sua incorporação à Arcadis Logos, continuou com a sociedade, mas agora em uma empresa do setor imobiliário, a Metaimob Empreendimentos, com capital de 7 milhões de reais.
O outro é o filho do deputado estadual tucano Roberto Engler. Ricardo Figueiredo Engler Pinto integra o quadro de diretores da Arcadis Logos e, a partir deste ano, será responsável por gerenciar o programa que nos últimos anos desperdiçou 1,1 bilhão de reais sem conseguir alcançar um índice de eficiência condizente com a importância da Sabesp e dos serviços prestados.
Em respostas a CartaCapital, a Sabesp informou que todos seus diretores, antes de serem contratados, assinam um termo no qual afirmam não ter interesses conflitantes com o cargo. As empresas citadas negam qualquer tipo de relação entre seus diretores, a estatal e uma possível influência na assinatura de contratos.
Sobre o aumento nas perdas, a estatal disse utilizar outros métodos de averiguação do índice e que, independentemente do parâmetro utilizado, os números caíram desde 2004. Não é o que informa a agência reguladora responsável pela divulgação dos números citados na reportagem.
Nesse cenário, aos cidadãos paulistas resta acreditar que as relações entre a estatal e seus ex-diretores são fruto apenas do acaso e da ação de forças superiores. Quem sabe, assim como pensa o governo sobre as causas do iminente racionamento, essas relações não dependam da vontade e da ação dos homens, mas sim de Deus.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A utopia de Morus

por Frei Betto, em ADITAL

João Paulo II consagrou, em 2000, o inglês Thomas Morus (1478-1535) padroeiro dos políticos. Fez boa escolha, considerada a ambiguidade da maioria dos políticos. Canonizado em 1935 pelo papa Pio XI e pouco conhecido por sua suposta santidade, Morus é famoso por ser autor de um livro clássico, Utopia (1516), termo que cunhou a partir do grego utopos, que significa ‘lugar nenhum’.
Morus inspirou-se em Luciano, satírico grego do século II, autor de História verdadeira, e em Erasmo, de quem era amigo, autor de Elogio da loucura (1511), que em carta enviada a Morus afirmou que "gracejos podem levar a algo mais sério.” É o que faz a boa literatura de nosso Veríssimo.

Em sua obra, Morus descreve a comunidade de uma ilha onde não havia dinheiro nem propriedade privada; admitiam-se adoradores do Sol e da Lua. "Todos eram livres para praticar a religião que bem entendessem, e tentar converter as outras pessoas para a sua própria fé, desde que o fizessem tranquila e educadamente, por meio de argumento racional.”

Tinha o autor por objetivo protestar contra as injustiças da Inglaterra de sua época: pobreza generalizada, criminalidade (e apelos à redução da maioridade penal…), pena de morte para quem furtava para matar a fome. "Vocês ingleses” - diz o narrador da Utopia -, "me fazem lembrar os professores incompetentes, que preferem reprovar os seus alunos que ensinar-lhes. Em vez de infligir essas punições horríveis, seria muito mais adequado proporcionar a todos algum meio de sobrevivência, de modo que ninguém se encontrasse sob a horripilante necessidade de se tornar, primeiramente, um ladrão, e depois um cadáver.”

Na ilha de Morus "todos recebem uma porção justa, de modo a não haver jamais pobres ou mendigos. Ninguém é proprietário de nada, mas todos são ricos – afinal, que riqueza maior pode haver que a alegria, a paz de espírito e estar livre da angústia?”

Dois fatores fizeram Morus renegar suas antigas ideias: a Reforma de Lutero e a sua nomeação a funcionário real, em 1518. Picado pela mosca azul, o poder lhe subiu à cabeça. Logo foi promovido a "conselheiro teológico” e, em 1529, nomeado Lorde Chanceler de Henrique VIII.

O que ele antes via como desejável, agora que chegara ao poder lhe parecia perigoso. Preferiu esquecer o que pregou e escreveu. Embora a comunidade da Utopia assemelhe-se ao comunismo, Morus, inimigo da Reforma, passou a atacar a vida comum dos anabatistas como terrível heresia, e tomou a defesa dos ricos proprietários de terras.

Lorde Morus proibiu mais de cem livros, perseguiu quem não professava a fé católica, entre os quais o teólogo protestante William Tyndale, que traduziu a Bíblia para o inglês. Segundo seu biógrafo, John Guy, Morus aplicava severamente as leis que decretava: "Vendedores de livros eram multados e presos, e seus estoques de literatura herética queimados em praça pública”, e eles obrigados a desfilar em feiras livres, cavalgando de costas, para que o povo lhes atirasse frutas podres.

No epitáfio que cunhou para si mesmo, Morus afirmava orgulhoso ter sido um "perseguidor de ladrões, assassinos e hereges”. O último termo foi suprimido na reforma de seu túmulo, no século XIX.
Em 1533, Henrique VIII separou-se de Catarina de Aragão, apaixonado que estava por Ana Bolena. Como Roma lhe negou a anulação do casamento, a fim de legalizar seu divórcio e sacramentar o novo matrimônio perante a Igreja, o rei transferiu para si a autoridade do papa e fundou a Igreja Anglicana. Por se recusar a aceitar Ana Bolena como rainha da Inglaterra e ficar do lado do papa Clemente VII, que excomungou Henrique VIII, Morus foi decapitado em 1535.

O poder é antiutópico ou distópico por natureza? Por que, hoje, tantos que outrora elevavam sua voz contra a exploração do capital e desfraldavam bandeiras progressistas, de leões bravios tornaram-se dóceis cordeiros do rebanho neoliberal?

Penso que o poder, devido às premências do presente, faz com que se perca a visão de futuro. E como o poderoso tende a perpetuar-se no cargo (vide as velhas raposas da política brasileira), procura reduzir o processo histórico a seu momento pessoal. Julga-se início e fim, sem consciência de que não passa de mediador (meio) de um mandato popular.

Daí o risco de transformar-se numa figura ridícula, sem honra biográfica, mera caricatura de suas ambições desmedidas. Em sua pobre topia, não há mais lugar para a utopia.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Conheça Leopoldo López, o líder que prega o golpe na Venezuela

“Arrogante e sedento de poder”. Conheça Leopoldo López, radical ligado ao setor petroleiro que está tentando o golpe na Venezuela

leopoldo lópez venezuela golpe
Leopoldo López, o conservador radical que prega o golpe na Venezuela (Divulgação)

O perfil é o de um típico mauricinho do Leblon. Ou dos Jardins. Um coxinha – como se costuma dizer agora. Só que um coxinha perigoso. Leopoldo Lopez é criticado até por setores da oposição – por ter decidido sozinho chamar os jovens às ruas pra derrubar o governo eleito da Venezuela. Henrique Capriles, o outro líder da oposição, quer usar as ferramentas legais para derrotar o chavismo. Lopez quer o golpe.
Ele teve prisão decretada. Os EUA pressionam para que não seja detido. Por que? Lopez é apontado como homem de confiança, na Venezuela, do ex-presidente colombiano Alvaro Uribe – de extrema-direita.
Ex-prefeito do munícipio de Chacao (2000-2008), López, de 43 anos, vem de uma das familias da elite venezuelana, ligada ao setor industrial e petroleiro.
A definição acima está em reportagem produzida não por algum jornal chavista, mas pelo site da britânica BBC. Confira a seguir:
por Claudia Jardim, na BBC Brasil
Popular, carismático, imprevisível, arrogante e sedento de poder. Essas são algumas das características que analistas e líderes políticos costumam usar para definir Leopoldo López, o mais novo inimigo público do governo venezuelano de Nicolás Maduro.
Referência da ala radical da oposição venezuelana, López está sendo procurado pela Justiça venezuelana. A polícia chegou a fazer buscas em sua casa neste domingo, mas ele não estava lá.
O opositor não é visto em público desde quarta-feira, quando milhares de estudantes sairam às ruas, liderados por ele, para exigir uma mudança de governo.
No entanto, ele divulgou um vídeo neste domingo, dizendo ser inocente e desafiando as autoridades a prendê-lo durante uma marcha que ele convocou para a terça-feira.
“Não tenho nada que temer, não cometi nenhum delito, sou um venezuelano comprometido com nosso país, como nosso povo. Se há alguma decisão legal de me prender, estarei pronto para assumir essa perseguição e essa decisão infame por parte do estado”, disse.
Ele é acusado de ser o autor intelectual da onda de protestos violentos que tomou a capital do país nos últimos dias. As marchas se tornaram mais violentas na quarta-feira, quando três homens foram mortos durante um protesto contra o governo. Maduro acusa López de incitar a violência, enquanto a oposição afirma que os homens foram assassinados por milícias pró-governo.
“López ordenou que todos esses jovens violentos, treinados por ele, destruíssem metade de Caracas e então resolveu se esconder”, disse o presidente. “Se entregue, seu covarde!”

‘Golpe’

López se converteu na mais nova dor de cabeça do ex-candidato presidencial e governador Henrique Capriles – líder do setor moderado da coalizão opositora – desde que decidiu colocar em prática o plano chamado “A saída”. Apoiado pelo movimento estudantil, o plano consiste em intensificar a onda de protestos no país até levar o presidente à renúncia.
“Ainda acreditam que devemos esperar até 2019 (fim do mandato de Maduro) para sair deste regime?”, questionou López, em seu perfil no Twitter, ao convocar os protestos.
Essa declaração foi interpretada pelo governo como um chamado a um golpe de Estado.
A escalada de violência que tem marcado o tom dos protestos nos últimos dias preocupa aos “moderados” da oposição. Um dos membros da Mesa de Unidade Democrática (MUD) afirmou à BBC Brasil que o setor moderado da oposição tentou dissuadir López de sua “aventura” com os estudantes.

Ambições pessoais

Conservador, vinculado aos partidos de direita da região, López é visto como um “maverick” – jargão político para definir quem desobedece as linhas do partido – na avaliação do analista político Carlos Romero, professor da Universidade Central da Venezuela. “López tem um estilo muito personalista, pouco institucional. Ele está sempre em permanente busca de protagonismo”, afirmou Romero.
A seu ver, a polêmica decisão de levar a população às ruas para promover uma mudança de governo é uma manobra que tem como objetivo “ambições pessoais”, mas que pode levar à crise toda a coalizão opositora. “Leopoldo é um dirigente que neste momento está promovendo danos importantes à oposição democrática”, afirmou.
Sua habilidade em promover rupturas entre aliados políticos também foi destacada com preocupação por um conselheiro político da embaixada dos Estados Unidos em Caracas. Em documento desclassificado de 2009 vazado pelo Wikileaks, Robin D. Meyer, qualificou a López como uma “figura divisora da oposição, arrogante, vingativo e sedento de poder”, diz o documento que tinha como enunciado “O problema Leopoldo”.
A historiadora Margarita López Maya caracteriza a López como um político “audaz, ambicioso e carismático”. Em sua opinião, ele é capaz de capitalizar os anseios da juventude que não vê saídas, se não o protesto, como mecanismo de pressão para debilitar o chavismo.
“Levá-lo prisão seria convertê-lo em um mártir e ele seria catapultalo a uma candidatura presidencial”, avaliou a historiadora.
Entre os jovens que estão protestando nas ruas, López é visto como um ícone da rebelião anti-chavista e um potencial presidenciável. “Se ele for preso, o movimento estudantil irá às ruas defender sua liberdade. Compartilhamos com ele a visão de que é preciso mudar esse governo. Vamos continuar nas ruas até a renúncia do presidente”, afirmou à BBC Brasil o dirigente estudantil Daniel Alvarez.

Carreira

Ex-prefeito do munícipio de Chacao (2000-2008), López, de 43 anos, vem de uma das familias da elite venezuelana, ligada ao setor industrial e petroleiro.
Como prefeito, participou ativamente dos protestos que culminaram no golpe de Estado que derrocou brevemente o governo Chávez. Desde então, não pode se desvincular do rotulo de “golpista”, atribuido pelo governo e seus seguidores.
Em 2008, uma acusação de mau uso de recursos públicos, como prefeito de Chacao, fez com que o político fosse inabilitado politicamente pela justiça da Venezuela. Essa decisão do tribunal, impediu que lider opositor se projetasse como potencial candidato presidencial.
Formado em Harvard, sua carreira politica começou no partido Primeira Justiça, o mesmo de Capriles. Um racha interno o levou a abandonar o grupo. Ele então se filiou ao partido conservador Um Novo Tempo, onde permaneceu pouco tempo, até fundar seu atual partido Voluntad Popular.
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/02/conheca-leopoldo-lopez-o-lider-que-prega-o-golpe-na-venezuela.html

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Como o Uruguai pode inspirar o Brasi

Plano Ceibal, que levou notebooks a 300 mil alunos de escolas públicas uruguaias, estimula a inclusão digital e o uso da tecnologia a favor da educação 

Por Priscila Gonsales*, do PorVir

“Antes do Ceibal, somente 5% das famílias de baixa renda tinham acesso a computador e internet. Seis anos depois, esse índice subiu para 80%, praticamente o mesmo encontrado nas famílias mais ricas” 

(Foto: Miro Novak / Fotolia.com)

Com o objetivo claro de reduzir a desigualdade digital da população, o Uruguai foi o primeiro país da América Latina a entregar computadores portáteis para cada um dos 300 mil alunos de ensino fundamental e médio das 2,3 mil escolas públicas de seu território. Batizada de Plano Ceibal, a iniciativa surgiu em 2007, inspirada na proposta da ONG One Laptop per Child (Um Computador por Aluno), fundada pelo pesquisador do MIT Nicholas Negroponte. Todas as escolas têm conexão à internet , as máquinas são substituídas a cada quatro anos e o país vem aumentando a quantidade de centros comunitários de acesso ou wifi aberto.
Antes do Ceibal, somente 5% das famílias de baixa renda tinham acesso a computador e internet. Seis anos depois, esse índice subiu para 80%, praticamente o mesmo encontrado nas famílias mais ricas. Estudo das Nações Unidas aponta o vizinho sul-americano como o primeiro no ranking de inclusão digital e transparência governamental (a Lei de Acesso à Informação Pública foi promulgada em 2008). É também o mais bem posicionado do continente no Índice de Desenvolvimento de Tecnologias da Informação e Comunicação e o que oferece maior velocidade de banda larga por uma tarifa mais baixa.
Entre os dias 17e 19 de outubro de 2013, o Ministério da Educação uruguaio realizou em Montevidéu a segunda edição do Expo Aprende Ceibal, um encontro para compartilhar experiências educativas e debater os principais temas que desafiam o trabalho pedagógico com tecnologias digitais. Convidada como especialista em educação e cultura digital, já conhecia bem a iniciativa, mas mesmo assim me surpreendi com a qualidade do envolvimento de professores e alunos ali presentes, que não vieram só para ouvir, mas principalmente, para apresentar suas práticas e debater sobre elas.
No pátio central do belíssimo auditório Sodre, centenas de pôsteres de experiências com seus respectivos autores – professores e alunos – davam vida a um espaço que tradicionalmente nos congressos educacionais é ocupado por grandes estandes de empresas de tecnologia e companhias editoriais com seus produtos à venda.
Em sua fala, ao final do primeiro dia do evento, Miguel Brecher, presidente do Ceibal, foi breve e conciso: “A tecnologia mudou muito nossa vida, mas não mudou a educação. A tecnologia chegou na educação para atender o que os vendedores da tecnologia queriam e não o que nós, educadores, queríamos”. E completou: “O desafio não só do Uruguai, mas de todos os países do mundo é adaptar a tecnologia à educação – e educação não significa só absorver conteúdos, mas educar para a vida, para compartilhar nosso conhecimento com toda a sociedade”.
A concepção pedagógica de uso da tecnologia que sustenta o Ceibal é ousada e totalmente distante da visão tradicional. Não se trata de substituir os materiais analógicos pelos dispositivos digitais para favorecer a transmissão de conteúdos curriculares e, com isso, subir no ranking dos exames educacionais oficiais. O que se quer é introduzir a cultura digital no ambiente educativo e, dessa forma, promover a criatividade, a autonomia e a autoria dos envolvidos, estimulando um processo de aprendizagem motivador e de fato permanente.
“Ao criar um joguinho no Scratch e desvendar todos os códigos dessa linguagem de programação, os alunos exercitaram cálculos. Ao lançar o jogo no blog da escola, tiveram que redigir o tutorial de forma clara e compreensível, aprendendo a correta conjugação verbal”, contou orgulhosa uma professora de ensino fundamental sobre seu projeto de criação de games com os alunos. Os resultados desse processo ainda não aparecem nas avaliações oficiais da educação do país, que continuam registrando estagnação na aprendizagem de leitura e matemática.
“Quando pensamos o Ceibal, não esperávamos melhorias em matemática e língua materna. Sabemos que isso é consequência de um trabalho a médio e longo prazo. O que fizemos foi criar um projeto de país focado na inclusão social pela via da educação”, ressaltou Miguel Brechner em São Paulo, durante evento organizado pelo Instituto Educadigital e o Comitê Gestor da Internet. Brecher aproveitou a ocasião para contar sobre as novidades que estão sendo implementadas: videoconferências para ampliar o alcance do ensino de língua estrangeira, das quais participaram 1.000 grupos de 196 centros educativos só neste ano, e uma plataforma adaptativa para matemática que, em cinco meses, já conta com 19 mil usuários e 1 milhão de exercícios resolvidos.
Nos itens abaixo, pontuo mais alguns aspectos desse ecossistema educativo uruguaio chamado Plano Ceibal que podem servir de inspiração para políticas públicas e demais iniciativas educativas brasileiras:
Independência e autonomia administrativa
O Plano Ceibal é um órgão autônomo em relação ao Ministério da Educação. Criado via decreto presidencial em 2007, tem uma governança formada por uma equipe de gestão executiva e uma comissão consultiva com representantes de órgãos públicos, como os Conselhos de Educação. O financiamento de todas as ações é via recursos públicos, mas a equipe gestora tem total autonomia para contratar funcionários, fornecedores de serviço, assessores, comprar equipamentos e materiais educacionais (incluindo os direitos autorais para poder usar como quiser), dentre outras ações. A constância do programa de educação, independentemente dos mandatários presidenciais, é um dos principais destaques. Pesquisa nacional de 2010 mostrou que 94% da população é favorável à iniciativa.
Valorização da autoria de alunos e professores
Alunos e professores são sempre considerados protagonistas no processo de ensino e de aprendizagem. Há um currículo base, mas os materiais didáticos não são inspecionados pelo governo e as estratégias e metodologias pedagógicas ficam a cargo dos docentes, que são constantemente estimulados a criar e compartilhar recursos educativos e projetos de maneira aberta e on-line. Um vídeo explica como produzir Recursos Educacionais Abertos. Já os alunos são fortemente incentivados a aprender a programar, especialmente com o Scratch, uma plataforma criada no MIT que permite criar jogos, animações e histórias interativas. Com o uso da ferramenta, os conteúdos curriculares são trabalhados de forma transversal e pela metodologia de projetos.  Estudantes também participam do Design for Change, que utiliza a abordagem do Design Thinking para planejar eles mesmos a solução de problemas reais do espaço escolar, como melhoria do serviço da cantina, combate ao buylling, dentre outros.
Estímulo à carreira docente e sistematização de experiências
Martín Rebour, coordenador de formação de professores do Ceibal, contou que a cada ano, 10 mil educadores participam das ações de formação realizadas pelo programa, via cursos presenciais ou virtuais e oficinas. Para apoiar o trabalho pedagógico de uso das “ceibalitas”, como são carinhosamente chamados os computadores, nas escolas, existem cursos específicos organizados pelos Conselhos de Educação: Maestro de Apoio Ceibal (MAC), Maestro Dinamizador e Maestro Conteudista. Na plataforma CREA, vários cursos virtuais são oferecidos ao longo do ano .
As formações são todas por adesão e não remuneradas. Os ganhos salariais vêm na sequência, assim que o docente assumir nova função. E notícias recentes mostram que o incremento da remuneração docente tem sido uma tendência da política pública.
Experiências pedagógicas são constantemente sistematizadas e compartilhadas, como em SembrandoLivro Azul e outras publicações. E a formação inicial docente também faz parte do programa. Alguns cursos estimulam a criação de objetos de aprendizagem pelos estudantes universitários para uso das escolas do Ceibal.
Envolvimento da família e da comunidade
Ao levar para casa as “ceibalitas”, crianças e adolescentes estimulam o envolvimento de suas famílias na relação com a escola, pois eles são os responsáveis pelo cuidado dos equipamentos. Estudo realizado pela Universidade Autônoma do México e Universidade Católica do Uruguai mostrou que as famílias demonstram confiança e certeza da importância do computador para melhorar a educação de seus filhos, especialmente por abrir oportunidades de trabalho futuro. Mas que, no início, estranhavam muito o frequente uso dos jogos, reproduzindo a tradicional visão de que jogo não combina com educação escolar. Porém, com o tempo e interação com seus filhos dentro de casa com a ceibalita, vão percebendo o valor dos jogos para melhorar a aprendizagem. Além disso, também usam o computador para atividades familiares, como tirar fotos, encontrar informações sobre qualquer tema ou conversar com um parente distante.
Além das famílias, foi articulado um vasto grupo de voluntários para apoio às ações e atividades do Ceibal.
Intercâmbio com outros países
Brasil, Costa Rica, Argentina estão entre os países com os quais as escolas uruguaias realizam intercâmbios de projetos. Comunicação via internet, cooperação e até visitas presenciais estão acontecendo, como no caso da Escola Estadual Osvaldo Aranha, de Ijuí/RS, e a Escola República del Paraguay no 94, de Rivera, que estão trocando informações sobre o poeta gaúcho Mario Quintana e o pintor uruguaio Joaquín Torres García. A escola de Ijuí faz parte do recente projeto da Secretaria Estadual de Educação do RS, Província de São Pedro, que equipou com laptops as escolas brasileiras nas cidades de fronteira e simultaneamente formou os professores “para não deixar os estudantes brasileiros dessa região em desvantagem em relação aos colegas uruguaios”, explicou Maria Lúcia Pinto, coordenadora pedagógica do projeto na Secretaria Estadual de Educação do RS, que também participou do ExpoAprende Ceibal.

*Priscila Gonsales é Fellow Ashoka, máster em Educação, Família e Tecnologia pela Universidade de Salamanca (Espanha), jornalista especializada em educomunicação, co-fundadora do Instituto Educadigital. Desenvolve projetos e pesquisas em educação na cultura digital desde 2001 e facilita processos formativos envolvendo recursos educacionais abertos e design thinking.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Eduardo Galeano, o caçador de vozes


O escritor uruguaio Eduardo Galeano fala do destino dos países latino-americanos, faz a defesa dos ideais de esquerda e decreta: o único pecado que não deve ser cometido é o pecado contra a esperança

Por Glauco Faria e Nicolau Soares

O ano é 1996. O escritor uruguaio Eduardo Galeano estava em um encontro em Chiapas, México, com integrantes do movimento zapatista, entre os quais o próprio subcomandante Marcos. Em meio a conversas e debates, algo o perturbava. Aquele não era um dia qualquer.
No entanto, o que tirava o sossego de Galeano não eram os focos de tensão entre os rebeldes e o governo, nem algum acontecimento no cenário político internacional, mas uma partida de futebol. Tratava-se da final do torneio de futebol masculino nas Olimpíadas de Atlanta entre as seleções de Argentina e Nigéria.
Como assistir o jogo em meio à extensa programação do dia? Em um intervalo entre uma reunião e outra, o uruguaio não se conteve. Fingiu ir ao banheiro e saiu escondido para o hotel onde estava hospedado. Quando voltou, perguntaram-lhe: “Eduardo, onde estavas?”. Disfarçou e deu uma desculpa qualquer. “Nunca tive coragem de admitir que fugi para ver o jogo.”
O futebol é tema recorrente de comparações e de histórias de Galeano, que fez essa confidência à Fórum em meio à sua participação no I Festival Latino-Americano de Música Camponesa, realizado em Curitiba em novembro do ano passado. Na ocasião, o escritor falou a milhares de integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, o MST.
O uruguaio, que conseguiu tocar milhões de leitores com o clássico As Veias Abertas da América Latina, seduz os espectadores que acompanham suas palestras. Com um português impecável e uma serenidade inabalável, recorre a histórias e parábolas para ilustrar suas contundentes críticas ao modelo neoliberal e aos rumos da esquerda e dos países do continente latino-americano. Mas em cada trecho de sua fala faz questão de deixar uma palavra de esperança e reafirmação de valores caros aos movimentos progressistas. Durante sua estada no evento, Fórum acompanhou os passos do escritor e traz abaixo os principais trechos de sua entrevista exclusiva, assim como da palestra que realizou no evento. Apesar de ser sábado e ter jogo do Brasileiro na televisão, dessa vez, Galeano não escapou.

Ser de esquerda

É difícil fazer um catálogo dos ideais de esquerda. Eu diria que são os mais ligados às idéias da liberdade, da comunhão com a natureza, da preservação da vida, não só humana, mas da vida do planeta, que é nossa casa. E é a certeza de que fazemos parte de um arco-íris de diversas cores e que o racismo está nos deixando cegos para essa maravilha que é a diversidade humana e da vida no mundo. Porque o melhor do mundo é a quantidade de mundos que ele contém. Essas seriam algumas coisas básicas.
Ocorre hoje a ressurreição dos laços solidários, não digo mortos, mas muito feridos, quebrados, a partir da imposição de uma escala de valores fundada na salvação pessoal, na idéia de que o outro é um competidor e um inimigo, não um companheiro. Que é uma ameaça e não uma promessa. Acredito, como um homem de esquerda, que alguém sempre  tem alguma coisa para dizer que valha a pena escutar. Os trinta e poucos anos transcorridos desde que escrevi As Veias Abertas da América Latina indicam que alguns desses valores já não têm a força que antes tinham. Por exemplo, nos anos 70, ninguém discutia que a pobreza era filha da injustiça. Era a esquerda quem denunciava, mas ninguém discutia. O centro aprovava e a direita não discutia, calava a boca. Agora, é uma minoria que continua acreditando nisso. Para a maioria dos opinion makers, os fabricantes de opinião do mundo, a pobreza é o castigo que a ineficiência merece. Isso é uma mudança de valores radical.

Boas notícias

É muito difícil perceber que projetos e idéias são interessantes, mas eles existem. Há casos como o plebiscito da água, que me parece uma coisa digna de contágio, merece ser imitada por outros países. Mas não tenho muita esperança, porque o Uruguai já fez um outro plebiscito em 1992 sobre a privatização das empresas públicas em que 72% da população votaram contra e ninguém imitou isso, que é um exercício de democracia elementar. Quando você está tomando uma medida que vai afetar o destino de várias gerações, como é a privatização dos recursos essenciais de um país, é necessário consultar à população.
Mas além dessas coisas, que são muito concretas, palpáveis, é difícil fazer uma lista das boas notícias. Mas elas existem o tempo todo, às vezes em uma escala local que não tem a menor repercussão, mas que é verdadeira.

Efeito Lewinsky

O governador Requião, em um almoço, me dizia que nenhum jornal brasileiro publicou nenhuma linha sobre o plebiscito da água que ocorreu no Uruguai. E foi um fato muito importante, não por ter acontecido no meu país, não vou fazer patriotadas bobas, mas porque foi o  primeiro país a fazer uma consulta pública sobre o uso de um recurso natural perecível como é a água. Foram 65% dos uruguaios a favor de uma emenda constitucional que garante que a água continuará sendo  propriedade pública e não um negócio privado. Isso não apareceu nos jornais, não era notícia.
Há um controle mundial nos meios de comunicação que já é hora de ser quebrado. Uso como exemplo o ano de  1998, quando o mundo ficou condenado a ler, escutar e assistir, dia  após dia, às notícias do romance entre o presidente do planeta e aquela gordinha voraz, Monica Lewinsky. Você tomava café da manhã com ela, almoçava com ela, jantava com ela… Um ano inteiro. Um dia,  estava na Europa e abri um jornal que era pura Monica Lewinsky. E aí, perdida, havia uma notícia, na última coluna da página sete, dizendo que as três organizações ecológicas mais importantes do mundo haviam se juntado em Londres para divulgar um relatório seriíssimo que revelava que, em meio século, o mundo tinha perdido um terço de seus recursos naturais. Isso não teve a menor importância. Um terço dos  recursos é fácil de dizer, mas se você pensa na dimensão desse crime gigantesco… O mundo tinha perdido em cinqüenta anos um terço de seus recursos e não tinha espaço para isso no jornal, porque estavam  ocupados com a outra história.

O processo do Fórum

Percebo uma multiplicação da energia criativa na sociedade civil da América Latina a partir do primeiro FSM, um maior dinamismo. Existe uma contradição entre o tempo da história e o tempo da vida dos homens. Cada pessoa quer ver os resultados das coisas, o que é compreensível,  um desejo humano. Mas a história é uma senhora que caminha devagar. É preciso ter paciência. O resultado dessa articulação de vozes não aparece em um ou nem mesmo em dez anos. Estão despertando  energias que pareciam estar dormindo ou até mortas.
Essa articulação  é lenta, mas imprescindível para o futuro dos movimentos sociais. Na  solidão, estamos mortos. A esquerda está tentando um caminho novo,  novas experiências políticas. Essas novidades aparecem em todos os  setores, não só nas eleições. É interessante ver que (Hugo) Chávez, demonizadíssimo  por toda a grande mídia, ganha nove eleições limpas. Estamos falando de um tirano muito especial que ganhou nove eleições – todas mais transparentes que as dos EUA. No Uruguai, a esquerda ganhou, mostrando que o trabalho rende frutos, não é só água jogada no  mar. Foi um trabalho iniciado em 1971, casa por casa.

O FSM e os pequenos

Com o passar do tempo, valorizo cada vez mais as pequenas escalas,  as pequenas dimensões e desconfio cada vez mais da espetacularização das grandes notícias. Eu digo isso para revelar a grandeza  escondida nas coisas pequenas e denunciar a mesquinharia das  coisas grandes. O Fórum Social Mundial tem essa característica do espetáculo, mas é diferente, porque é nascido da insólita e jamais vista tentativa de juntar todas essas pequenas forças desconhecidas  que existiam espalhadas. Ele tem sido um grande passo adiante na direção correta de juntar os dispersos, re-vincular os desvinculados,  de salvar-nos da solidão. Nesse sentido, acho que o mundo tem avançado  muito, de uma maneira silenciosa, não estrepitosa, mas certa. E que não corresponde exigir resultados imediatos, pois são processos muito longos, complexos, que caminham devagar e crescem desde o  pé, como pedia o cantor uruguaio e meu amigo muito querido Alfredo
Zitarosa, porque senão as coisas não duram.
O Fórum abriu um grande espaço de encontro e essa é sua importância, ter conseguido  que os dedos ganhassem consciência de que fora da mão não servem para nada. A ida para a Índia parece ter sido uma experiência positiva, pois abriu toda uma metade do mundo que estava meio em sombra, não aparecia muito, e permitiu a expressão de forças que estavam latentes. Mas não sei o que acontecerá. Em geral, não sou  um bom profeta. Sobretudo no que mais me interessa na vida, que é o futebol (risos).

500 Anos de Solidão

A América Latina é uma região do planeta dentro da qual existem energias de mudança muito lindas e também energias do sistema colonial que vêm se perpetuando já há mais de cinco séculos e que são  muito poderosas. Eles têm um poder econômico e cultural imenso e boa parte do poder político. São essas as forças que estão nos treinando desde sempre para a certeza de nossa impotência. Para a certeza de  que a realidade é intocável, de que o que é, é porque foi e continuará sendo. De que amanhã é outro nome de hoje. Isso é um fatalismo herdado e tem muito tempo de vida: cinco séculos. Não é fácil lutar contra isso. Vamos inventar a vida, vamos imaginar o futuro. Vamos cometer a loucura de acreditar que essa terra pode ser outra. De que essa região nossa não está condenada pelos deuses nem pelos diabos à pena perpétua de solidão e desgraça. Mas isso não é fácil.

Elogio ou acusação

Como sempre, há essa tensão criativa entre as forças da inércia dos sistemas tradicionais e as forças novas que surgem. O problema é que às vezes as forças novas adotam os valores das que combatem sem perceber. Por exemplo, toda uma escala de valores que acredita no sucesso como uma fonte de valor. Então, essas forças de mudança começam uma corrida louca para parecer com seu inimigo, para fazer a coisa de tal maneira que seu inimigo lhe aplauda. Às vezes me dizem: “você é muito bom”. Mas eu procuro ver quem é que está falando, porque, dependendo, pode ser uma acusação gravíssima.

O pecado contra a esperança

A vitória da esquerda nas eleições uruguaias foi, para nós, um acontecimento incrível. Parece milagre. A esquerda obteve a metade mais um dos votos contra um monopólio compartilhado de dois partidos  tradicionais que exerciam o poder desde a fundação dos tempos, desde Adão e Eva ou antes. Parece milagre, mas não é. É o resultado de um trabalho paciente, feito dia após dia, porta por porta, consciência após
consciência. A vitória da Frente Ampla foi crescendo desde o pé. E foi celebrada numa noite inesquecível. Aquele domingo foi absolutamente inesquecível. Eu nunca tinha visto, sentido, vivido tanta alegria no meu país. Foi uma ressurreição da alegria, que parecia morta, mas estava apenas dormindo. Lá pelas quatro da manhã, o povo nas ruas, aquela explosão incessante das melhores coisas, um amigo me comentou: “Quero que essa noite não acabe nunca”.
E essa frase, que é lindíssima, não se refere só à noite da celebração, mas também a tudo que aquela noite estava encarnando, simbolizando. O que ele queria dizer verdadeiramente, mesmo sem saber, era: “Eu quero que essa alegria, essa esperança, não seja jamais traída”. Porque tinha razão o meu mestre Carlo Quijano quando, há muitos anos, comecei a fazer jornalismo ainda quase criança com ele, no semanário Marte. Ele me dizia: “Qualquer um que lhe olhe nos olhos já vê claramente sua vocação de pecado. Você é um pecador de nascença e eu não tenho nada contra. Peque sim. Mas tem um pecado que não tem redenção, que não merece perdão. É o pecado contra a esperança”. Essa é a imensa responsabilidade da esquerda em meu país. Não trair nunca essa boa energia de vida que foi vitoriosa nas eleições.

Uruguai hipotecado

O governo da Frente Ampla, que está nascendo agora, é o resultado do desenvolvimento de um movimento popular que jamais falou que iria ganhar o governo para fazer o socialismo. Seria irreal prometer isso. O que se prometeu foram coisas mais moderadas, modestas, que são as mais ou menos realizáveis, que eu espero que sejam realizáveis em um país quebrado, desesperançado como é o Uruguai. A primeira  prioridade é lutar contra a pobreza. A segunda, resgatar os filhos perdidos de um país que perdeu a população jovem, condenada ao exílio econômico, expulsa pelo sistema de poder. E a terceira, vinculada com as outras duas, é buscar um desenvolvimento econômico que não contradiga a soberania nacional sobre os recursos básicos e que permita a criação de fontes de emprego. O problema do Uruguai é que o país foi convertido pela estrutura dominante em um banco. O banco quebrou e assim estamos. A esquerda recebe um país hipotecado, com  compromissos de dívida externa terríveis, pesadíssimos. Esse é o drama latino-americano em geral, é uma soberania condicionada. Você é independente até um certo ponto. Porque depois, quem decide são os credores. É o resultado de viver em um estado de dívida perpétua, pagando para se endividar mais e mais.

Lula

Não pretendo explicar para o brasileiro como são as coisas aqui. Não sou de vender gelo a esquimós. Estou aqui aprendendo, perguntando. No caso do governo Lula, há uma distância entre as expectativas e a realidade. É um problema da esquerda no mundo, a perda de identidade. Ela passa a não se diferenciar do que combate. Em nome do realismo, se sacrificam alguns princípios fundamentais do movimento  socialista, ou como queira chamá-lo, já que teve muitos nomes. Lembro de ver, quando era jovem, um filme dos irmãos Marx. Groucho estava conduzindo um trem e não havia mais lenha. Então, ele começou a destruir os vagões com um machado, para alimentar a caldeira. Ele conseguiu chegar até a estação, mas apenas com a locomotiva. Chegou um trem sem trem. Esse é o perigo que corre a esquerda. Não é inevitável, mas é um perigo.

Projeção internacional do Brasil

O que eu resgataria do governo de Lula é a projeção internacional, essa vontade de fazer uma frente unida dos países que vivem situações semelhantes, que têm problemas semelhantes e um destino comum a conquistar. Que têm essa urgência imediata da restauração da dignidade ferida na negociação financeira, comercial e cultural. Sem essa união, não tem possibilidade. Nenhum país tem. O Brasil pode achar que tem, pela sua dimensão imensa. Mas a situação é a mesma. Por maior que o Brasil seja, não tem a possibilidade de se salvar na solidão. Já está na hora do sul do mundo recuperar aquela energia perdida dos velhos tempos, há 40, 50 anos, quando se faziam aquelas conferências do Terceiro Mundo, que era um mundo independente dos dois blocos, capitalista e comunista. Era a emergência de uma terceira possibilidade e chegou a ter muita força, mas depois se perdeu na névoa do tempo. E também os organismos que existiam
para defender o preço dos produtos básicos, que morreram todos, exceto a OPEP. Já é hora de acabar com a impunidade dos poderosos nos grandes mercados, financeiros e comerciais, e no panorama cultural mundial  também. Eles são os donos de nossos sonhos, de nossas opiniões, das informações que recebemos ou não, de acordo com a vontade de quem manda. Já é hora de recuperar isso tudo.

União é a chave

Para poder fazer frente a essa negação da esperança, é preciso concretizar uma política conjunta do Uruguai com o Brasil e a Argentina. Aí está a chave de tudo. Cito esses dois porque, no caso do Uruguai, são os vizinhos mais diretos, mas deveria envolver toda a área do cone sul. Fazer uma política conjunta do Mercosul ampliado, como for possível. A idéia de que você pode se salvar sozinho não tem mais nenhuma relação com a realidade dos dias de hoje. Sozinhos, estamos fritos. A solidão nos condena ao fracasso.

Os EUA e o medo

A propósito das outras eleições, que aconteceram dois dias depois das nossas, em um outro país, um pouco maior que o Uruguai, e que ocupa um pouco mais de espaço na mídia universal, elas consagraram o presidente do planeta, senhor George W. Bush. Na eleição do Uruguai, que não teve nenhuma repercussão neste mundo que confunde a grandeza com o tamanho grande dos países e das pessoas, foi uma vitória contra o medo. Na campanha política, a direita tentou aterrorizar a população dizendo que a Frente Ampla era uma conjunção de forças dirigida por tupamaros, seqüestradores, estupradores, ladrões e assassinos. Eu vi pela televisão o discurso final do vice-presidente do partido Colorado, que é o partido do governo atual. Ele lançou uma terrível advertência: se a esquerda ganhar, todos os uruguaios seriam obrigados a se vestir iguaizinhos, como os chineses na época do Mao.
Sobre o plebiscito das águas, também uma campanha  de terror, anunciando o pior. Águas envenenadas, sujeira, cheiro fétido, o fim dos esgotos, um panorama terrível, apocalíptico. E o pessoal não deu bola, a população votou contra o medo. Acho que nas eleições dos EUA o medo ganhou. Uns dias antes das eleições, as pesquisas apontavam uma preocupante paridade entre Bush e Kerry. E aí, apareceu, não sei como, deve ser a divina providência, esse personagem que parece tirado  do carnaval uruguaio, com aquela barba longa, que responde pelo nome de Bin Laden. Ele aparece para assustar o mundo anunciando que vai comer todos os nenês crus, que vai fazer todos os desastres. Dois apocalipses, três apocalipses, quinze mil torres de Nova York. Magnificamente, Bush subiu quatro pontos em um dia só nas pesquisas de opinião graças à ajuda proporcionada por esse que me parece um chefe de boy-scout (escoteiro). O lema do boy-scout é always ready, ou sempre alerta. Ele está sempre pronto. Acode cada vez que o sistema do medo necessita do grande assustador, esse alto funcionário da ditadura universal do medo.
O medo é importantíssimo não só porque pode eleger um presidente, como aconteceu aí com essa extorsão contínua, essa histeria do terrorismo que avança, das forças do mal, o Diabo que está aí perto, cheirando a enxofre, com chifre e rabo. Mas também para o poder militar. Que seria desta estrutura militar que hoje manda no mundo, dos 2,5 bilhões de dólares que são a cada dia destinados à indústria da morte, às despesas militares, sem o medo? Se não houvesse pessoas ou máquinas, como fabricar os demônios para justificar a existência da estrutura militar? E a mesma coisa em relação à mídia. O medo vende muito bem.

Tecelão

Meu último livro se chama Bocas do Tempo e são textos curtos, num estilo levemente parecido com o do Livro dos Abraços. São 333 histórias, mas isso não foi deliberado, foi o número que encontrei quando fiz o índice. É um número bom, dá sorte. Mas uma quantidade imensa de histórias ficou fora, porque quem escreve, tece. A palavra texto vem do latim textum, que significa tecido. Ou seja, quem escreve está tecendo, é um trabalho têxtil. Você trabalha com fios e cores, que são as palavras, as frases, os relatos. Eles vão se encontrando e há alguns fios que são lindíssimos, mas que não coincidem, não combinam. Então, com dor na alma, ficam de fora.
Foram oito anos de trabalho para esse livro, umas histórias simples, mas que de simples não tem nada. Quanto maior é a sensação que o leitor percebe de transparência, mais complicado é o trabalho que essa aparente simplicidade contém. Para mim, escrever é uma força enorme. E me dá uma alegria imensa também. No fim, quando consigo sentir que essas palavras são bastante parecidas com o desejo de dizer, fico com a certeza de que a condição para não ser mudo é não ser surdo. Ou seja, só é capaz de dizer quem é capaz de escutar. Sou um caçador de vozes e histórias. É a realidade que me conta as coisas que acho que vale a pena que sejam contagiadas.

Abraçado aos vencidos

Não sou um homem que tem ídolos, não idolatro ninguém. O mais próximo que tenho de um ídolo é um jogador de futebol, um cara que me acompanha quando escrevo, já que tenho um pôster dele no meu  escritório. Era um inimigo, pois jogou no Peñarol e sou torcedor do Nacional. Fui conquistado por ele, pelo que fazia e por sua personalidade.
Seu nome era Obdulio Varela e foi o herói de um episódio que os brasileiros chamam, com certo exagero, de “nosso Hiroshima”, a final da Copa de 50, quando o Uruguai ganhou, contra todas as possibilidades, do Brasil. Após a partida, os jogadores foram festejar essa impossibilidade. Mas ele fugiu do hotel e foi beber em um boteco do Rio.
Ele me disse que o que havia nas arquibancadas era uma besta, um monstro de 200 mil cabeças. “Eu os odiava”, contou. Depois, tomou uma, duas, três cervejas e via as pessoas, uma a uma, tristes, chorando. E pensou: “Como eu fiz isso com essa gente tão boa?”. E todos atribuíam a vitória a ele, “foi o Obdulio”, diziam. Por isso o admiro, ele não se acusou, não comemorou e passou a noite inteira abraçado aos vencidos.