Para se compreender a relevância da relação entre a juventude e a
cultura, não basta tomar esse tema de forma externa, ou dizer,
simplesmente, que a juventude é uma das mais contundentes portadoras das
variadas expressões da cultura. Para além disso, o importante é tentar
apreender, ainda que de forma geral, o binômio juventude–cultura na sua
imanência interna, ou seja, na própria compreensão do modo de ser da
juventude na sociedade moderno-contemporânea (ou tardo-capitalista).
Isso se torna importante, sobretudo, porque o problema de grande
parte dos teóricos que trataram sobre a juventude consiste ou em vê-la
de forma singular (como se houvesse uma única juventude), ou em não
conseguir explicar como se dá a constituição-diferenciamento de suas
várias identidades sem se perder da unidade.
Num estudo intitulado 1968… ou de como a besta deveio imaginação,
Alejandro Ventura (1994) estabeleceu a tese de que a melhor forma para
se compreender o comportamento do indivíduo na sociedade capitalista é
pelo conflito profundo entre o desenvolvimento do potencial criativo
versus os bloqueios do sistema, sejam estes de ordem material-externa ou
moral-interna.
Muito diferente de ser apenas um “estado de espírito”, “representação
estanque de uma faixa etária”, ou um “mal que se cura com o tempo”, a
juventude é o momento da vida em que se dá com maior intensidade esse
conflito, que interfere diretamente nas escolhas e na definição da
identidade individual e coletiva das pessoas. Não podendo ser encerrada
apenas pela determinação quantitativa de uma condição etária, a
juventude se define especialmente como momento qualitativo em que o
futuro da vida está sendo decidido, em que são tomadas as grandes
decisões. E, se a juventude caracteriza-se pelo pico do conflito entre
potencial criativo versus bloqueios, então essas decisões e escolhas se
dão sob forte tensão e sob a figura da angústia.
Albert Camus mostrou que a saída do homem moderno angustiado é
a revolta – o que pode adquirir dimensões sociais explosivas. Mas essa
“revolta” não precisa ser de caráter estritamente político. Pode ser a
mais “despolitizada” possível. Na verdade, ela é a busca de uma nova
forma de reconhecimento, alternativa àquelas que o sistema bloqueou,
àquelas que, diga-se assim, eram vinculadas ao que John Lennon,
genericamente, chamou de “sonho”. É fundamentalmente a partir disso que a
juventude vai se identificar pluralmente em diversas formas de
reconhecimento: na religião, no modismo consumista, nas comunidades
alternativas, nos esportes, na política, nas drogas, na violência, na
apatia e no suicídio, na música e nas artes e, portanto, também, nas
expressões mais propriamente denominadas como cultura(is). Nada disso
impedindo que tais manifestações se comuniquem ou se rearticulem em
diferentes graus entre si.
Ao contrário do juízo simplista e instrumental de uma certa esquerda,
é socialmente superficial, historicamente falso e politicamente
equivocado identificar a juventude com o progressismo. Ainda que os
jovens tenham sido sujeitos marcantes em muitos eventos importantes da
esquerda, não é possível ignorar, por exemplo, que na Alemanha a
juventude nazista era, no tempo do grande Partido Social-Democrata
Alemão, de Kautsky e Rosa Luxemburgo, muito mais numerosa do que a
juventude socialista (IANNI in BRITTO, 1968: 237). Assim como não é
atualmente plausível desconhecer os diversos grupos juvenis, dos
skin-heads aos carecas do ABC, que reencontraram na violência a forma
bárbara da diversão.
Contra a visão de que a juventude é algo quase “naturalmente”
progressista – que bastaria a esquerda agitar as suas bandeiras para
obter a sua adesão –, o melhor entendimento, sobre esse aspecto
particular da formação ideológica juvenil, é o de Karl Mannheim (in
BRITTO, 1968: 74), para quem a juventude não é nem progressista, nem
conservadora. É uma enorme potencialidade em disputa. E é neste sentido
que a cultura se investe de enorme valor na definição do modo de ser da
juventude, em sua visão de mundo e em sua práxis social e política.
Sobretudo para o ponto de vista crítico, isso se revela
explicitamente caro nos tempos atuais, quando o “novo irracionalismo
brasileiro”, denunciado por Sérgio Paulo Rouanet (1992), externa o
desprezo dos jovens pela cultura erudita, pela teoria e pela filosofia,
pela música, pela literatura e pelas artes, numa anticultura
alienada/estranhada, regada por um saber puramente instrumental, que se
alimenta narcisicamente atrás de um microcomputador e no consumismo
mercadológico irrefletido.
Enquanto a direita prega, a seu modo, o fim da ideologia [não como
Daniel Bell (1980), que o fez teoricamente, mas como postura tacanha e
rebaixada para disfarçar o caráter de sua própria ideologia – o da
dissimulação fragmentária do saber e da desmobilização social], as
organizações de esquerda e os setores sociais progressistas têm, em
contrapartida, uma tarefa iluminista, qual seja, a da retomada do valor
do conhecimento, da relação dialética afirmativa entre as culturas
popular e erudita, da relação do homem com a natureza e, assim, do
espírito crítico e autocrítico como um todo.
Evitando-se o subjetivismo axiológico, que sem se ater à dominação
material imagina poder mudar o mundo pregando éticas universais
abstratas, trata-se de apostar na formação intelectual crítica da
juventude, elemento importante para o que Gramsci chamou de luta
contra-hegemônica. Embate de idéias e valores, sim! Mas enraizado na
vida real das lutas sociais entre as classes, que hoje não podem mais
ignorar os temas ecológicos, étnicos e de gênero. Questões estas,
entretanto, que só encontram sentido radical se vinculadas ao projeto de
uma luta mais geral que arremeta “para além do capital”, como propõe
Mészáros (in COGGIOLA, 1997).
A exigência da crítica – como forma da negação em andamento – não
deve, porém, soterrar a clareza de que menos importante do que aferir
“moralmente” o grau imediato de “politização” da juventude é decifrar
dialeticamente o significado social e político daquilo que as juventudes
estão expressando à sociedade. E ler as contradições dessa sociedade de
modo imanente, na trama das relações que constituem o processo de sua
totalidade. O conceito da condição juvenil como torrente de um conflito
psicossocial dos indivíduos pressupõe a noção crítica de um
comportamento oblíquo aos sistemas vigentes e, portanto, uma
potencialidade de recusa. Mas que também pode virar simplesmente à
direita ou ao comodismo em sua luta por reconhecimento. A percepção
dessas culturas juvenis como modos contraditórios, porém legítimos, de
ser/existir na sociedade capitalista, é um pressuposto para que com elas
possa dialogar a cultura de intervenção que vem da crítica teórica.
Um
filme como Trainspotting: sem limites (1996) ilustra, de modo exemplar,
como um jovem pode resolver o seu conflito profundo (potencial criativo
versus barreiras do sistema) sendo absorvido pelo próprio sistema.
Tanto que, no começo do filme, Renton – o personagem principal – diz:
“Ter uma vida, ter um emprego, ter uma carreira, uma família, ter uma
casa, carros, amigos, ter um futuro… Para que eu iria querer isso?
Preferi não ter uma vida. Preferi outra coisa. E os motivos?! Não há
motivos. Para que motivos se tem heroína!” Ao passo que, no fim do
filme, depois de dar um golpe nos amigos e arrumar muito dinheiro, se
pergunta: “Por que fiz isso?” E responde: “Teria várias respostas, todas
mentiras”. Daí ele assume que é mau, mas que foi a última vez, que isso
vai mudar… E, então, diz: “Agora vou entrar na linha, vou ser como
você: terei trabalho, família, carro, TV, um bom terno…” E arremata, na
perspectiva do comodismo: “Vou viver esperando o dia de morrer”.
Renton é um jovem que resolveu o seu conflito no interior da
perspectiva do sistema capitalista, fazendo entender o significado da
fórmula “de como a besta devém imaginação” – não esquecendo de que “a
imaginação no poder!” era um dos lemas do Maio de 1968. Não por acaso,
intelectuais sixties engajados, como Gabeira e Cohn-Bendit, subscrevem,
menos de 20 anos depois, no honesto interesse de saber o que foi feito
dos ideais de sua geração, livros com títulos conjugados em sintomático
passado como Nós, que amávamos tanto a revolução (GABEIRA, 1985). Seu
objeto não é apenas um efeito dos ventos comuns da mudança histórica.
Vem crivado pelo poder dos mecanismos de adaptação do sistema, que
sempre querem se insinuar como normalidade racional. Veja-se, sobre
isso, um ex-líder operário como Lula que, discursando como presidente de
seu país, acha plausível reprisar a retórica positivista clássica da
direita contra o movimento estudantil, segundo a tese de que a espécie
humana “evolui” naturalmente da esquerda para a direita conforme a
idade. E que o ponto racional de equilíbrio é o centro.[1]
Isto posto, do ponto de vista da emancipação, a relevância histórica
do trato do binômio juventude–cultura está em saber se a resolução do
que se chamou aqui de luta por um novo reconhecimento se dará
(re)canalizando as energias das rebeldias juvenis em favor do próprio
sistema, ou se se requalificará substantivamente, convertendo-se em
necessidades radicais, as quais, como disse a primeira Ágnes Heller
(1978: 179) lendo Marx, constituem uma demanda cuja exigência
qualitativa não pode mais ser satisfeita nos marcos da sociedade
capitalista. Na hipótese dessa reversão dialética, a luta pelo
reconhecimento encontra uma chance de superar as raias do estranhamento e
de se afirmar no novo patamar de um processo de emancipação.
Referências
BELL, D. O fim da ideologia. Brasília: Edunb, 1980.
CAMUS, A. O homem revoltado. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 1997.
GABEIRA, F. Nós, que amávamos tanto a revolução: diálogo Gabeira–Cohn Bendit. 3.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
HELLER, Á. Teoría de las necesidades en Marx. Barcelona: Península, 1978.
IANNI, O. O jovem radical. In: BRITTO, S. de. Sociologia da juventude: v. 1 – da Europa de Marx à América Latina de hoje. Rio de Janeiro: Zahar, p. 225-242, 1968.
MANNHEIM, K. O problema da juventude na sociedade moderna. In: BRITTO, S. de. Sociologia da juventude: v. 1 – da Europa de Marx à América Latina de hoje. Rio de Janeiro: Zahar, p. 69-94, 1968.
MÉSZÁROS, I. Ir além do capital. In: COGGIOLA, O. (org.). Globalização e socialismo. São Paulo: Xamã, p. 143-154, 1997.
ROUANET, S. P. As razões do iluminismo. 3.ed. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1992.
TRAINSPOTTING: sem limites. Direção de Danny Boyle. Inglaterra: Channel Four Films et al.: Dist. Alpha Filmes e Spectra Nova, 1996. 1 DVD (89 min): son., leg., color.
VENTURA, A. 1968… o de como la bestia devino imaginación. Montevideo: Jenscet, 1994.
* PAULO DENISAR FRAGA é Mestre em Filosofia pelo IFCH, Universidade Estadual de Campinas e Professor do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas, MG. Publicado na REA nº 75, agosto de 2007, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/075/75fraga.htm
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