Tramitam na Câmara de Deputados dois projetos de lei que, basicamente,
permitirão ao Poder Judiciário, além de outros órgãos essenciais à
administração da Justiça, lucrar com a aplicação de recursos advindos de
depósitos judiciais realizados pelas partes e colocados, sob aviso,
preferencialmente, nas caixas estaduais, na Caixa Econômica Federal ou
no Banco do Brasil.
O primeiro projeto, 7.412/2.010, que trata da Justiça estadual, foi
aprovado em caráter definitivo pela CCJ (Comissão de Constituição e
Justiça) da Câmara, sob forte apelo da bancada do Rio Grande do Sul.
Entretanto, o encaminhamento direto do projeto ao Senado foi barrado por
recurso dos Deputados Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG) e Miro Teixeira
(PDT-RJ), que argumentaram ser necessária ampla discussão da matéria no
plenário da Câmara. Discussão jurídica? Não: puramente política!
O segundo projeto, 2.432/2.011, semelhante ao primeiro, será submetido à
CCJ para aprovação e transporta para o âmbito federal a possibilidade
de o Poder Judiciário da União proceder à aplicação financeira dos
recursos provenientes dos depósitos judiciais à disposição da Justiça
Federal e do Trabalho nos bancos oficiais federais.
A diferença entre os projetos reside, apenas, na repartição do bolo, já
que a Justiça estadual ficaria com 77%, enquanto que o Ministério
Público estadual e a Defensoria Pública do estado com apenas 10% e a
Procuradoria do estado com os 3% restantes. No caso da União, aos
rendimentos líquidos auferidos dos depósitos judiciais resultantes dos
ganhos verificados pela aplicação de índices por lei para remuneração de
cada depósito judicial, concorrerão com a Justiça Federal e do Trabalho
(12,5%, cada) o Ministério Público Federal e do Trabalho (12,5%, cada),
a Defensoria Pública da União (25%) e a Advocacia-Geral da União e seus
órgãos vinculados (25%).
Ficaria vedada a destinação destes recursos para fazer frente às
despesas de pessoal, tais como pagamento de salários, prêmios de
produtividade ou quaisquer outras vantagens remuneratórias de qualquer
espécie.
A justificativa para estes projetos não é nova. Segundo os autores, o
sucesso delei idêntica do estado de Rio Grande do Sul (daí porque se
afirmou alhures a mobilização da bancada gaúcha para aprovação do
projeto de forma urgente e sem discussão no plenário da Casa do Povo),
com rendimentos aos cofres do Judiciário gaúcho de mais de R$ 620
milhões em poucos anos de aplicação, deveria ser estendido ao restante
do país. Isto porque, prosseguem os deputados, o Judiciário e demais
órgãos essenciais poderão incrementar o orçamento para aplicação destes
recursos na própria infraestrutura do sistema Judiciário, como a criação
e informatização de varas, promotorias e defensorias, pagamento de
peritos, assistentes e advogados dativos.
Muitos representantes destas classes, inclusive magistrados, acompanham
de perto atramitação destes projetos. É possível verificar, em sites
especializados, que muitos chegam a dizer que os contrários à aprovação
da lei são a favor das instituições financeiras em detrimento da
sociedade. Um belíssimo argumento de retórica. Em outras palavras,
regozijam-se com a oportunidade de que parte do capital lucrado pelo
banco seja revertida em favor da máquina judiciária.
Realmente, por um olhar mais desatento e sob a perspectiva do grande
público, o suposto reaparelhamento do Judiciário — cada vez mais lento
—, e a viabilidade de que, finalmente, alguém consiga abocanhar parte do
intocável e bilionário lucro bancário, por certo, seduzem e contarão
com grande apelo popular. Advogar contra estes projetos, reconheço, é
difícil: definitivamente, não sou eu quem irá contra o upgrade do
orçamento do Judiciário, tão combalido, muito menos estou feliz com a
maior taxa de juros do mundo!
Porém, para um exegeta mais atento, sempre sob a égide e proteção de um
Estado Democrático de Direito, como o nosso, cujas regras previamente
impostas são tão encarecidas pela República, os fins não podem,
absolutamente, justificar os meios, mormente com ofensa à Constituição
Federal e ao arcabouço normativo e sistemático como um todo já
consolidado.
Não se concebe a utilização de lei ordinária como instrumento para que o
Poder Judiciário — e demais instituições mencionadas, as quais, é
importante destacar, sequer compõem a sua peculiar estrutura — possam
angariar recursos no mercado e prever despesas públicas, mesmo que
administradas em fundos criados exclusivamente para estes fins, sem a
necessária previsão orçamentária respectiva, exteriorizada por Lei
Complementar, tal como determinam os artigos 165, parágrafo 9º, II e
168, ambos da Constituição Federal, consubstanciados nas vedações do
artigo 167, também do texto constitucional.
Destarte, ao nosso ver, não se sustenta a posição adotada pela maioria
do Supremo Tribunal Federal, por ocasião dos julgamentos das ADI’s (Ação
Direta de Inconstitucionalidade) numeros 2.909 e 3.458, no sentido de
que o depósito judicial é matéria atinente ao Direito Processual e, como
tal, de competência exclusiva da União para legislar. Com base neste
entendimento, leis estaduais idênticas aos projetos ora analisados,
entre elas a do RS, deflagradas por iniciativa dos Tribunais de Justiça,
foram declaradas inconstitucionais por vício formal.
O depósito judicial é matéria processual apenas quando reservado a
satisfazer as necessidades de processo, como, por exemplo, o depósito
prévio em ação rescisória, o depósito para elidir falência, penhoras,
cauções, jamais quando concebido como instrumento para fomentar receitas
públicas, a demandar, como já visto, lei orçamentária própria.
Muito menos se tem como legítima a criação destas entradas a partir de
investimentos realizados com o rendimento de dinheiro depositado pela
parte, ainda que, para tanto, se reduza o lucro das instituições
financeiras. O Judiciário não se presta para este fim, mesmo diante de
consagrada autonomia administrativa e financeira, a esbarrar,
perigosamente, no quanto disposto no artigo 173 da Constituição, que
proíbe, inexoravelmente, a participação do Estado em sorte de exploração
de atividade econômica. Para tanto, somente com a abertura de processo
de licitação, para que o Poder Público possa, assegurada a participação
de diversas outras instituições financeiras interessadas neste grande
filão de mercado, escolher a proposta mais vantajosa para a máquina
judiciária, inclusive no que tange à qualidade dos serviços que serão
prestados pelas agências nos fóruns.
Quanto às demais instituições beneficiadas pelos projetos, além de não
lhes serem confiadas a guarda dos depósitos processuais, não raras
vezes, são partes ou procuradores no feito, o que pode desencadear uma
relação de conflito material, para não se cometer a indelicadeza de
qualificá-la de promíscua. Não é de bom alvitre sejam beneficiadas pelo
serviço bancário judicial, sob pena de comprometimento de suas atuações
como essenciais à consecução de justiça.
O custo Brasil deve ser desonerado de outra forma, com uma efetiva e
específica política financeira para redução do custo do dinheiro neste
país, não sendo sequer isonômico e moral que somente o Poder Público
possa se livrar do alto spread bancário brasileiro, à margem da
população e das empresas, que fazem girar o mercado nacional, e que se
veem obrigadas a pagar juros astronômicos àsinstituições financeiras,
acima do máximo legal, mas permitidos pelo Estado e, inclusive, por
jurisprudência predominante. O orçamento deficitário doJudiciário e
demais entidades que compõem o sistema de justiça deve sercorrigido com
regras administrativas austeras de fomento à qualificada administração
do dinheiro público e combate assíduo ao gargalo da corrupção.
Nenhum comentário:
Postar um comentário