Por Mauro Iasi.
Tempo,
tempo, tempo… cantava Caetano há algum tempo. Achava ele que era um dos
deuses mais lindos por ser tão inventivo e parecer contínuo. Criamos o
tempo para escapar de uma sensação por demais angustiante, a de viver um
fluxo sem sentido, que não sabemos de onde veio e para onde vai. No
mundo da objetividade as coisas simplesmente são, no seu movimento
próprio, apagando e acendendo segundo a necessidade, dizia o velho
Heráclito que acreditava que nada é permanente a não ser a mudança, o
movimento.
O ser humano
inventou o tempo, dividiu esse fluxo contínuo em ciclos, em aberturas e
fechamentos. Para isso precisava intervir nos ciclos das coisas,
controlá-los, por assim dizer. O dia é engolido pela noite de onde brota
um novo dia, as estações se sucedem numa ordem, os seres e plantas
nascem, crescem e morrem, em uma palavra: ciclos. Através do trabalho os
seres humanos se apropriam das coisas e lhes dão outra forma e
utilidade. As plantas seguiram nascendo de acordo com seus ciclos
naturais, em determinadas estações, por exemplo, mas nós escolheremos
sementes, armazenaremos para que durem até quando sejam necessárias,
cuidaremos de seu plantio, de seu desenvolvimento, intervindo em seu
ritmo natural e colocando-o a nosso serviço. Domesticaremos e cuidaremos
de animais para que suas criar estejam disponíveis e não tenhamos que
buscá-las na natureza. O tempo está, como vemos, diretamente ligado ao
controle, aquilo que Lukács chamava de “superação das barreiras
naturais”.
O ser humano
se distancia da natureza sem que jamais possa deixar de ser um ser
natural, nesse sentido o tempo e seus ciclos são mais uma expressão
desta síntese própria de um ser natural que se torna um ser social.
Estamos convencidos que no corpo dessa síntese, o tempo é um elemento
próprio do ser social, isto é, ele não é uma substância que exista fora
da apreensão social do gênero humano que leva a percepção de “sequências
temporais integradas num fluxo regular, uniforme e contínuo”, como
definia Norbert Elias em seu livro Sobre o Tempo. Tal concepção nos trás implicações filosóficas e científicas importantes.
No campo filosófico a humanidade compreendeu o tempo como uma dimensão que se apresentaria “a priori”, como
em Descartes e Kant, como um elemento invariável e próprio da
consciência humana, ou seja, independente de seu momento histórico e
bagagem cultural. Da mesma maneira para Newton e sua famosa segunda lei,
o tempo é uma grandeza absoluta, isto é, não varia segundo o
instrumento e medida utilizados para dele se apropriar. Hoje sabemos que
as coisas não são bem assim. Seja pelo fato comprovável que a própria
noção de tempo varia muito de acordo com a história e a cultura de cada
agrupamento humano, seja pela comprovação que a lei de Newton só se
sustenta considerando invariáveis a situação medida em corpos que se
movem em velocidades abaixo da velocidade da luz, o que leva a famosa
relatividade de Einstein.
Dois
exemplos. Um caminhante entra em contato com uma nação indígena que está
realizando uma espécie de encontro e abre-se a discussão se ele poderia
ou não participar por não ser parte do povo. Depois de semanas
apresentando argumentos se decide que ele não pode ficar e que será
acompanhado, na primeira oportunidade que se apresentar para fora do
local do encontro. Esta oportunidade se apresenta alguns meses depois e
durante todo este tempo ele foi ficando por ali. Outro exemplo: um grupo
africano tem suas lendas e cosmogonias que segundo eles explicariam
tudo desde a origem dos tempos, mas quando entra em contato com
representantes de nossa sociedade acabam agregando elementos deste
contato em suas cosmogonias e passam a repeti-los como se estivessem
presentes desde sempre, ficando muito difícil ao observador atual saber o
que já estava antes e o que se agregou pelo contato.
Estes povos
pensam de forma diversa do que nós nos acostumamos a pensar o tempo. Ele
não é um fluxo integrado, uniforme e regular de eventos que se
encadeiam sucessivamente numa sequência. Poderíamos dizer que o tempo
não é para eles linear e plano. O problema para nossa arrogante sensação
de superioridade intelectual, que esta concepção está mais próxima da
forma como a física contemporânea pensa o tempo. Para os físicos de hoje
e a noção de “contínuo espaço-tempo”, não há dúvidas que o tempo, assim
como o espaço, é curvo.
Para além
das grande implicações de tais aproximações para o conhecimento do
universo, nos interessa aqui uma dimensão mais prosaica. Um ser de nossa
época tende a compreender sua localização tempo-espacial como um ponto
bem determinado entre um conjunto de eventos passados que culminam numa
configuração de um presente e que se abre a um devir que chamamos de
futuro. Mas a questão que nos interessa aqui é a que distancia estamos
deste devir. Não se trata de uma distancia no espaço que possa ser
medida em quilômetros ou milhas, mas uma dimensão de tempo.
Alguém no
meio da época medieval que se perguntasse quando tudo isto vai mudar
poderia ter como uma resposta de um ser do futuro que ainda restaria
algo entorno de quinhentos anos, o que o deixaria um tanto quanto
angustiado. Um diggers na Inglaterra do século XVII, que
acreditava que a revolução em curso derrotaria a monarquia e acabaria
com a desigualdade entre os seres humanos com o fim da propriedade e a
igualdade real de direitos teria ainda que ver a solução de compromisso
entre a revolução burguesa e a monarquia sobrevir até o século XXI e a
esperada igualdade adiada uma e outra vez. No conhecido poema de Brecht,
no qual afirma que as eras não começam de uma vez, de forma que seu avó
poderia estar vivendo em um novo tempo e seu neto, talvez, ainda
vivesse no velho, nos dá uma idéia desta “curvatura” do tempo nas
dimensões históricas.
Tal fenômeno
que no campo da física Einstein denominou de “discrepâncias” e que
levariam ao que identificou como “dilatação-contração” do tempo, no caso
da história e sua percepção pelos indivíduos não tem uma explicação
física, mas se sustenta em algo semelhante. O indivíduo tem ele próprio
uma dimensão temporal, mas se inclui num fluxo histórico que se expressa
em uma outra dimensão temporal, isto é, um ser que dura em sua
existência individual algo cerca de uns setenta anos, tenta apreender um
fluxo que só pode se resolver na escala de séculos, por vezes milênios.
Consideremos
algumas grandezas: o sistema solar teria se formado há aproximadamente
cinco bilhões de anos; a terra se formou há quatro milhões e meio de
anos; a vida na terra cerca de meio bilhão de anos depois e somente há
cerca de seis milhões de anos começam a surgir os chamados hominídeos e
há três milhões e meio de anos é que “Lucy”, uma astrolopitecus
afanasis, andava por aquilo que hoje seria a Etiópia. O nosso velho e
bom homo sapiens datariam de100 a 130 mil anos.
As formas
societárias que consideramos na chamada história antiga, os egípcios,
por exemplo, organizavam-se por volta de três mil anos e nossa atual e
medíocre sociedade capitalista emergiu da crise da forma feudal européia
entre o século XVI e XVIII, portanto tem ridículos quinhentos ou
seiscentos anos. Isso significa que considerando somente a história do
homo sapiens o capitalismo é menos e 0,5% de nosso tempo e considerando
dos hominídeos para cá, algo próximo de 0,01%.
O problema é
que para nossa dimensão temporal parece ser eterno. Pensemos no
seguinte exemplo. Uma formiga tenta atravessar um campo de um
quilometro. Ela levaria, em sua velocidade habitual de0,20 cmpor
segundo, algo como dois meses, que é o que vive certas formigas. Para
ela uma distancia de dois quilômetros passa a ser inimaginável, se é que
formigas perdem tempo imaginando estas coisas. O capitalismo para nossa
vida media de setenta anos seria como sete campos destes, o
desenvolvimento do homo sapiens cerca de mil e quatrocentos destes
campos.
Nosso
psiquismo não suporta esta dimensão, por isso repartimos o tempo em
ciclos menores para nos dar a impressão de que encerramos algo e que
iniciamos outro momento. É o significado dos ritos de passagem da vida
da criança para a adulta e do fim do ano e seus festejos. Fazemos o
balanço do que fizemos, prometemos melhorar, iniciar aquele regime
adiado, organizar de forma mais eficiente as contas para não estourar o
cartão, comemos lentilha, guardamos uma semente de romã na carteira e
assistimos o show do Roberto Carlos.
No entanto,
não podemos fazer isso nos fins dos ciclos históricos. A função do ciclo
é dar a impressão daquela uniformidade e regularidade que nos falava
Elias, mas o fim dos ciclos históricos nos coloca diante do salto de
qualidade, da ruptura, da transformação da quantidadeem qualidade.
Pareceque o tempo passa mais rápido. Os acontecimentos se precipitam, a
conjuntura se comprime em momentos decisivos, em dez dias que abalam
todo o mundo, em meses que mudam um país, em semanas que desfazem um
governo, em horas em que se produzem fusões que se mantiveram inertes
por décadas e séculos. O mundo se move sob nossos pés, tão rápido que
começa a causar vertigem nos mais desavisados. Tudo que é sólido se
desmancha no ar.
O ano vai
acabar inexorávelmenteem dezembro. Maso século XX acabou e o século XXI
ainda não começou, configurando um paradoxo que nem Einstein
compreenderia totalmente. Estamos no meio de uma transição histórica.
As consciências em tempos como estes recorrem a um subterfúgio: o fim do
mundo. Foi assim no final do feudalismo como provam as profecias de
Nostradamus e os diversos mitos que pululavam no final do período
medieval. Agora neste fim de ciclo que vivemos recupera-se o calendário
Maia para afirmar o fim do mundo em dezembro de 2012.
Os Maias
trabalhavam com ciclos de mais ou menos cinco mil anos e acontece que
para eles o mundo já acabou várias vezes e várias vezes foi
reconstruído. Mas de todos os fins do mundo esse talvez seja o mais
ridículo. Empresas norte americanas estão ganhando bilhões construindo
abrigos e arcas, vendendo kits na internet (com lanternas e sopas
prontas), seitas se mudam para a Argentina para morar em cabanas de
pedra sem luz elétrica (talvez por acreditarem que se não verem o
noticiário na TV escapem da hecatombe) e Hollywood faz filmes em que as
arcas são construídas na China e só os que puderem pagar é que
embarcarão para a salvação.
Assim é que
juntamos nossas orações com os companheiros Maias para que este ciclo e
este mundo realmente acabe o mais rápido possível e desejamos à todos um
novo ciclo e século novo no qual continuaremos ocupados em superar a
pré-história e iniciar a verdadeira história da humanidade, dando mais
um passo de formiga para atravessar este enorme campo que se abre diante
de nossos pés cansados… até que o sol se apague daqui há seis bilhões e
meio de anos, mais ou menos quando toda a humanidade deverá ter
transitado dos combustíveis fósseis para a energia solar.
***
Mauro Iasi é
professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da
ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas),
do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002)
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