Por João Alexandre Peschanski.
Um dos
efeitos da crise econômica atual é um crescente interesse pela economia
política marxista. Foi noticiado em 2008 que as vendas das obras de Marx
haviam aumentado nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, a cuidadosa
coleção Marx e Engels está regularmente no topo dos mais vendidos da
Boitempo. É o caso dos Grundrisse –
como noticiou Emir Sader no Facebook –, o livro mais vendido pela
editora em 2011, por mais que se trate de uma obra relativamente
difícil.
A crise
econômica também estimulou novas pesquisas sobre os determinantes de
contradições sistêmicas e, mais do que isso, fomentou um novo e
interessantíssimo debate entre marxistas. O debate é um exercício
fundamental na evolução do pensamento marxista e, mais do que isso, dá
fôlego novo à economia política. Marx era um polemista e muitas de suas
obras foram réplicas a teóricos contemporâneos, que levaram a tréplicas e
assim por diante. Houve controvérsias entre Lenin e Rosa Luxemburgo
sobre a organização do processo revolucionário e, especialmente nas
décadas de 1960 e 1970, marxistas se opuseram sobre a questão da
transição do feudalismo ao capitalismo, do socialismo de mercado e do
Estado, entre outras. Além disso, houve importantes discussões, às vezes
acaloradas, sobre os determinantes de contradições sistêmicas no
capitalismo, isto é, de crises, que opuseram os defensores da queda
tendencial da taxa de lucro, do subconsumo e da compressão do lucro.
O novo
debate entre marxistas está relacionado aos determinantes da crise
atual. Há pensadores que defendem que a crise atual diz respeito à
variedade de capitalismo na qual estamos (o neoliberalismo) e, por isso,
tem seu ponto de contradição em um período recente. Nessa perspectiva, a
recessão econômica surge e se mantém pelas ineficiências dos mecanismos
que levaram à expansão do neoliberalismo. Defendem essa tese, entre
outros, Gérard Duménil e Dominique Lévy (The Crisis of Neoliberalism, 2011) e David Harvey (O enigma do capital, publicado pela Boitempo no final de 2011 [à venda em ebook na Gato Sabido e Livraria Cultura]).
Sugerem, de certo modo, que a crise atual não é do capitalismo no
geral, mas de uma forma específica da organização da acumulação do
capital; portanto, a crise não é necessariamente do capitalismo, mas se
dá no capitalismo. Numa recente e ótima entrevista a Armando Boito Jr.,
no Jornal da Unicamp, Duménil expõe sua tese:
“A crise
atual não é uma simples crise financeira. É a crise de uma ordem social
insustentável, o neoliberalismo. Essa crise, no centro do sistema,
deveria acontecer, de qualquer modo, um dia ou outro, mas ela chegou de
uma maneira bem particular em 2007/2008, vinda dos Estados Unidos. Dois
tipos de mecanismos convergiram. Encontramos, de uma parte, a
fragilidade induzida em todos os países neoliberais pelas práticas de
financeirização e de globalização (notadamente financeira), motivada
pela busca desenfreada de rendimentos crescentes por parte das classes
superiores, reforçada pela recusa de regulamentação. O banco central dos
EUA, em particular, perdeu o controle das taxas de juros e a capacidade
de conduzir políticas macroeconômicas em decorrência da globalização
financeira. De outra parte, a crise foi o efeito da trajetória econômica
estadunidense, uma trajetória de desequilíbrios cumulativos, que os EUA
puderam manter devido à sua hegemonia internacional – contrariamente à
Europa que, considerada no seu conjunto, não conheceu tais
desequilíbrios.”
Contra a
tese da crise no capitalismo surgiram estudos provando que os
determinantes da contradição econômica atual são da própria dinâmica
estrutural do capitalismo. Esse tipo de argumentação não é novo,
presente nas obras clássicas de István Mészáros e François Chesnais,
entre outros, mas agora se coloca num debate com Duménil/Lévy e Harvey.
Andrew Kliman (The Failure of Capitalist Production, 2011) contesta os dados que estes apresentam para justificar a tese da crise no capitalismo. Chris Harman (Zombie Capitalism,
2009), reagindo a publicações anteriores de Duménil/Lévy, sugere que o
epicentro da crise não é o sistema financeiro, o elemento
explicativo-chave da tese da crise no capitalismo, mas a indústria. Com
isso, afirma que a crise atual é, portanto, uma crise da própria
dinâmica de reprodução da acumulação do capital, ou seja, uma crise do
capitalismo.
Uma das
derivações lógicas dos defensores da tese da crise no capitalismo é que
esta pode ser resolvida por uma reorganização do capitalismo, com um
novo pacto keynesiano, por exemplo. (Harvey é mais cético, pelo menos na
retórica, do que Duménil/Lévy em relação à capacidade do capitalismo de
se reorganizar, vide seu artigo “Organizando para a transição
anticapitalista”, na Margem Esquerda n. 15.)
O outro lado, que defende que as ineficiências expressas na recessão
atual são estruturais, ou seja, do capitalismo, coloca mais claramente a
necessidade da superação da ordem atual pelo socialismo.
O debate
sobre a crise atual está apenas começando e, entre outros méritos,
recoloca a urgência de estudar e pensar seriamente a economia política —
com o mesmo nível de urgência dos desafios que uma ordem socioeconômica
em crise impõe.
***
João Alexandre Peschanski é sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda: Ensaios Marxistas.
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