CIDADES BRASILEIRAS
Terror imobiliário ou a expulsão dos pobres do centro de São Paulo
O modelo é contra os pobres que estão longe de constituírem minoria
em nossa sociedade. O modelo quer os pobres fora do centro de São Paulo.
Isso é óbvio. O que não parece ser óbvio é que, em última instância, a
determinação disso tudo é econômica. A centralidade é a produção do
espaço urbano e a mola propulsora, a renda imobiliária. E depois dizem
que Marx está morto.
Dificilmente, durante nossa curta existência, assistiremos disputa
mais explícita que esta, que opõe prefeitura e Câmara Municipal de São
Paulo (além do governo estadual), que representam os interesses do
mercado imobiliário, contra os moradores e usuários pobres, pelo acesso
ao centro antigo de São Paulo. Trata-se do único lugar na cidade onde os
interesses de todas as partes (mercado imobiliário, prefeitura, Câmara
Municipal, comerciantes locais, movimentos de luta por moradia,
moradores de cortiços, moradores de favelas, recicladores, ambulantes,
moradores de rua, dependentes químicos, e outros) estão muito claros, e
os pobres não estão aceitando passivamente a expulsão.
No restante da cidade, como em todas as metrópoles brasileiras, um
furacão imobiliário revoluciona bairros residenciais e até mesmo as
periferias distantes, empurrando os pobres para além dos antigos
limites, insuflado pelos recursos do Minha Casa Minha Vida no contexto
de total falta de regulação fundiária/imobiliária ou, em outras
palavras, de planejamento urbano por parte dos municípios. A especulação
corre solta, auxiliada por políticas públicas que identificam
valorização imobiliária como progresso.
Ao contrário do silêncio (ou protestos pontuais) que acompanha essa
escandalosa especulação que, a partir de 2010, levou à multiplicação dos
preços dos imóveis, em todo o país, no centro de São Paulo, foi
deflagrada uma guerra de classes.
Não faltaram planos para recuperar o centro tradicional de São Paulo.
Desde a gestão do prefeito Faria Lima, vários governos defenderam a
promoção de moradia pública na região. Governos tucanos apostaram em
estratégias de distinção local por meio de investimento na cultura (como
demonstraram muitos trabalhos acadêmicos) Vários museus, salas de
espetáculo, centros culturais, edifícios históricos, foram criados ou
renovados. No entanto, o mercado imobiliário nunca respondeu ao convite
dos diversos governos, de investir na região, seja para um mercado
diferenciado, seja para habitação social como pretenderam os governos
Erundina e Marta.
Outras localizações (engendradas pelas parcerias estado/capital
privado, como demonstrou Mariana Fix) foram mais bem sucedidas como foi o
caso da região Berrini/Águas Espraiadas. Outro fator que inibiu a
entrada mais decisiva dos empreendedores no centro foi a reduzida
dimensão dos terrenos. O mercado imobiliário busca terrenos amplos que
permitam a construção de uma ou de várias torres- clube, padrão
praticamente generalizado atualmente no Brasil.
Finalmente, há os pobres – com toda a diversidade já exposta – cuja
proximidade desvaloriza imóveis novos ou reformados, coerentemente com
os valores de uma sociedade que além de patrimonialista (e por isso
mesmo) está entre as mais desiguais do mundo. Aceita-se que os pobres
ocupem até áreas de proteção ambiental: as Áreas de Proteção dos
Mananciais (são quase 2 milhões de habitantes apenas no sul da
metrópole), as encostas do Parque Estadual da Serra do Mar, as favelas
em áreas de risco, mas não se aceita que ocupem áreas valorizadas pelo
mercado, como revela a atual disputa pelo centro.
Enquanto os planos das várias gestões municipais para o centro não
deslancharam (leia-se: não interessaram ao mercado imobiliário), os
serviços públicos declinaram (o acúmulo de lixo se tornou regra), num
contexto já existente de imóveis vazios e moradia precária. O baixo
preço do metro quadrado afastou investidores e, mais recentemente, nos
últimos anos… também o poder público. Nessa área assim “liberada” e
esquecida pelos poderes públicos, os dependentes químicos também se
concentraram. No entanto a vitalidade do comércio na região, que inclui
um dos maiores centros de venda de computadores e artigos eletrônicos da
América Latina, não permite classificar essa área como abandonada,
senão pelo falta de serviços públicos de manutenção urbana e políticas
sociais.
Frente a isso, a gestão do prefeito Kassab deu continuidade ao
projeto NOVA LUZ, iniciado por seu antecessor, José Serra, e vem se
empenhando em retirar os obstáculos que afastam o mercado imobiliário de
investir na área. Estão previstos a desapropriação de imóveis em
dezenas de quadras e o remembramento dos lotes para constituírem grandes
terrenos de modo a viabilizar a entrada do mercado imobiliário.
A retomada de recursos de financiamento habitacional com o MCMV, após
praticamente duas décadas de baixa produção, muda completamente esse
quadro. Os novos lançamentos do mercado imobiliário passam a cercar a
região. Vários bairros vizinhos, como a Barra Funda, apresentam um
grande número de galpões vazios em terrenos de dimensões atraentes. A
ampliação de outro bairro vizinho, Água Branca, vai se constituir em um
bairro novo .
Finalmente, o mercado imobiliário e a prefeitura lançam informalmente
a ideia de uma fantástica operação urbana que irá ladear a ferrovia
começando no bairro da Lapa e estendendo-se até o Brás. O projeto inclui
a construção de vias rebaixadas. Todos ficam felizes: empreiteiras de
construção pesada, mercado imobiliário, integrantes do executivo e
legislativo (que garantem financiamento para suas campanhas eleitorais) e
a classe média que ascendeu ao mercado residencial com os subsídios.
O Projeto Nova Luz parece ser a ponta de lança dessa gigantesca operação urbana.
Mas ainda resta um obstáculo a ser removido: os pobres que se
apresentam sobre a forma de moradores dos cortiços, moradores de
favelas, dependentes de droga, moradores de rua, vendedores ambulantes…
Com eles ali, a taxa de lucro que pode ser obtida na venda de imóveis
não compensa.
Algumas ações não deixam dúvida sobre as intenções de quem as
promove. Um incêndio, cujas causas são ignoradas, atingiu a Favela do
Moinho, situada na região central ao lado da ferrovia. Alguns dias
depois, numa ação de emergência, a prefeitura contrata a implosão de um
edifício no local sob alegação do risco que ele podia oferecer aos trens
que passam ali (enquanto os moradores continuavam sem atendimento,
ocupando as calçadas da área incendiada). Em seguida os dependentes
químicos são literalmente atacados pela polícia sem qualquer diálogo e
sem a oferta de qualquer alternativa. (Esperavam que eles fossem
evaporar?). Alguns dias depois vários edifícios onde funcionavam bares,
pensões, moradias, são fechados pela prefeitura sob alegação de uso
irregular. (O restante da cidade vai receber o mesmo tratamento? Quantos
usos ilegais há nessa cidade?).
O centro de São Paulo constitui uma região privilegiada em relação ao
resto da cidade. Trata-se do ponto de maior mobilidade da metrópole,
com seu entroncamento rodo-metro- ferroviário. A partir dali, pode-se
acessar qualquer ponto da cidade o que constitui uma característica
ímpar se levarmos em conta a trágica situação dos transportes coletivos.
Trata-se ainda do local de maior oferta de emprego na região
metropolitana. Nele estão importantes museus e salas de espetáculo, bem
como universidades, escolas públicas, equipamentos de saúde, sedes do
judiciário, órgãos governamentais.
Apenas para dar uma ideia da expectativa em relação ao futuro da
região está prevista ali uma Escola de Dança, na vizinhança da Sala São
Paulo, cujo projeto, elaborado por renomados arquitetos suíços – autores
do arena esportiva chinesa “Ninho de Pássaro” – custou a módica quantia
de R$ 20 milhões de acordo com informações da imprensa. É preciso
lembrar ainda que infraestrutura local é completa: iluminação pública,
calçamento, pavimentação, água e esgoto, drenagem como poucas
localizações na cidade.
Trata-se de um patrimônio social já amortizado por décadas de
investimento público e privado. A disputa irá definir quem vai se
apropriar desse ativo urbano e com que finalidade. A desvalorização de
tal ambiente é um fenômeno estritamente ou intrinsecamente capitalista,
como já apontou David Harvey analisando outros processos de “renovação”
de centros de cidades americanas.
A luta pela Constituição Federal de 1988 e a regulamentação de seus
artigos 182 e 183, que gerou o Estatuto da Cidade, se inspirou, em
parte, na possibilidade de utilizar imóveis vazios em centros urbanos
antigos para moradia social. Nessas áreas ditas “deterioradas” está a
única alternativa dos pobres vivenciarem o “direito à cidade” pois de um
modo geral, eles são expulsos para fora da mesma. Executivos e
legislativos evitam aplicar leis tão avançadas. O judiciário parece
esquecer-se de que o direito à moradia é absoluto em nossa Carta Magna
enquanto que o direito à propriedade é relativo, à função social.
(Escrevo essas linhas enquanto decisão judicial autorizou o despejo –que
se fez de surpresa e de forma violenta- de mais de 1.600 famílias de
uma área cujo proprietário – Naji Nahas – deve 15 milhões em IPTU, ao
município de São José dos Campos. Antes de mais nada, é preciso ver se
ele era mesmo proprietário da terra, já que no Brasil, a fraude
registraria de grandes terrenos é mais regra que exceção, e depois
verificar se ela estava ou não cumprindo a função social).
É óbvio, que o caso que nos ocupa aqui mostra a falta de compaixão,
de solidariedade, de espírito público. Crianças moram em péssimas
condições nos cortiços, em cômodos insalubres, dividem banheiros imundos
com um grande número de adultos (quando há banheiros). Com os despejos
violentos são remetidas para uma condição ainda pior de moradia pelo
Estado que , legalmente, deveria responder pela solução do problema. Num
mundo com tantas conquistas científicas e tecnológicas, dependentes
químicos são tratados com balas de borracha e spray de pimenta para se
dispersarem. Um comércio dinâmico, formado por pequenas empresas e
ambulantes, que poderia ter apoio para a sua legalização, organização e
inovação é visto como atrasado e indesejável. O modelo perseguido é o do
shopping center, o monopólio, e não o pequeno e vivo comércio de rua ou
o boteco da esquina.
O modelo é contra os pobres que estão longe de constituírem minoria
em nossa sociedade. O modelo quer os pobres fora do centro como anunciou
o jornal Brasil de Fato. Tudo isso é óbvio. O que não parece ser óbvio é
que, em última instância, como diria Althusser, a determinação disso
tudo é econômica. A centralidade é a produção do espaço urbano e a mola
propulsora, a renda imobiliária. E depois dizem que Marx está morto.
Ermínia Maricato é urbanista.
PS do Viomundo: Acrescentamos que a grande mídia
jamais tratará desta questão de forma contextualizada, já que tira uma
gorda fatia de sua renda de incorporadoras, construtoras, imobiliárias…
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