quarta-feira, 23 de novembro de 2011
O prefeito e o coronel
Obcecada por destruir um adversário político,
a família do
ministro Gilmar Mendes não mede esforços.
Vale até arruinar as finanças
de sua terra natal...
Eleito em 2008 prefeito de Diamantino, a 208 quilômetros de Cuiabá, o
notário Erival Capistrano enveredou-se por um pesadelo político sem
precedentes. Nos últimos 23 meses do mandato, Capistrano, do PDT, foi
cassado e reconduzido à prefeitura três vezes. Ao todo, ficou no cargo
apenas nove meses. Os outros 14 foram ocupados pelo candidato derrotado
nas urnas, Juviano Lincoln, do PPS, graças a um jogo de manobras
judiciais que transformou a vida de Diamantino num caos político e
administrativo. A cada troca de prefeito, os cofres municipais sofrem um
rombo de, aproximadamente, 200 mil reais. Por conta dessa situação, o
lugar caminha rumo ao precipício contábil e social.
Antes como candidato e agora como prefeito eventual, Lincoln é
patrocinado politicamente pela oligarquia local, comandada pela família
do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Mendes usa,
inclusive, expedientes do velho coronelismo nativo: vale-se de meios de
comunicação sob seu controle para atacar o adversário político. A TV
Diamante, retransmissora do SBT no município, virou arsenal de baixarias
contra o grupo de Capistrano comandado por um preposto da família, o
técnico rural Márcio Mendes. A emissora, segundo a Agência Nacional de
Telecomunicações (Anatel), é uma concessão para fins educativos à União
de Ensino Superior de Diamantino (Uned), instituição de ensino superior
fundada pelo ministro do STF.
A vida do prefeito eleito de Diamantino se tornou um inferno por ele
ter “ousado” vencer as eleições de 2008 contra Lincoln, escolhido para
suceder ao veterinário Francisco Mendes, irmão mais novo do ministro.
Chico Mendes, como é conhecido na cidade, foi prefeito de Diamantino por
dois mandatos, entre 2001 e 2008, pesou a influência política do
supremo irmão. Nas campanhas de 2000 e 2004, Gilmar, primeiro como
advogado–geral da União do governo Fernando Henrique Cardoso e depois
como juiz da Corte, não poupou esforços para eleger o caçula da família.
Levou a Diamantino ministros para inaugurar obras, lançou programas
federais e circulou pelos bairros da cidade, cercado de seguranças, para
intimidar a oposição.
Em setembro de 2008, a família Mendes- aliou-se ao grupo político do
ex-governador Blairo Maggi, eleito agora para o Senado. Os Mendes
migraram do PPS para o PR e engrossaram no estado a base de apoio do
presidente Lula. Não adiantou. Um mês depois, seriam surpreendidos pela
vitória de Capistrano por pouco mais de 400 votos de vantagem. O
prefeito eleito anunciou, de imediato, a contratação de uma auditoria
para verificar as contas da administração anterior, alvo de denúncias de
má gestão e desvio de dinheiro. Capistrano conhecia o tipo de inimigo
que havia vencido, mas não tinha noção da fragilidade de sua vitória.
A primeira cassação ocorreu em 1º de abril de 2009, três meses após
assumir a prefeitura. A decisão foi tomada pelo juiz Luiz Fernando
Kirche, titular da 7ª Vara Eleitoral de Mato Grosso. Kirche, figura
itinerante da Justiça mato-grossense na região, havia acatado uma
representação da coligação de Lincoln na qual o prefeito era acusado de
aceitar uma doação de campanha de 20 mil -reais feita mediante um recibo
com assinatura falsificada. O documento estava em nome do agricultor
Arduíno dos Santos. Em novembro de 2008, Santos depôs no Ministério
Público Estadual e confirmou a doação. Dois meses depois decidiu mudar o
depoimento e negou ter dado o dinheiro para a campanha do PDT. “Ele foi
coagido pelos capangas do candidato derrotado”, acusa Capistrano.
À época, a população de Diamantino surpreendeu-se com a rapidez do
processo contra Capistrano. Para se ter uma ideia, em oito anos de
mandato o ex-prefeito Chico Mendes sofreu cerca de 30 ações em
consequência de supostas falcatruas administrativas, mas nunca foi
incomodado pela Justiça. O juiz Kirche havia sido transferido de outra
comarca, Tangará da Serra, para assumir a vara eleitoral local. No mesmo
dia 1º, logo depois de cassar Capistrano, saiu de férias.
Coincidentemente, quatro dias antes, o ministro Mendes tinha estado na
cidade natal para rever parentes e amigos. O mesmo padrão iria se
repetir no futuro.
Capistrano reverteu a decisão e voltou ao cargo em 23 de junho do ano
passado, quando o Tribunal Regional Eleitoral acatou, por unanimidade,
um recurso do PDT. Passado pouco mais de um mês, os advogados de Lincoln
entraram com uma medida cautelar, com pedido de liminar, para que o
candidato do PPS voltasse ao cargo. Lincoln contou, desta feita, com a
boa vontade do desembargador Evandro Stábile, então presidente do TRE de
Mato Grosso. Stábile decidiu, em 18 de agosto de 2009, cassar novamente
Capistrano e recolocar no cargo o preferido da família Mendes. O caso
foi parar no Tribunal Superior Eleitoral, em Brasília. Nove meses
adiante, uma operação da Polícia Federal mudaria novamente o rumo da
história.
Em 18 de maio deste ano, a PF deflagrou em Mato Grosso a Operação
Asafe, referência a um profeta bíblico, para identificar e prender
advogados, juízes e desembargadores envolvidos em uma quadrilha
especializada em vender sentenças judiciais. A ação foi ordenada pela
ministra Nancy Andrighi, do STJ. Entre os detidos, Evandro Stábile, que
foi afastado da presidência do TRE. Seu sucessor, Rui Ramos, derrubou a
liminar e reconduziu Capistrano ao cargo em 13 de junho, pela terceira
vez. Em seguida, a relatora do processo de Capistrano no TSE, Cármen
Lúcia, considerou a medida cautelar impetrada pelo PPS inválida, dada a
nulidade geral do processo. A ministra lembrou que a jurisprudência
sobre esse tipo de ação determina que os prefeitos permaneçam no cargo
até esgotadas todas as instâncias judiciais. Em vão.
A decisão do TRE havia sido tomada por um vício processual detectado
pelo desembargador Ramos. A vice-prefeita eleita, Sandra Baierle, também
do PDT, não foi ouvida em nenhuma das fases da instrução processual.
Como ela também fora cassada, era necessário tomar seu depoimento nos
autos. Por conta disso, o processo retornou à origem, a 7ª Vara
Eleitoral de Diamantino. Novamente para as mãos do diligente juiz
Kirche. Este voltaria a agir, quatro meses depois, para tirar Capistrano
outra vez da prefeitura.
A data escolhida pelo juiz não poderia ser mais emblemática: 30 de
outubro, um dia antes do segundo turno da eleição presidencial,
justamente quando acabara de chegar à cidade seu filho mais ilustre,
Gilmar Mendes. Como no primeiro ato de cassação, Kirche fez a Justiça
funcionar a todo vapor em Diamantino para sair de férias em seguida. Na
mesma noite, enviou um oficial de Justiça para notificar Capistrano e
fazê-lo sair da cadeira de prefeito, mas não o encontrou.
Em 1º de novembro, véspera de feriado do Dia de Finados, com a
prefeitura de Diamantino em regime de ponto facultativo, novamente o
oficial viu-se frustrado. Foi avisado pela família de Capistrano que ele
estava em uma pescaria. Na manhã do dia 3, não houve escapatória.
Notificado, o pedetista deixou novamente o cargo para dar lugar ao
concorrente derrotado nas urnas. Capistrano entrou com novo recurso e
espera voltar ao mandato antes do fim do ano. “Não adianta, não vou
renunciar e vou até as últimas consequências.”
A auditoria feita por Capistrano nos dois primeiros meses de mandato
revelou um corolário de maracutaias, sobretudo, no setor de compras.
Quando as escolhas eram feitas por carta–convite, os produtos eram
adquiridos por até 66,13% acima dos preços pesquisados.- Quando eram por
tomada de preço, o índice chegava a 90% de superfaturamento. “Todos os
processos licitatórios apresentam irregularidades”, concluíram os
auditores.
Ao assumir a prefeitura, Capistrano encontrou uma dívida de INSS de
8,2 milhões de reais e outra, de energia elétrica, de 6,2 milhões de
reais. Muitos contratos eram feitos sem nenhuma lógica administrativa.
De uma papelaria de Cuiabá chamada Mileniun foram comprados fogão,
geladeira, máquina de lavar, sofá e televisão para a prefeitura no valor
de 267,6 mil reais. Muitas propostas apresentadas pelas empresas eram
exatamente iguais, na forma e no conteúdo, mas com diferenças mínimas de
preço (cerca de 0,3%), expediente típico de simulação de licitação.
Em meio à disputa judicial, Capistrano e seus aliados têm enfrentado a
fúria diária do “jornalista” Márcio Mendes, no comando da TV Diamante
desde 2009. Mendes apresenta um programa matutino chamado Comando Geral.
Sua especialidade é insultar e acusar diuturnamente Capistrano de
malfeitorias.
Ao melhor estilo do coronelismo eletrônico.
Ao melhor estilo do coronelismo eletrônico.
A Uned, dona da concessão da tevê, foi fundada em 2000 por Gilmar
Mendes. Quem operacionalizou a escola foi Marco Antônio Tozzati, acusado
de integrar uma quadrilha de fraudadores que atuavam no Ministério dos
Transportes na gestão de Eliseu Padilha. Não há como Márcio Mendes agir
sem o conhecimento do ministro do STF.
Além da TV Diamante, Márcio comanda um jornal e o site O Divisor.
Também nesses veículos seu esporte preferido é atacar Capistrano,
chamado por ele de “prefeito interino” ou “o ainda prefeito” toda vez
que retorna ao cargo, embora tenha sido eleito. Mendes desenvolveu um
ódio especial pelo grupo de Capistrano depois de perder dois contratos
de trabalho, firmados na época do prefeito Chico Mendes. Um, de
assessoria de imprensa da Câmara de Vereadores, que rendia 3,6 mil
mensais. Outro, na prefeitura, via a agência de propaganda Zoomp,
custava 15 mil reais por mês aos cofres municipais.
Goiano de Joviana (daí o nome Juviano), Lincoln se diz ofendido
quando chamado de usurpador. Segundo ele, as cassações de Capistrano são
resultado de decisões da Justiça, e não da família Mendes. Ele
reconhece, porém, que o município está se tornando ingovernável. “Sei
que atrapalha, seria muita infantilidade minha não reconhecer isso.”
Lincoln garante não se subordinar a Gilmar Mendes, embora faça questão
de lembrar que é amigo da família desde a adolescência. “Esse processo
não tem nenhuma influência do ministro, é idiotice pensar isso”, afirma.
“O ministro (Gilmar Mendes) é eleitor do Serra, e os Mendes todos
votaram no Serra”, informa Lincoln, ao se declarar apoiador de Dilma
Rousseff.
Segundo Lincoln, os custos adicionais, sobretudo com pagamento das
rescisões contratuais dos cargos comissionados, todos mudados a cada
reviravolta na prefeitura de Diamantino, são naturais, mas reconhece a
frustração do adversário. “Eu não queria estar na pele do Erival. Acho
até que ele confiou no contador (no caso dos recibos supostamente
falsificados) e caiu de inocente.” Apesar da insistência em permanecer
no cargo, diz não pensar na reeleição. Prefere apoiar a volta do amigo
Chico Mendes. “Por motivos políticos, sou contra a reeleição.”
“Em Diamantino, quando se ouve o barulho de rojão, ou é mudança de
prefeito ou é chegada de crack”, ironiza a enfermeira Mônica Gomes,
secretária de Saúde do município nos períodos em que Capistrano ocupa a
prefeitura. Segundo ela, a descontinuidade administrativa provocada pela
mudança de prefeitos está prestes a provocar um colapso no sistema de
saúde local, inclusive nos programas de atendimento a drogados e
pacientes com Aids. O controle da dengue também estaria sob risco, sem
falar nos convênios firmados com o governo do estado e com o Ministério
da Saúde. “Temo uma evasão de médicos e outros profissionais de saúde
por causa do desencanto provocado por esse caos.”
Secretária de Administração da gestão de Capistrano, Cleide Anzil,
servidora do município há 18 anos, afirma que cada mudança de prefeito,
além de gerar um custo de 200 mil reais em rescisões contratuais
desnecessárias, torna a contabilidade da prefeitura inviável. De acordo
com ela, quando Capistrano reassumiu o cargo pela terceira vez, em
junho, o orçamento do município para o ano de 2010, de cerca de 50
milhões de reais, havia sido consumido por Lincoln. “Tivemos de pedir
uma suplementação (à Câmara Municipal) para pagar as contas, mas depois
tivemos de sair de novo”, conta, desanimada. “Não sei onde essa loucura
vai parar.”
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