Aproveitando
o ensejo da publicação, no semestre passado, de uma alentada seleção,
em três volumes, de textos de Rosa Luxemburg, seguem algumas observações
sobre o primeiro livro da série, que aborda uma questão ao mesmo tempo
perene e atual.
Parte
da força e do impacto do “revisionismo” na passagem do século XIX ao XX
deriva do fato de que não se tratava de mais um projeto de reformulação
do marxismo oriundo do campo burguês, mas de uma autocrítica levada
adiante por um dos expoentes da Internacional Socialista. Integrado à
social-democracia alemã desde 1872, discípulo e amigo de Engels (que lhe
legou seu testamento literário, isto é, a responsabilidade pela edição
dos textos ainda inéditos seus e de Marx), o renome de Eduard Bernstein,
a sua importância no processo de constituição de um marxismo autóctone
no âmbito da Segunda Internacional, exigiu um combate redobrado por
parte da ortodoxia partidária, tarefa desempenhada, concomitantemente,
por Karl Kautsky e Rosa Luxemburg.
Apesar do sucesso do Anti-Bernstein de Kautsky,[1] comprovado por sua tradução imediata em diversos idiomas, a réplica às teses de Bernstein exposta por Rosa Luxemburg em Reforma social ou revolução?
consagrou-se – tanto entre os contemporâneos quanto perante à
posteridade – como a mais ardorosa e competente refutação do
“revisionismo”.
Recém-chegada
à Alemanha e à vida partidária, após se doutorar na Suíça sob a
orientação de Julius Wolf com uma tese sobre o desenvolvimento
industrial na Polônia,[2] Rosa
Luxemburg demonstrou, nessa sua primeira intervenção, não só, como se
esperava, um profundo conhecimento do funcionamento da economia
capitalista (contestando Bernstein num terreno onde era evidente sua
fragilidade), mas também um insuspeito pendor teórico. Seu domínio da
obra de Marx, a facilidade e a segurança com que aplica os princípios da
doutrina aos diferentes casos específicos, aliados a um estilo marcado
pela clareza e concisão (elementos decisivos numa polêmica), fizeram
desse livro um sopro rejuvenescedor da ortodoxia marxista.
Escritos no calor da hora, quase ao mesmo tempo em que Bernstein redigia Os pressupostos do socialismo e as tarefas da social-democracia,
os artigos de Rosa Luxemburg não se ocupam propriamente das premissas
do marxismo submetidas, por Bernstein, ao exame e à revisão crítica.
Apesar dessa recusa (pouco importa se deliberada ou não) em pautar a
discussão em termos doutrinários ou exegéticos, o ponto mais destacado
de Reforma social ou revolução? foi a determinação dos nexos
que permitem conjugar um programa de reformas com a luta por objetivos
revolucionários. A resolução que propôs para essa questão constitui um
nítido esforço para recompor a fenda provocada no interior do marxismo
pela separação completa entre esses dois procedimentos estabelecida pela
prática reformista.
Procurando
evitar as armadilhas do raciocínio abstrato que induziu Bernstein a
desvincular reforma de revolução, “emancipação econômica” de “luta de
classe política”, reposicionando-os como formas de combate distintas e
até mesmo antagônicas, Rosa Luxemburg reconstitui historicamente
as modalidades de articulação entre essas duas táticas. Seja na
ascensão da burguesia ou, de modo geral, na história das lutas de
classe, a camada ascendente serviu-se sempre tanto da reforma (enquanto
meio de se fortalecer) quanto da revolução (como forma de se apossar do
poder político). Nessa perspectiva, a relação entre esses dois métodos
de luta, longe de ser indiferente, configura uma vínculo de
complementaridade dialética. Trata-se, nas suas palavras, de “fatores
diferentes do desenvolvimento da sociedade de classes, que condicionam e
complementam um ao outro igualmente, porém, ao mesmo tempo, excluem-se,
assim como, por exemplo, o polo Sul e o polo Norte, a burguesia e o
proletariado”.[3]
A opção dos
revisionistas por uma única alternativa, o descarte da estratégia
revolucionária decorre, segundo Rosa Luxemburg, de uma avaliação que
atribui à política de reformas um potencial de transformação social que
ultrapassa em muito sua capacidade real. Primeiro, porque o conteúdo e o
sentido das reformas são predeterminados pelo arcabouço legal, por uma
constituição cujos delineamentos gerais normalmente apenas ratificam os
princípios da revolução precedente:
O esforço
pelas reformas não contém, em si, força motriz própria, independente da
revolução; em cada período histórico ele apenas se movimenta sobre a
linha, e pelo tempo em que permanece o efeito do pontapé que lhe foi
dado na última revolução ou, dito de maneira concreta, apenas no quadro
da forma social criada pela última transformação.[4]
Além disso,
por mais bem executada que seja ou por mais favoráveis que sejam as
condições para sua implementação, essa política nunca levaria à
supressão do capitalismo porque deixa intocada a base da desigualdade
social no mundo burguês: o regime de assalariamento. Afinal, a dominação
do capital não se assenta em direitos adquiridos ou em outra forma
jurídica qualquer, porém, numa relação econômica na qual “a
força de trabalho desempenha o papel de mercadoria”, fato esse em si
perfeitamente compatível com uma situação de igualdade jurídica e
política.
Com tais
argumentos, matriz de diversas vertentes de discursos revolucionários ao
longo do século XX, Rosa Luxemburg imagina ter debelado a ameaça de
desagregação do campo marxista representada pelo revisionismo.
Entretanto, Reforma social ou revolução? não pode ser
considerado apenas como um libelo genérico em defesa da unidade do
marxismo. Em geral, as teses que ela contrapõe ao revisionismo, bastante
afinadas com a concepção teórica e a prática política predominantes na
social-democracia alemã, também contribuíram para legitimar (em nome de
um compromisso com a revolução que, diga-se de passagem, o SPD no
decorrer do tempo manteve apenas no papel) a linha programática
implementada pela direção partidária e teorizada por Kautsky.
Embora os
ensinamentos da história pareçam suficientes para elucidar o nexo entre
reforma social e revolução, desmontando a exigência bernsteiniana de uma
escolha dicotômica entre esses encaminhamentos, permanece ainda em
aberto a seguinte questão: a eficácia da tática do SPD, centrada na luta
por direitos (políticos, trabalhistas e mesmo de associação econômica),
não justificaria, como quer Bernstein, um programa de reformas
positivas que eleve ao primeiro plano as tarefas imediatas até então
relegadas à condição de simples meios para se atingir o objetivo final,
noutras palavras, o trabalho de organização e esclarecimento da classe
operária não deveria estar orientado por uma ênfase nas reformas?
Aqui, a
consulta aos modelos do passado já não basta, pois a proposta de
Bernstein de reformulação da doutrina política da socialdemocracia
apresenta-se como uma correção de rumos determinada pela modificação do
padrão de desenvolvimento do capitalismo. Tampouco vale o argumento,
meramente retórico, mas reiterado em quase todos os artigos, segundo o
qual os revisionistas decidem entre uma ou outra tática levando em conta
apenas critérios subjetivos tais como a comparação entre vantagens e
inconvenientes de cada forma de luta.
Rosa Luxemburg não ignora isso. Muito pelo contrário, logo no início do livro adverte que
“o essencial
dos argumentos de Bernstein não se encontra, em nosso entendimento, em
seus pontos de vista sobre as tarefas práticas da social-democracia, mas
sim naquilo que ele diz sobre o curso do desenvolvimento objetivo da
sociedade capitalista, com a qual esses pontos de vista estão
estreitamente associados.”[5]
Bem pesada,
essa afirmação traduz mais que uma informação acerca dos pressupostos da
teoria econômica e política do socialismo reformista, pode ser vista
também como um anúncio do terreno em que Rosa levará adiante a discussão
com Bernstein.
Sugestões de leitura
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.
BADIA, Gilbert. “Social-democracia e imperialismo”. In: LOUREIRO, Isabel e VIGEVANI , Tullo (orgs.). Rosa Luxemburg: A recusa da alienação, p. 53-60. São Paulo, Unesp, 1991.
LUXEMBURG, Rosa. Reforma social ou revolução? In: LOUREIRO, Isabel (org.). Rosa Luxemburgo: Textos escolhidos, vol. I, p. 1-88. São Paulo, Editora Unesp, 2011.
[1] Abreviatura pela qual ficou conhecida a coletânea Bernstein und das sozialdemokratische Programm. Eine Antikritik.
[2]
Para uma breve apresentação da trajetória política e intelectual de Rosa
Luxemburg confira BADIA, Gilbert. “Socialdemocracia alemã e
imperialismo” ou então ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios, p. 37-55.
[3] LUXEMBURG, Rosa. Reforma social ou revolução?, p. 68.
[4] Idem. Ibidem, p. 68.
[5] Idem. Ibidem, p. 6.
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