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segunda-feira, 19 de março de 2012

Punir ou anistiar?

Major Sebastião Curió, oficial remanescente da ditadura, abre o arquivo secreto da Guerrilha do Araguaia, em junho de 2009 (fonte: Portal R7)
Por Edson Teles.

Punir ou anistiar? Esta é uma das questões que hoje nos são impostas pela herança da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Tais como as ditaduras na Argentina e no Chile, o governo militar brasileiro se caracterizou pela sistemática violação aos direitos de seus cidadãos por meio de um brutal aparato policial-militar. E pior: o esquema repressivo foi montado e mantido pelo Estado, que institucionalizou a prisão, a tortura, o desaparecimento e o assassinato de opositores.


 Hoje, o país se vê com o problema de como conciliar o passado doloroso com o presente, administrando conflitos que não se encerraram com a mera passagem institucional de um governo de exceção para um democrático. Por que passadas décadas dos crimes parcela considerável da sociedade demanda por justiça? Deve-se julgar e punir os responsáveis pelas violações aos direitos humanos? Ou eles podem ser anistiados em nome da reconciliação nacional?
Vimos, recentemente, dois movimentos contrários que apontam para a questão colocada. A apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF) de que a Lei de Anistia foi válida para os “dois lados” (refere-se aos torturadores do Estado e àqueles que resistiram ao regime militar); e a recente decisão e encaminhamento do Ministério Público Federal de processo criminal por casos de desaparecimento político durante a ditadura.
Em maio de 2010, o STF decidiu negar o pedido de reinterpretação da Lei de Anistia de 1979 solicitado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Sob a alegação de que a lei havia sido fruto de um amplo acordo político de reconciliação do país, o Supremo silenciou-se sobre as graves violações dos direitos humanos durante a ditadura militar. Considerou que um Congresso sob o bipartidarismo, com senadores biônicos e sob leis de exceção, com mortes e prisões ocorrendo em todo território nacional, tinha legitimidade suficiente para representar os interesses da sociedade brasileira. Ainda que tivéssemos produzido um acordo de saída do regime ditatorial, qual é o empecilho de dizermos, hoje, sem a presença marcante e forte de forças golpistas e ilegais atuando abertamente, que vivemos em um país no qual a tortura não é aceita. É digno de uma democracia que a suprema instituição de justiça do país confirme anistia para funcionários públicos que torturaram, mataram e desapareceram com pessoas que pensavam de modo diferente ou agiam para resistir aos atos de violência? De fato, o STF, de acordo com o jogo de forças, suspende o ordenamento jurídico criando um estado de exceção dentro do Estado de Direito: a anistia aos torturadores.
Por outro lado, agora, no fim de março de 2012, quase dois anos após a decisão do STF, procuradores da República, reunidos no grupo de trabalho “Justiça de Transição”, decidiram entrar com ação criminal contra o coronel Sebastião Curió, comandante de forças de repressão à Guerrilha do Araguaia, no início dos anos 1970. Curió foi apontado por diversas testemunhas como o responsável pela prisão, tortura e desaparecimento de cinco guerrilheiros capturados com vida. Parte das testemunhas é formada por pessoas torturados pelo próprio Curió, enquanto outros são militares que, em momentos diversos, assumiram oficialmente a prisão das vítimas sob comando do coronel. A Procuradoria se vale da lógica penal sobre o crime de sequestro (semelhante juridicamente ao desaparecimento), o qual não se encontra finalizado enquanto o corpo não é localizado (caindo a chancela de impunidade do STF para crimes cometidos até 1979).
O fato é que, independentemente da lei brasileira de 1979, o Brasil tem assinado desde 1946 acordos internacionais – com poder de lei para os países aderentes – que condenam os crimes contra a dignidade humana e os tornam imprescritíveis. Ou seja, a qualquer tempo, entre a data do crime e a abertura de investigações, o Brasil é obrigado a tomar providências em favor da punição dos responsáveis.
Há três condições para que um crime seja qualificado como de lesa humanidade: ter sido autorizado por agentes ou instituições do Estado, ser cometido por razões políticas, religiosas ou étnicas e atingir uma determinada parte da população civil. Durante a ditadura, o governo militar criou os departamentos de operações de informação (DOI-CODI), que funcionavam dentro de quartéis, e institucionalizou a tortura, o assassinato e o desaparecimento. Segundo o Ministério da Justiça, até o ano de 2011, cerca de 65 mil brasileiros entraram com pedidos de indenização por terem sofrido alguma violência durante o regime militar.
Além disso, o argumento de que a retomada do assunto nos dias de hoje poderia causar algum dano às instituições democráticas não nos convence. De acordo com pesquisa realizada em 20 países – incluindo os países da América do Sul herdeiros de ditadura, como o Brasil –, pela cientista política norte-americana Kathryn Sikkink, da Universidade de Minnesota, os países que julgaram e puniram os criminosos dos regimes autoritários sofrem menos abusos de direitos humanos em suas democracias. O estudo atesta que a impunidade em relação aos crimes do passado implica incentivo a uma cultura de violência nos dias atuais. Não é à toa que assistimos frequentemente às notícias de tortura e desrespeito aos direitos em nossas delegacias, quartéis e dependências de segurança do Estado.
Enquanto os torturadores do passado recente não forem julgados e punidos, não teremos êxito nas políticas de diminuição da violência na democracia. É preciso que o governo nomeie e coloque para funcionar a Comissão Nacional da Verdade e que o judiciário assuma sua responsabilidade e tarefa e apure as circunstâncias dos crimes da ditadura e puna os responsáveis. Somente assim teremos como superar a presença da violência do passado e construir uma democracia estável e respeitosa.
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Para aprofundar a discussão sobre a herança social, política e cultural da ditadura militar, recomendamos a leitura de O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010), coletânea de ensaios organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle. A versão em ebook acaba de ter seu preço reduzido para apenas R$26. Compre nas livrarias CulturaSaraiva e Gato Sabido.
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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

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