Por Giovanni Alves.
Nos
primórdios do século XXI, torna-se cada vez mais visível, numa
perspectiva histórico-mundial, o que Karl Marx e Friedrich Engels
salientaram em A ideologia alemã, como sendo a grande massa da humanidade “destituída de propriedade” que está em contradição (e não apenas em contraste)
com um mundo existente de riqueza e cultura, o que pressupõe, portanto,
um grande aumento da força produtiva e um grau elevado do seu
desenvolvimento. É por isso que, nas condições do capitalismo global e
da crise estrutural do capital, coloca-se, objetivamente, de modo mais
pleno, a necessidade histórica do comunismo como condição irremediável
da emancipação de indivíduos histórico-mundiais de sua alienação radical
das condições da vida social.
A grande
massa da humanidade “destituída de propriedade” é constituída hoje pela
multidão de proletários. Como diz o lema do movimento social Occupy nos
EUA, “we are the 99%”. No plano categorial, a grande massa da
humanidade alienada do controle social representa hoje a “classe” social
do proletariado: “classe” com aspas tendo em vista que, apesar de
estarem subsumidos à condição de proletariedade, só tornam-se
efetivamente classe social – sem aspas – na medida em que aparecem, com
maior ou menor efetividade, como sujeito histórico em si/para si.
Portanto, no
sentido radical, “proletário” é o homem ou mulher destituído da
propriedade dos meios de produção da vida social, isto é, alienados do
controle social e imersos na condição existencial de proletariedade e
não apenas o pauper ou trabalhadores assalariados miseráveis
com ampla prole. Por exemplo, o conceito de proletariado abrange hoje as
camadas médias assalariadas que podem ser consideradas proletários de
“classe média”. Deste modo, a dita crise da “classe média” que ocorre no
capitalismo global expressa tão somente hoje, no plano contingente, a
ampliação e explicitação, no plano da percepção social, da condição de
proletariedade das camadas médias assalariadas (o que não significa que
tenham se tornado membros da classe social do proletariado tendo em
vista os obstáculos efetivos à constituição da consciência de classe nos
segmentos médios do proletariado).
O
crescimento das novas camadas médias de jovens proletários assalariados
mais qualificados, desempregados ou inseridos em contratos de trabalho
atípicos ou precários e que compõem hoje, principalmente nos países
capitalistas mais desenvolvidos, o mundo do trabalho do século XXI – o
dito “precariado” – é expressão suprema, no plano histórico-mundial, da
explicitação da condição de proletariedade. Ela representa hoje a
contradição candente do capital em sua etapa de crise estrutural. De
fato, os jovens proletários carregam, em si, inscritos no seu ser, como
estigma geracional, as desmedidas negativas do sistema produtor de
mercadorias, que, por um lado, destitui homens e mulheres de propriedade
e controle da vida social, e, por outro lado, ao mesmo tempo, acumula e
concentra imensa riqueza e cultura.
A ampliação da condição de proletariedade do “precariato” ocorre, pari passu,
com o incremento da manipulação que nega, no plano da percepção e do
entendimento dos indivíduos históricos mundiais, a auto-consciência de
classe. A invisibilidade social da natureza de classe do “precariato” é o
processo ideológico supremo do capitalismo manipulatório. Na medida em
que se ampliam as contradições vivas do capital, impulsiona-se com
intensidade, a desefetivação humano-genérica, isto é, a precarização dos
sentidos humanos capazes de “negação da negação”. Um dos alvos
privilegiados da manipulação social são hoje, os jovens proletários mais
qualificados que carregam em si e para si, a contradição suprema do
capital em sua fase de crise estrutural.
A
problemática geracional dos jovens proletários diz respeito não apenas a
delimitações etárias, mas ao modo de controle do metabolismo social do
novo proletariado hipertardio nas condições do capitalismo manipulatório
com seu complexo de obstáculos efetivos à constituição da consciência
de classe e, portanto, à constituição da classe social do proletariado
como sujeito histórico efetivo capaz de “negação da negação”.
Nos países
do capitalismo central, a temporalidade histórica dos “trinta anos
perversos” (1980-2010) provocou cortes geracionais significativos no
plano sociometabolico da “classe” do proletariado. Aceleração da mudança
tecnológica na produção e no consumo, reação política neoconservadora e
precariedade laboral com implosão dos laços de solidariedade de classe,
projetaram as novas gerações de homens e mulheres proletários noutra
dimensão sócio-histórica. A nova dinâmica sociometabolica do capital
provocou segmentações inter-geracionais caracterizadas por clivagens na
experiência vivida e experiência percebida de formações etárias da
classe trabalhadora.
Na verdade, o
novo modo de controle sociometabolico do capital operou fraturas
salientes na experiência do tempo social. Eric Hobsbawn, no livro A era dos extremos,
observou o fenômeno da “presentificação crônica”. Diz ele: “A
destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam
nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos
mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os
jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer
relação orgânica com o passado público da época em que vivem.” Por
exemplo, as mutações sociometabolicas no seio do jovem proletariado é
perceptivel no movimento estudantil dos países capitalistas mais
desenvolvidos cuja tradição da contestação social não é reconhecida hoje
pelos próprios estudantes. Na verdade, a falta de informação e de
diálogo com gerações anteriores é hoje caracteristica comum a movimentos
estudantis de todo o mundo.
Os fenômenos
sociais da destruição do passado, presentificação crônica e falta de
informação e de diálogo com gerações anteriores, isto é, alienação do
passado público da época em que vivem – que se torna mais perceptivel
com vigor, por exemplo, nas experiências dos movimentos estudantis –
constituem expressões candentes do novo modo de controle sociometabolico
do capital baseado na precarização dos sentidos humanos capazes de
“negação da negação”. Trata-se de um modo de dessubjetivação de classe
que opera a obstaculização à formação da consciência de classe e por
conseguintes, da própria classe social do proletariado como sujeito
histórico efetivo capaz de “negação da negação”.
Nos
primórdios do século XXI, o novo (e precário) mundo do trabalho é
constituído pelo amplo contingente de “jovens adulto-flexíveis”,
conceito utilizado por Renan Araújo para denominar o contingente dos
novos trabalhadores assalariados que ingressam nos novos locais de
trabalho reestruturados na década de 2000. No plano da consciência
contingente de classe, os jovens adulto-flexíveis (ou melhor,
jovens-adultos toyotizados), empregados ou desempregados, estáveis ou
precários, são portadores do que podemos denominar o “paradoxo de
Ícaro”:
Por um lado,
enquanto jovem operário ou empregado inserido na relação de contrato de
emprego estável, sente-se insatisfeito com a pressão do ambiente do
trabalho flexível e suas contrapartidas salariais; sente-se frustrado
com a realização profissional e insegurança laboral marcada pela pressão
do capital pelo cumprimento de metas e desempenho (o ideal de ganhar a
vida para perde-la repõem-se no patamar do toyotismo). Como observa
Renan Araújo, “após anos de dedicação aos estudos e de
profissionalização permanente, para a maioria a profecia não se cumpriu.
Assim, deparamos-nos com engenheiros apertando parafusos, operários
formados em Administração de Empresas operando torno CNC e outros que,
mesmo tendo cursado Ciências da Informática, passam o dia clicando em
softwares que, previamente programados, esvaziam o conteúdo do trabalho,
deixando-o sem sentido, repetitivo e enfadonho. Por todos os ângulos em
que se observa, a fábrica aqui pesquisada representa o mundo
contraditório da promessa e da negação”.
Por outro
lado, enquanto jovem operário ou empregado inserido em contratos de
trabalhos precários ou desempregados, sente-se insatisfeito pela
exclusão do universo do emprego estável e flexível no sentido do que ele
representa para as individualidades pessoais de classe: primeiro,
capacidade aquisitiva para consumir e tornar-se “cidadão do mundo das
mercadorias”. Segundo, carreira profissional com perspectiva de
futuridade (ele sente profunda angústia pela desrealização do valor
corporificado na força de trabalho como mercadoria e talento singular).
Terceiro, capacidade de organização da vida pessoal, constituindo
família e tendo seu próprio território de desenvolvimento humano.
Na medida em
que a nova geração de empregados e operários mais qualificados, jovens
proletários estáveis ou precários nasceram “órfãos” das utopias
coletivas do sindicalismo de classe ou da adesão à militância política
socialista, tornaram-se mais dispostos a concertação social, com
atitudes pró-ativas de cariz liberal. Foram produzidos no horizonte do
mercado, pré-dispostos em si e para si, a colaborarem com o capital. Por
isso, trata-se de pessoas humanas com um acervo de sonhos, expectativas
e utopias de mercado avantajadas, mas irremediavelmente frustradas pela
dinâmica férrea da relação-capital que perpetua a precariedade laboral
quase como “destino”. A ambiguidade e ambivalência diante dos valores
burgueses são marcas pessoais indeléveis destes jovens proletários
imersos no paradoxos de Ícaro (o sentimento de ansiedade e frustração
traduz no plano pessoal, a imagem mitológica da derrelição de
Ícaro).
Nesse caso,
temos a clara percepção da dialética do processo de subsunção do
trabalho ao capital que “captura”, não apenas para controlar, mas para
expropriar/espoliar o talento singular da nova geração de empregados e
operários. Na medida em que o desenvolvimento do processo de acumulação
do capital ocorre pari pasu ao processo de desenvolvimento
civilizatório como pressuposto negado, ele explicita a operação de
espoliação de riqueza intangível dos novos talentos humanos empregados
na produção do capital.
Ora, temos,
deste modo, ao mesmo tempo, espoliação e desperdício, tendo em vista que
a relação-capital não desenvolve (e nem pode desenvolver) de forma
integral, as possibilidades criativas da nova força de trabalho
complexa. Trata-se de segmento da força de trabalho como trabalho vivo
altamente qualificada no plano da competência técnico-científica, cuja
frustração decorre da irrealização profissional e desperdício
existencial de suas possibilidades humano-genéricas.
Estas novas
gerações de proletários vivem à exaustão, a disjunção pessoa-classe que
caracteriza o modo de controle sociometabolico do capital. Portanto, eis
a problemática do estranhamento que assume hoje dimensões cruciais sob o
capitalismo global. Para György Lukács, o fenômeno do estranhamento,
ocorre na medida em que o desenvolvimento das forças produtivas sociais
do trabalho ou da capacidade humana em reduzir as barreiras naturais,
não significa o desenvolvimento da personalidade humana, mas pelo
contrário, seu aviltamento e dilaceração em virtude da manipulação de
alta intensidade e amplitude que caracteriza o capitalismo tardio.
Sob o
capitalismo global, os jovens proletários mais qualificados, empregados
ou desempregados, estáveis ou precários, tornam-se hoje objetos
privilegiados de “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital,
sendo expostos de modo candente à manipulação pelo capital no plano das
experiências expectantes, isto é, experiências que organizam (ou
manipulam) anseios, expectativas e utopias pessoais.
O traço
estrutural do capitalismo global é a manipulação da subjetividade do
homem-que-trabalha. Por isso, o capitalismo global, ou seja, o
capitalismo histórico na fase de crise estrutural do capital, é
essencialmente o capitalismo manipulatório. A exacerbação da dimensão
manipulatória do capital decorre da própria natureza da dinâmica de
acumulação capitalista.
No século
XX, a produção de mais-valia relativa assumiu dimensões alucinadas. Por
exemplo, com o fordismo-taylorismo, a produção em massa, que
caracterizou o capitalismo monopolista do século passado, significou a
necessidade candente do capital de realização da massa de mais-valia
acumulada. Tornou-se crucial, mais do que nunca, vender as mercadorias
produzidas pela grande indústria. Por isso, impõe-se a centralidade da
manipulação, não apenas do trabalhador assalariado na produção, mas do
consumidor na esfera do mercado. É necessário manipular à exaustão a
subjetividade do trabalhador assalariado como produtor e consumidor.
É claro que,
desde as suas origens históricas, o capitalismo industrial buscou
realizar, por meio da venda das mercadorias, a mais-valia extraída nas
fábricas. Para isso, constituiu-se, como necessidade íntima do capital
em processo, o mercado mundial. Mas, na medida em que se desenvolveu a
grande indústria, a necessidade de realização da massa de mais-valia
relativa extraída na produção do capital, a venda dos
produtos-mercadorias no mercado mundial, tornou-se uma estranha obsessão
que delineou o sociometabolismo do capital do século XX e XXI.
O mandamento
supremo do capital como “sujeito automático” de autovalorização do
valor é acumular, acumular e acumular. Com a grande indústria e a
produção da mais-valia relativa, para que o capital possa acumular,
acumular e acumular cada vez mais, tornou-se, mais do que nunca,
imperativo vender, vender e vender. A ânsia da vendabilidade universal
elevou-se à enésima potência com a produção em massa e a constituição
plena do mercado mundial no sentido da intromissão da forma-mercadoria
na vida cotidiana da sociedade burguesa. A vigência da produção da
mais-valia relativa colocou como pressuposto da própria realização do
valor, o imperativo da venda no centro dinâmico da vida social.
A ampliação
do círculo da vendabilidade universal significou no século XX, o domínio
crucial do fetichismo da mercadoria no plano das relações humanas e
sociais. David Harvey, em seu livro O enigma do capital,
recém-publicado pela Boitempo Editorial no Brasil, observou que a
obsessão do capital é saber onde aplicar o excedente de
capital-dinheiro. É a volúpia do excedente disponível para valorização
que caracterizará o metabolismo social do capital no século XX. A
obsessão do possuídor da massa de capital-dinheiro imprimirá a sua marca
na dinâmica social. Aliás, os fenômenos históricos cruciais do século
passado – imperialismo e globalismo, ou ainda, a hipertrofia do sistema
de crédito e financeirização – originam-se, em última instância, da
volúpia de vendabilidade universal tendo em vista a realização da massa
crescente de mais-valia relativa extraída na produção do capital.
O
desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho no século XX,
com a vigência da lógica produtivista do taylorismo, fordismo e
toyotismo, significou a elevação à enésima potência, da ânsia de
realização da massa de mais-valia contida na imensa quantidade de
mercadorias que compõem a sociedade burguesa, principalmente com o
surgimento da produção em massa. A obsessão pelo consumo oculta, não
apenas a obsessão pela absorção do excedente, como salientou Harvey, mas
a obsessão pela realização do valor nas condições do mercado mundial
constrangido.
Portanto, a
contradição suprema do capitalismo histórico não é apenas produzir
mercadorias, mas sim, realizar o valor contido nelas. That´s the problem!
Por isso, as estratégias orgânicas do sistema mundial do capital no
século XX buscaram administrar a contradição crucial, inovando na
capacidade de prolongar à exaustão, as alucinações da forma-mercadoria,
seja em torno da mercadoria propriamente dita, com a aceleração do
circuito de valorização (produção, circulação e consumo, afirmando-se o
que István Mészáros denominou “lei tendencial de decrescimento da
utilização do valor de uso”); seja em torno da “mercadoria das
mercadorias” (o Dinheiro), com a hipertrofia do sistema de crédito e a
constituição do circuito da valorização fictícia (a financeirização da
riqueza capitalista).
Uma das
estratégias de administração da crise orgânica da forma-mercadoria, com
impacto direto na morfologia social da sociedade burguesa e na
subjetividade do homem-que-trabalha, é a manipulação do consumo.
A manipulação da produção que caracteriza a grande indústria
desdobra-se em produção da manipulação no plano da totalidade social.
Eis um traço de alteração da alienação capitalista que caracterizará a
“captura” da subjetividade do homem que trabalha pelo capital.
Trabalhador assalariado é consumidor, onde o “é” acusa um juízo de devir
(Trabalhador assalariado “torna-se”/interverte-se em consumidor). Na
verdade, a vigência da manipulação sistêmica põe efetivamente o problema
do estranhamento.
Sob o
capitalismo, o problema da alienação é reposto, de forma ampla e
candente, noutro patamar existencial, através do problema do
estranhamento. Um mundo pleno de mercadorias é, segundo György Lukács,
um mundo pleno de manipulação, que penetra não apenas os poros da
produção, mas também do consumo e da reprodução social.
Se, por um
lado, com a elevação do padrão de vida e consumo da classe trabalhadora
no século XX, a percepção da exploração capitalista e o problema da
alienação no sentido originário tendem a se esmaecer, por outro lado,
põem-se, de modo incisivo, segundo Lukács, o problema do estranhamento
propriamente dito, que, para ele, é o problema da vida plena de sentido
(o psicanalista austriaco Viktor Frankl salienta que o problema crucial
do nosso tempo é o problema da busca de sentido da vida).
Lukács
observou, em 1968, que a mudança estrutural no caráter da alienação
coloca, de forma candente, no auge do capitalismo afluente (o
capitalismo fordista-keynesiano), novas exigências no plano da luta de
classes. Ou ainda, novas exigências no plano da consciência contingente
de classe, expressa pela nova geração de empregados e operários mais
qualificados (por exemplo, os “jovens adulto-flexíveis” ou toyotizados)
que cresceram no interior do mundo de mercadorias e que possuem outras
exigências, no plano do carecimento, comparados, por exemplo, com a
geração anterior de operários e empregados. Diz Lukács:
“A luta de
classes no tempo da mais-valia absoluta estava voltada para a criação
das condições objetivas indispensáveis a uma vida deste gênero. Hoje,
com uma semana de cinco dias e um salário adequado, podem já existir as
condições indispensáveis para uma vida cheia de sentido. Mas surge um
novo problema: aquela manipulação que vai da compra do cigarro às
eleições presidenciais ergue uma barreira no interior dos indivíduos
entre a sua existência e uma vida rica de sentido. Com efeito, a
manipulação do consumo não consiste, como se pretende oficialmente, no
fato de querer informar exaustivamente os consumidores sobre qual é o
melhor frigorífico ou a melhor lâmina de barbear; o que está em jogo é a questão do controle da consciência. Dou apenas um exemplo, o ‘tipo’ Gauloises: apresenta-se um homem de aspecto ativo e másculo, que se distingue porque fuma os cigarros Gauloises. Ou
ainda, vejo numa foto de publicidade, não sei se de um sabonete ou de
um creme de barbear, um jovem assediado por duas belas garotas, por
causa da atração erótica que determinado perfume exerce sobre elas”.
Vimos que Lukács, adotando uma perspectiva histórico-ontológica, faz a conexão íntima entre mais-valia relativa e manipulação,
no sentido de que a exploração pela mais-valia relativa propiciou, a um
contingente organizado da classe trabalhadora, semana de cinco dias e
salário adequado, isto é, condições objetivas indispensáveis
para uma vida cheia de sentido. Segundo Lukács, objetivamente o
proletariado possui hoje, pelo menos o proletariado estável, condições
materiais para uma vida plena de sentido que entretanto, não se realiza,
por conta da manipulação social que impregna a vida burguesa. O
capitalismo da grande indústria de produção em massa tende, nas
palavras dele, a erguer no interior desses individuos, “uma barreira
entre a sua existência e uma vida rica de sentido”. Diz ele que a
fruição da vida é reduzida ao gozo do consumo alienado. A ânsia fugaz
pelo consumo de mercadoria é incapaz de dar um sentido à vida. Eis o
sentido do estranhamento na ótica lukacsiana: o descompasso entre a existência dos indivíduos e uma vida plena de sentido.
Portanto, para Lukács, o problema do estranhamento diz respeito em grande medida, à questão do controle da consciência,
alvo-chave da manipulação do consumo visando a venda das mercadorias e a
realização da mais-valia. A manipulação se ergue no interior dos
indivíduos, cuja ânsia pelo consumo é instilada pelos aparatos de
marketing e propaganda, como uma finalidade em si mesma. Diz ele:
“Por causa
desta manipulação, o operário, o homem-que-trabalha, é afastado do
problema de como poderia transformar seu tempo livre em otium, porque o consumo lhe é instilado sob a forma de uma superabundância de vida com finalidade em si mesma, assim como na jornada de trabalho de doze horas a vida era ditatorialmente dominada pelo trabalho”.
A
perspectiva de Lukács prende-se à produção capitalista
fordista-taylorista quando o controle da consciência de classe,
inclusive na construção do consentimento à produção rígida da linha de
montagem acoplada a esteira mecânica, tinha no consumo, pelo menos para a
classe operária organizada, seu lastro de legitimidade. O compromisso
fordista-keynesiano, que caracterizou, nos países capitalistas centrais,
os “trinta anos dourados” do capitalismo histórico do século XX
(1945-1975), eram baseado na capacidade do capital em promover a
“cidadania do consumo” em torno do ideal do emprego. A própria formação
das individualidades pessoais de classe ocorriam com a elaboração de
expectativas, anseios e utopias da carreira profissional e inserção
laboral capazes de permitir a obtenção de capacidade aquisitiva, não
apenas para satisfazer as necessidades básicas, mas os carecimentos
sociais do admirável mundo novo das mercadorias.
Sob o
capitalismo fordista-keynesiano nas condições da sociedade industrial
afluente do pós-guerra, a fruição da vida era reduzida ao gozo do
consumo de mercadorias. Nesse caso, a auto-consciência da alienação não
se manifestava efetivamente, tendo em vista a vigência da “consciência
tranquila” do operário ou empregado, que fruia a sua vida pessoal como
individualidade de classe por meio do consumo estranhado. Na verdade, o
trabalhador assalariado não se sentia insatisfeito no consumo, mas sim,
na produção, tendo em vista a vigência do fordismo-taylorismo com a
linha de montagem acoplada a esteira mecânica (a crise da organização do
trabalho taylorista-fordista).
Com o
capitalismo global de cariz neoliberal e a crise estrutural do capital,
ocorreu a implosão do compromisso fordista-keynesiano baseado no
crescimento com indexação de salários a produtividade. Nos “trinta anos
perversos” (1980-2010), a crise do Estado de Bem-estar social, a crise
do emprego e a ampliação da precariedade salarial ameaçou e frustrou as
expectativas de consumo dos trabalhadores assalariados, principalmente
das camadas médias asssalariadas que construíram suas expêriencias
expectantes na perspectiva da fruição do consumo estranhado (eis uma
dimensão da crise da “classe média”). Deste modo, percebe-se de modo
claro, a corrosão do lastro de compatibilidade entre capitalismo e
bem-estar social no núcleo orgânico do sistema mundial do capital. Ao
mesmo tempo, intensificou-se e ampliou-se, de modo exacerbado, a
manipulação da vida social, tanto no consumo, quanto na produção de
mercadorias com a vigência do espírito do toyotismo.
Portanto, a
crise do capital, que se instaurou em meados da década de 1970, opera
descontinuidades/continuidades na dinâmica da manipulação sistêmica,
repondo o círculo da alienação/estranhamento do homem-que-trabalha. A
“captura” da subjetividade do trabalho pelo capital assume novas
dimensões no sentido da constituição/explicitação de novos fenômenos da
alienação/estranhamento. O “paradoxo de Ícaro” que atormenta os “jovens
adultos-flexiveis” do mundo social do capital pode ser expresso do
seguinte modo:
Por um lado,
para os jovens trabalhadores assalariados do novo mundo do trabalho
inseridos em contratos de emprego estável, a auto-consciência da
alienação e insatisfação que caracterizava a organização
fordista-taylorista do processo de trabalho, interverteu-se, com a
organização toyotista, em estranhamento no sentido da fruição perversa e
opaca que a condição de empregado estável na empresa flexível imputa
aos homens e mulheres que trabalham submetidos ao cumprimento de metas
desumanas e pressões contínuas por mais produtividade. Nesse caso, a
carga de ansiedade e depressão deriva da realização profissional
estranhada que dilacera seu ser humano-genérico.
Por outro
lado, para jovens trabalhadores assalariados precários e desempregados, o
dito “precariato”, “órfãos” da cidadania salarial, o sentimento de
insatisfação e a auto-consciência da alienação se tornou crucial
(alienação como perda/frustração). Nesse caso, existe uma sutil
distinção categorial entre alienação e estranhamento. No plano da
consciência contingente, o dito “precariato” sente-se alienado da
“cidadania do consumo” e portanto, alienados de si mesmos como consumidores
ou individualidades de classe constituídos no interior do mundo das
mercadorias (nesse sentido, a alienação no sentido categorial tem uma
intensa carga de insatisfação e deriva pessoal). Nesse caso, a carga de
ansiedade, depressão e frustração compõem um quadro de desrealização
íntima em si e para si que deriva da sua precariedade salarial no mundo
das mercadorias.
Portanto,
jovens-adultos assalariados, empregados e desempregados, estáveis e
precários, representam dimensões paradoxais da
classe-que-vive-do-trabalho com seus respectivos pressupostos
sociometabólicos: por um lado, uma parte da classe que tem condições
objetivas para uma vida plena de sentido, não consegue tê-la, tendo em
vista o trabalho estranhado (a fruição perversa não está apenas no
consumo, mas também no trabalho flexível). Mas na medida em que se
constitui o círculo do estranhamento (consumo e trabalho estranhado),
implode-se a “consciência tranquila” observada por Herbert Marcuse na
época do capitalismo afluente. Na verdade, a exacerbação do
estranhamento que assistimos no capitalismo toyotista constitui uma
“consciência intranquila”, opaca e intransparente da sua condição de
proletariedade.
Por outro
lado, outra parte da classe, constituída pelos trabalhadores
assalariados precários (precários no sentido de alienada da “cidadania
salarial”), sentem-se afligidos por não terem condições objetivas para
uma vida plena de sentido. Eles representam a nova pobreza do
capitalismo global de cariz neoliberal. No plano contingente, anseiam (e
lutam) pela “cidadania salarial” nos marcos da ordem da mercadoria.
Entretanto, as condições de luta e organização sindical, no plano do
em-si da classe, são adversas para eles.
A
“consciência intranquila” dos precários “indignados” do século XXI se
distingue radicalmente da “consciência intranquila” dos proletários da
Primeira Revolução Industrial que enfrentaram a experiência do factory system
inseridos ainda em modos de sociabilidades tradicionais e valores de
cunho comunitário (como observou E.P. Thompson). Ora, os proletários
precários pós-modernos nasceram e cresceram no interior da ordem social
da mercadoria. Eles próprios sentem-se, no plano da consciência
contingente, como mercadorias vivas. É o que explica, por exemplo, a
incapacidade dos precários indignados traduzirem o sentimento de
indignação numa perspectiva crítica para além da ordem burguesa. Na
verdade, a indignação do “precariato” é a indignação reativa que decorre
da frustração das expectativas, anseios e utopias de mercado
(diferentemente, por exemplo, dos sonhos, expectativas e utopias das
primeiras gerações de operários que possuíam sentido comunitário
exterior à ordem industrial originária. De certo modo, eles ansiavam
tornarem-se “produtores autonomos”, voltar a terra etc).
Na medida em
que o capitalismo global não consegue repor a perspectiva de emprego
digno para todos, os jovens “precários” alienados do sonho do emprego
estável tendem a serem manipulados com o ideal da empregabilidade no
sentido de construírem a identidade do “trabalho autônomo” ou “trabalho
por conta própria de segunda geração” (como diria Sergio Bologna). Deste
modo, a intranquilidade da descartabilidade se interverte na
intranquilidade da fluidez, eufemismo para inseguraça, expondo, com
vigor, a sua condição de proletariedade.
***
O livro mais recente de Giovanni Alves, Trabalho e subjetividade (Boitempo, 2011) já está à venda também em formato eletrônico (ebook) nas lojas da Gato Sabido e Livraria Cultura.
***
Giovanni Alves é
doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e
professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com
bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do
Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e
artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011).
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