Nas últimas
semanas ocorreram movimentos de escracho dos torturadores da ditadura
brasileira em várias cidades brasileiras. Estas ações têm a
característica de trazer um elemento novo à luta pela justiça em relação
às violações de direitos durante os governos militares: a organização e
a presença das novas gerações. Alguns são familiares de vítimas da
ditadura; outros, militantes de movimentos sociais ou grupos de
esquerda; e a maioria são pessoas que não viveram aqueles anos, mas que
têm a consciência de que o Brasil precisa fazer justiça para que
possamos viver com o mínimo de dignidade.
Os escrachos
são manifestações na porta de locais de moradia ou trabalho de
torturadores ou agentes da repressão já amplamente denunciados nos
relatórios de familiares de mortos e desaparecidos, mas cujas histórias
são pouco conhecidas pela sociedade. E esta tem sido a principal função
dos escrachos, dar publicidade aos crimes criando as possibilidades para
a reconstrução da memória e para a punição dos responsáveis.
Este tipo de
manifestação começou na Argentina, por volta de 1995, organizada pelo
movimento HIJOS (sigla para “Hijos por la Identidad y la Justicia contra
el Olvido y el Silencio”, integrado essencialmente por filhos ou jovens
parentes de mortos e desaparecidos políticos) para denunciar
torturadores que haviam sido indultados durante o governo do presidente
Carlos Menem. O alvo era o contexto de impunidade e visava a mobilização
da opinião pública, bem como a condenação moral dos agentes da
repressão.
Hoje, a
Argentina tem 237 condenados e 778 processados. Houve uma combinação de
movimentos sociais em luta, com ações judiciais internas e na Corte da
OEA e a decisão política do governo dos Kirchner em apoiar, via ação da
bancada do governo no Congresso Nacional, as mudanças necessárias na lei
para que o Judiciário se obrigasse a julgar os crimes da ditadura.
Com o lema
“Se não há justiça, há esculacho popular”, dezenas de manifestantes
estiveram na porta da casa e no bairro do ex-diretor do Instituto Médico
Legal de São Paulo, Harry Shibata, quem assinou diversos laudos de
morte de oposicionistas ao regime militar corroborando falsas versões,
como a de suicídio do jornalista Vladimir Herzog.
Este
movimento é uma lição de democracia para o país. Faz bem pouco tempo
ouvíamos argumentos de que o limite do Estado brasileiro em conceder
somente reparação, sem atos de justiça ou localização de corpos dos
desaparecidos políticos, devia-se às pressões de setores conservadores e
perigosos dentro do cenário político brasileiro. Este argumento do
“medo”, fantasmagórico de um perigo invisível, forçaria o governo a
adotar uma política do possível. Assim, a luta pela justiça e pela
memória limitava-se, no Brasil, ao discurso do direito à memória e à
verdade. Foi dentro desta lógica que o Congresso Nacional aprovou o
tímido projeto do governo de criação da Comissão da Verdade.
Contudo, em
vez de se configurar como uma ação somente de resgate histórico do
passado, as movimentações para a criação da Comissão da Verdade
colocaram em evidência uma das maiores chagas de nossa democracia: a
impunidade. Temos uma boa chance de mudar o cenário cotidiano de nosso
Estado de Direito. Anunciar uma lista de nomes qualificados para a
Comissão da Verdade e indicar à base governista o apreço pelo projeto da
deputada Luiza Erundina de reinterpretação da Lei da Anistia pode nos
levar a um país diferente.
Por outro
lado, o ensinamento democrático dos movimentos de escracho é que o que
devemos temer é a ausência de Justiça e a falta de coragem de agir em
defesa de uma democracia não tutelada por “forças invisíveis”, sempre
prontas a reagir quando os movimentos sociais se mobilizam. Isto nos
mostra que a ação política não se decide somente em Brasília ou nas
decisões partidárias, mas tem um forte elemento na organização dos
movimentos sociais.
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Para aprofundar a discussão sobre a herança social, política e cultural da ditadura militar, recomendamos a leitura de O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010), coletânea de ensaios organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle. A versão em ebook acaba de ter seu preço reduzido para apenas R$26. Compre nas livrarias da Travessa, Saraiva e Gato Sabido.
Edson Teles é também autor de um dos artigos que compõe a coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, que tem sua versão impressa vendida por R$10 e a versão eletrônica por apenas R$5 (disponível na Gato Sabido, Livraria da Travessa e outras).
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Edson Teles é
doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor
de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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