Sobre
isso, vejamos um trecho do livro “Convite à Filosofia”, de Marilena Chauí.
Referindo-se aos povos ameríndios que não estavam organizados em grandes
impérios, a filósofa diz que:
... os conquistadores
encontraram as demais nações americanas organizadas de maneira incompreensível
para os padrões europeus. Transformaram o que eram incapazes de compreender em
inferioridade dos americanos. Considerando-os selvagens e bárbaros, justificavam
a escravidão, a evangelização e o extermínio.
A esta
visão dá-se o nome de etnocentrismo. Isto é, uma concepção que considera como
corretos apenas padrões e valores dos brancos. O atraso dos povos indígenas
estaria no fato de não terem mercado, escrita, história e Estado. Não é bem
assim, explica Marilena:
O antropólogo francês Pierre
Clastres estudou essas sociedades por um prisma completamente diferente, longe
do etnocentrismo costumeiro. Mostrou que possuem escrita, mas que esta não é
alfabética nem ideográfica ou hieroglífica (isto é, não é a escrita conhecida
pelos ocidentais e orientais), mas é simbólica, gravada nos corpos das pessoas
por sinais específicos, inscrita com sinais específicos em objetos determinados
e em espaços determinados. Somos nós que não sabemos
lê-la.
Mostrou também que possuem
memória – mitos e narrativas dos povos -, transmitida oralmente de geração em
geração, transformando-se de geração em geração. Mostrou, pelas mudanças na
escrita e na memória, que tais sociedades possuem História, mas que esta é
inseparável da relação dos povos com a Natureza, diferentemente da nossa
História, que narra como nos separamos da Natureza e como a dominamos. Mas,
sobretudo, mostrou por que e como tais sociedades são contra o mercado e contra
o Estado. Em outras palavras, não são sociedades sem comércio e sem Estado, mas
contrárias a eles.
Ainda
aprendendo com os índios, continuamos citando o livro “Convite à Filosofia”, de
Marilena Chauí:
As sociedades
indígenas são tribais ou comunais. Nelas, não há propriedade privada nem divisão
social do trabalho, não havendo, portanto, classes sociais nem luta de classes.
A propriedade é tribal ou comum e o trabalho se divide por sexo e idade. São
comunidades no sentido pleno do termo, isto é, são internamente homogêneas, unas
e indivisas, possuindo uma História e um destino comuns. São sociedades do
cara-a-cara, onde todos se conhecem pelo nome e são vistos uns pelos outros
diariamente.
Por isso mesmo,
nelas o poder não se destaca nem se separa, não forma uma instância acima dela
(como na política), nem fora dela (como no despotismo). A chefia não é um poder
de mando a que a comunidade obedece. O chefe não manda; a comunidade não
obedece. A comunidade decide para si mesma, de acordo com suas tradições e
necessidades.
Se não tem poder, o que faz o chefe? O texto diz
que ele exerce “três funções: doar presentes, fazer a paz e falar”. Segundo
Marilena:
A doação de
presentes é a maneira deliberada que a comunidade inventou para impedir que
alguém possa concentrar bens e riquezas, tornar-se proprietário privado, criar
desigualdade econômica e social, de onde surgem a luta de classes e a
necessidade do poder do Estado.
Quanto à fala, o chefe a usa para manter a paz.
Como a comunidade não dispõe de leis para resolver conflitos, o chefe apela ao
bom senso, aos costumes, à memória e à tradição. Mas há outra função para a
fala. É a Grande Palavra:
Todas as tardes, o
chefe se dirige a um local distante da aldeia, mas visível e de onde possa ser
ouvido, e ali discursa. Embora ouvido, ninguém deve dar-lhe atenção e o que ele
diz não é ordem ou comando obrigando à obediência. Que diz ele? Diz a palavra do
poder: canta sua força e coragem, seu prestígio, sua relação com os deuses, seus
grandes feitos. Mas ninguém lhe dá atenção. Ninguém o
escuta.
A Grande Palavra
tem significado simbólico: a comunidade lembra a si mesma, diariamente, o risco
e o perigo que correria se possuísse um chefe que lhe desse ordens e ao qual
devesse obedecer. A Grande Palavra simboliza a maneira pela qual a comunidade
impede o advento do poder como algo separado dela e que a comandaria pela
coerção da lei e das armas. Com a cerimônia da Grande Palavra, a sociedade se
coloca contra o surgimento do Estado.
Segundo o texto, se o chefe tenta usar suas funções
para criar uma forma separada de poder, ele é morto pela comunidade.
É, parece que esses povos têm muito a nos
ensinar.
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