Desde o
início deste ano, quando os protestos que derrubaram os regimes
autoritários no “mundo árabe” ganharam as manchetes dos noticiários,
temos visto uma sucessão de mobilizações em massa que, inicialmente,
ocuparam as ruas e centros urbanos das principais cidades e capitais dos
Estados Unidos e Europa, espraiando-se rápida e surpreendentemente
pelos demais continentes por força, em boa medida, das chamadas “redes
sociais” – um dispositivo que, junto com essas mobilizações e mesmo se
confundido com elas, inaugura uma nova era quanto à capacidade global de
organização das resistências políticas.
Depois da
chamada “Primavera Árabe” que levantou multidões contra a tirania dos
governos da Tunísia, Líbia, Egito, Argélia, Jordânia, Marrocos, Iêmen,
Bahrein e Síria, vieram os protestos em defesa da educação pública no
Chile, os “indignados” na Espanha, os incêndios e saques praticados no
norte de Londres, o inconformismo da geração “à rasca” em Portugal, as
manifestações contra a crise econômica na Grécia, a oposição ao governo
Berlusconi na Itália, até que os protestos ganharam uma razoável
perenidade por meio da ocupação estratégica de espaços públicos, tal
como se viu especialmente no Occupy Wall Street – uma experiência
replicada em diversas outras cidades da qual a última notícia que se tem
é sobre o movimento “Ocupa Tóquio”.
No Brasil,
tal como acontece noutros lugares, esses acampamentos urbanos têm
resistido à forte repressão policial e à indisposição da mídia que,
quando não ataca diretamente, silencia e boicota a divulgação do esforço
daqueles que, há meses, mantêm de pé as barracas do Ocupa Sampa, do
Ocupa Rio e do Ocupa Salvador. Por fim, há pouco mais de um mês, o dia
15 de outubro foi consagrado como o dia da “revolução mundial”, contando
com a realização de protestos, ocupações, marchas, greves, fóruns,
aulas públicas e demais ações contestatórias em quase 900 cidades
espalhadas pelo mundo e virtualmente conectadas.
Sem querer
estender o caráter informativo ou quase jornalístico desta apresentação,
procurando dar conta das particularidades que melhor caracterizam cada
um desses eventos – já que se sabe claramente da radical diferença entre
os contextos histórico-nacionais de uma Líbia e de uma Holanda –
interessa abstrair essas diferenças em nome das semelhanças e mesmo da
situação típica que permite falar, senão em termos de unidade, pelo
menos em termos gerais.
Pois bem,
por onde começar então? Creio que a melhor expressão para nomear essas
manifestações espontâneas – que a muitos assombra e a outros tantos lhes
furta as respostas prontas, retiradas de manuais – seja aquela
declarada em uníssono pelos espanhóis que se reuniram em Puerta de Sol:
“los indignados”. A ideia de indignação corresponde adequadamente ao
caráter de irrupção desses movimentos, como se já não fosse mais
possível permanecer calado, como se alguma privação, injúria ou mesmo um
desconforto qualquer, levado às últimas consequências, tornasse a
situação insustentável.
É difícil
supor que estado de ânimo precedia tudo isso, que tensões se acumulavam
silenciosamente, a ponto de que um ato desesperado – como o de um
sujeito que decidiu atear fogo no próprio corpo – pudesse fazer ruir
regimes militares encastelados há décadas. A ausência de liberdades
civis, a derrocada da democracia representativa, a corrupção dos agentes
públicos, os ajustes fiscais para enfrentar a crise econômica mundial, a
precarização das relações de trabalho, o desemprego qualificado, o
monopólio da informação, a ingerência das corporações sobre os governos –
todos esses elementos, por certo, criaram, em seus respectivos
contextos nacionais, as condições para a eclosão dessa massa de
indignados que gritam: “não nos representam!”.
No entanto,
diante desta miríade de motivações, talvez não seja o caso de tentar em
vão solucionar questões que perguntam com estupor sobre “o que teria
exatamente causado tudo isso” ou “por que não aconteceu antes?”.
Trata-se, pelo contrário, de envidar esforços na compreensão do sentido
desses eventos, tendo em vista enlaçar suas implicações mais gerais e
perguntar até que ponto esses acontecimentos constituem a forma adequada
de expressão das contradições de nossa época e o prenúncio do declínio
das formas políticas tradicionais de organização e representação.
Desta feita,
gostaria de insistir na ideia de indignação como “estado de coisa”
resultante de certa privação – melhor seria dizer castração, já que ela
nos lembra o esforço memorável de Sigmund Freud, a certa altura do
desenvolvimento de sua metapsicologia, inscrito em Totem e tabu
(1913). Depois de arquitetar conceitualmente um complexo aparelho
psíquico que funcionava a partir do mecanismo de defesa do ego,
dissociando representação e energia afetiva correspondente, e, a partir
daí, identificar, por meio da interpretação dos sonhos, a etiologia
sexual de certas doenças mentais e a importância das experiências
infantis para a formação do inconsciente conforme o complexo de Édipo,
Freud procura sustentar a teoria que elabora com base em suas
descobertas clínicas numa inusitada antropologia das formas primitivas
de sociedade, em busca de verdades factuais que explicassem os mitos
fundadores, iluminadas por suas formulações acerca do psiquismo.
Em Totem e tabu,
Freud retoma uma ideia de Darwin sobre o estágio primitivo das
sociedades humanas, baseada na noção de um pai primevo, ciumento e
violento, que reservava as fêmeas para si e expulsava da comunidade ou
punia severamente os filhos que ousassem contrariá-lo. Na sequência
dessa especulação, um recurso a que Freud chamou de “mito científico”,
os irmãos, expulsos pelo pai violento e temido, retornam, matam-no e o
devoram, colocando fim à horda patriarcal. Consuma-se, portanto, o
parricídio – o assassinato do pai, um ato criminoso que, paradoxalmente,
dá origem a uma ordem social, fundada em restrições morais sobre as
pulsões e na religião que cultua o Totem, representação simbólica do pai
que fora morto. O ato de devorar o pai, comprovado pelos registros
arqueológicos de rituais totêmicos, consuma a identificação dos irmãos
com ele e com o lugar que ocupa, pois ao comer suas partes, adquirem
parte de sua força, permitindo-se, pois, gozar dos privilégios
irrestritos do patriarca.
Depois de
toda a orgia e desordem que se seguem à morte do pai, advém o
arrependimento dos irmãos, pois a afeição com “o amável tirano” produz
um enorme sentimento de culpa, de desamparo, já que a filiação, antes de
tudo, proporcionava um lugar no mundo, um destino para as pulsões e,
portanto, um sentido para a existência, ainda que isso implicasse
renúncia ao gozo. Com a morte do pai, abre-se uma perspectiva ameaçadora
da possibilidade do gozo irrestrito, diante da qual cada um se vê
prestes a ser abusado ou violentado pelos outros. Surge, então, entre os
irmãos, um ideal que restaura, na forma de uma autoridade simbólica, o
poder soberano do pai primevo, estabelecendo uma interdição sumária: a
proibição do incesto. O acesso a todas as mulheres seria permitido,
menos à genitora – a mulher do pai. Como diz Freud, o tabu do incesto
materno é a única interdição comum a todas as civilizações, justamente
por que é a renúncia a esse excesso de gozo (que separa mãe e filho) que
faz com que os homens saiam dos estágios de selvageria e barbárie e
adentrem no universo da civilidade.
O
parricídio, portanto, funda uma ordem social, a partir de uma interdição
ou Lei simbólica que não está escrita em lugar algum, mas que é
consentida por todos, restringindo o gozo absoluto e, consequentemente,
condenando os homens à liberdade e à necessidade de falar, de comunicar
aos outros a diferença que os singulariza, pois deixam de integrar a
massa indiferenciada de filhos e passam à comunidade de irmãos – para
dizer de outro modo, elevam-se da condição de súditos a de cidadãos.
Unidos, os irmãos fizeram o que individualmente seria impossível:
aniquilaram o tirano e criaram uma ordem social no lugar daquilo que
antes era o puro arbítrio, onde não cabia qualquer lei senão a vontade
do Pai.
Dito isso,
não nos parece um exagero supor que o movimento espontâneo dos
indignados, ante o abuso de seus representantes e, portanto, do Estado,
pretende re-fundar a ordem social, haja vista as expressões coletivas de
insatisfação, o questionamento virulento dos poderes constituídos ou
mesmo a derrubada impiedosa dos regimes autoritários. Desse ponto de
vista, o Estado e suas instituições apareceriam aos sujeitos como
representações fantasmáticas da autoridade – pois, em última instância,
remontam aos poderes do pai – e estabeleceriam com os indivíduos uma
relação de proteção, exigindo em contrapartida a renúncia à violência.
Aliás, o caráter aparentemente não violento do movimento dos indignados
até poderia ser entendido como um assentimento a essa exigência, se não
fosse a evidência de que sua força e, portanto, a maior violência que
impõe à ordem consiste em seu número, no poder da união em torno de
interesses comuns, portanto, na comunidade de interesses – na vontade
comum.
No entanto,
os cidadãos, membros do Estado moderno, curiosamente, se distanciaram
dos laços que os uniam entre si e silenciaram sobre suas relações – em
plena vida civil! Regrediram, pois, à condição de súditos, de filhos,
dirigindo-se ao Estado como se estivessem em relação com o Pai, clamando
pela segurança de sua proteção. Neste exato sentido – de desfazer essa
relação de dependência às formas fantasmáticas do pai –, o ato de
recobrar a capacidade de comunicação entre si, de falar ao outro e de
externar um descontentamento vivido em comum faz com que o levante dos
indignados seja equivalente a um novo parricídio e configure, pois, uma
re-fundação simbólica da ordem social – uma fundação da ordem dentro da
ordem fundada.
Por efeito deste mito fundador, que, não por acaso, guarda forte semelhança com o Leviatã
de Thomas Hobbes, ganha algum sentido (o que, para o mito, equivale à
explicação) o sentimento característico de desamparo e de vazio
simbólico dos indignados. Isso se expressa claramente na generalidade ou
mesmo na ausência de reivindicações por parte desses movimentos. Os
setores mais conservadores do espectro político já perceberam e
apontaram de modo acusatório e moralista essa suposta debilidade de “não
se saber o que se quer”. Não há encaminhamentos programáticos, não há
filiação a partidos e sindicatos, não há programas de governo a
defender, enfim, não há propostas!
Sempre que
interrogados sobre o que querem, o que desejam, os indignados respondem
de modo sintomaticamente negativo. Até certo ponto, pode-se sustentar a
relação entre “não saber o que se quer” e certa angústia que resulta do
desamparo – o vazio de propostas é reflexo de um vazio de ser, dos que
não querem voltar a ser súditos amparados pelo Soberano nem são mais
cidadãos de um Estado contra o qual agem violentamente, ou seja,
reorganizando em comunidade as multidões.
Não saber o
que se quer, porém, não constitui necessariamente uma debilidade; ao
contrário, trata-se de uma condição intrigantemente humana, contra a
qual os neuróticos e narcisistas relutam de modo sofrível. Sendo os
homens seres que desenvolveram a capacidade de pensar e, portanto, de
falar o que pensam, suas relações se estabelecem, em boa medida, a
partir da externação do que se sente. Sentir é atribuir sentido, é saber
o que se sente. Mas o sentido não é um valor dado desde sempre, algo
inerente à própria vida, de tal forma que possa ser sentido do mesmo
modo por todos. Ao contrário, é efeito de uma construção discursiva
endereçada ao Outro, tendo em vista sua anuência quanto aos significados
conferidos às determinações objetivas, igualmente sentidas como
condições de existência, já que isso não assegura, por si mesmo, um
sentido eterno, natural, transcendente ou verdadeiro.
“O
informulável é a doença do pensamento”, escreveu Lévi-Strauss indicando
nossa intolerância aos aspectos da existência que, malgrado o esforço
comum de simbolização, permanecem vazios de sentido. Seguindo essa
indicação, Jacques Lacan afirmará que o homem está sempre tentando
ampliar o domínio simbólico sobre o “em-si” das coisas no mundo a que
ele chama o “Real”, seja o real do corpo, do sexo, da morte, do devir
incerto daquilo que ainda não é. O sentido, contudo, é sempre uma
atribuição, não havendo, pois, um sentido em-si mesmo. Então, como
podemos nos assegurar dos nossos valores? Como fundar formas de agir em
valores que não estejam à mercê do acaso, do aleatório, do sem sentido?
Como fundar nossas ações cotidianas, como queria Kant, em princípios
universais anteriores à atribuição de sentido? Sem pretensão alguma
quanto à solução desta aporia, diga-se apenas que essa produção de
sentido não é e nem pode ser um arroubo individual – quanto maior sua
abrangência, precisão e capacidade de expressar as contradições
objetivas e reais, maior será seu alcance simbólico, sua capacidade de
dar significação à existência, ainda que essas expressões sejam
invertidas, falsas ou ilusórias.
Se
perguntarmos novamente “o que querem os indignados?”, já não será uma
mácula o fato de esses sujeitos não saberem o que querem, pois, mesmo
não sabendo, sabem algo: eles sabem o que não querem. Os indignados não
querem mais se conformar a ouvir o riso de um estranho Outro enquanto
este realiza seu gozo – não querem, pois, silenciar enquanto consomem
compulsivamente toda sorte de quinquilharias objetais ofertadas pela
indústria cultural; nem querem ouvir apenas a si mesmos – seguindo um
padrão de racionalidade que beira o cinismo, pois sabem que o sentido
que tomam como verdadeiro é uma ilusão amparada no consumo e, ainda
assim, não deixam de se iludir. A noção hegeliana da “consciência
infeliz” quanto à unidade perdida é revivida, pois, como um “mal-estar”,
uma forma de sofrimento cujo sintoma traduz a impossibilidade de
realização plena das pulsões no interior da cultura – mesmo que seja a
cultura do narcisismo fundada no consumo, pois todo objeto determinado
de satisfação revela sua imediata obsolescência ante a abstração da pura
exigência pulsional do gozo. Os indignados, pois, não querem mais ouvir
– eles querem falar, e escutá-los neste momento repõe o gesto
revolucionário de Freud que, ao contrário dos especialistas de seu tempo
e suas verdades prontas, se dispôs a escutar pacientemente a palavra
ab-reagida da histérica, decifrar o delírio dos paranoicos e reaver o
sentido das construções deslocadas dos obsessivos.
Na Paris de
1968, os estudantes e operários saíram às ruas para expor toda sua
indignação quanto ao caráter explorador, alienante e fetichista do
sistema capitalista, além de se rebelar contra a imposição dos bons
costumes e dos dispositivos de repressão moral e sexual, gritando aos
ventos: “queremos o impossível”. Em 2001, no Brasil, milhares de
militantes vindos de várias partes do mundo celebraram a primeira edição
do Fórum Social Mundial, que seria seguida de várias outras, ano a ano.
Não se tratava mais de arriscar o impossível e pôr abaixo o sistema
inteiro com suas contradições. Tratava-se de reparar suas injustiças,
corrigir suas perversões, “mudar o mundo sem tomar o poder”, já que “um
outro mundo é possível”. Em ambos os momentos históricos de irrupção, as
massas resolveram não só externar programaticamente suas inquietações,
mas inclusive institucionalizá-las, como no caso do Fórum. Pois bem, em
pouco tempo essas reivindicações foram contorcidas e enjeitadas para, de
algum modo, retornarem aos demandantes na forma de mercadorias: contra a
repressão sexual, o imperativo de gozo; contra a intervenção direta
sobre os costumes, a criação de tipos com os quais se identificar ou,
mais tarde, a oferta plural e inesgotável de identidades a assumir. O
“sistema”, por isso mesmo, sobreviveu!
Hoje, os
indignados recuam frente ao perigo de anunciar o que se quer, dada a
prontidão da indústria e seus agentes publicitários ciosos em captar
ardilosamente esse desejo, respondendo-lhe com uma torrente de objetos
substitutivos que jamais poderão satisfazer a demanda de gozo dos
sujeitos desamparados ou suprimir o vazio de suas existências. Eles
falam e querem falar, mas não dizem o que querem – apenas entoam: este é
“um mundo que não queremos”.
Quando são
interrogados sobre o que querem, quando são coagidos a revelar seu
desejo, os indignados apenas silenciam. Não porque tenham plena
consciência do poder que isso representa, ainda mais diante da compulsão
do mercado e sua ansiedade por verter em objeto-mercadoria toda
insatisfação, mas por que já não se sentem à vontade num mundo concebido
pela administração não apenas do desejo, mas também das formas de
recusa, convertendo numa “miséria neurótica” o horror da indeterminação.
Mesmo assim,
o silêncio, como advertiu o filósofo esloveno Slavoj Zizek, poderá ser
usado estrategicamente pelos movimentos contra os arautos das ações de
emergência. Contudo, não se pode fazê-lo indefinidamente, correndo-se o
risco de transformar a necessidade em virtude – em algum momento, não
será mais possível se sustentar apenas sobre o silêncio, a recusa ou a
negação, bradando “o que não se quer”; será necessário, com certa
reserva de autonomia, saber “o que se quer” e, sobretudo, “o que
fazer?”, respondendo audaciosamente à pergunta leninista que não cansa
de ser reposta pela história a todos que a desafiam.
Há uma
questão que ficou em suspenso. Freud parte de observações sobre uma
sociedade demasiadamente moralista, cujo regime de investimento
libidinal está fundado no paradigma da repressão e, consequentemente, da
culpa como resultado das injunções de um supereu centrado na noção de
renúncia ao gozo. Já em fins dos anos de 1950, em seu retorno a Freud,
Lacan operou uma espécie de adaptação dos modos de satisfação das
pulsões às transformações sociais que estavam em curso na nascente
sociedade do consumo de massa. Segundo ele, não se trata mais de ordenar
ao indivíduo que “não goze!”; ou seja, a inscrição do desejo e as
coordenadas da economia libidinal não têm mais como referente o arbítrio
do Pai que ordena não “o que fazer”, mas sim “o que não fazer”, o que
não se pode fazer. Para Lacan, ao contrário, vivemos numa época em que
domina o imperativo superegoico do gozo – “Goze!”
O
parricídio, porém, até onde podemos compreender, só é levado a efeito
por que os filhos foram privados do prazer. Se, no entanto, vivemos hoje
o imperativo do gozo, se nos é permitida toda forma de satisfação
pulsional, explorando o imenso espectro das formas pervertidas do desejo
– não contrárias à norma, mas justamente seguindo seu imperativo –, por
que então matar o Pai? Por que os indignados, filhos da sociedade de
consumo, das satisfações desimpedidas, precisariam matar o Pai? Seria
para colocar no seu lugar um Pai novamente autoritário, que impusesse
limites ao gozo, amparando novamente os sujeitos, conferindo-lhes um
lugar no mundo, como querem o Tea Party e os que elegem governos
conservadores na Europa?
Contra a
abstração do mito, podemos acorrer a determinações mais realistas e
perguntar: será que os indignados são, antes de tudo, aqueles cuja
fantasia de consumo fora violentamente desfeita pelo colapso das
promessas neoliberais? Veja-se, então, o caso dos jovens espanhóis
desempregados, os chilenos endividados, os ingleses que saquearam as
lojas em busca de aparelhos eletrônicos – os “sem iPad” – ou ainda os
jovens portugueses da geração “à rasca” que compõem o “precariado”. É
claro que essa restrição ao consumo revela as contradições estruturais
do modo de produção do capital. Não há como universalizar a riqueza
socialmente produzida senão suprimindo sua apropriação privada. No
entanto, em vez de avançar numa explicação estritamente econômica,
voltemos ao mito para explorar suas determinações, sabendo, no entanto,
que “os mitos” – mais uma vez Lévi-Strauss – “são apenas soluções ideais
para as contradições reais”.
Como já foi
suposto, a ação dos indignados consistiria simbolicamente em um novo
parricídio. Por quê? Porque a ordem fraterna dos irmãos, o Estado
moderno, fundado na capacidade de comunicação e limite ao gozo absoluto,
fora destruído por aqueles que, mais uma vez, ousaram assumir o lugar
do Pai gozante e operaram uma gigantesca farra especulativa tendente à
realização absoluta do gozo. Aquilo que antes era um tabu a assegurar a
ordem – a condenação da especulação financeira, expurgada da vida
civilizada por alguém como Lord Keynes –, tornou-se um imperativo de
gozo, um excesso permitido, um mais-gozar, cuja realização ensandecida
se deu por meio de ciclos de acumulação, crise e destruição dos valores
fictícios, dos valores reais e até mesmo dos valores fundantes da
própria ordem do capital – tal como se viu no caso da execução
hipotecária que minou a propriedade privada de milhares de
norte-americanos durante a crise imobiliária de 2008.
É novamente Freud quem nos dá essa resposta, quando em Psicologia das massas e análise do eu (1921), ele retoma o tema de Totem e tabu
(1913), lançando mão da figura do “herói usurpador” – um dos irmãos
que, ao recontar o mito fundador às novas gerações, atribui a si
exclusivamente o grande feito coletivo da morte do Pai. Não é difícil
antever nele o protótipo do indivíduo que se acredita autônomo, soberano
e unicamente devotado à realização de seus interesses – portanto, o
ideal de homem que funda o liberalismo moderno. É esse indivíduo que não
reconhece que o caráter de seu gozo – e, portanto, da transgressão que
comete – depende da cumplicidade dos outros; ou seja, sua riqueza
depende do reconhecimento social – sem isso, a fortuna dos bilionários
se torna, do dia para a noite, uma montanha de papéis sem valor algum.
Portanto, o sentido que atribui às suas ações é algo que se dirige
sempre ao grande Outro que é a sociedade. Crendo-se autor único dessa
transgressão, o “herói usurpador” se sente culpado por um crime que
cometeu, mas cujas razões ele desconhece, pois ignora sua dimensão
coletiva – sistêmica!
Em termos
psicopatológicos, a impossibilidade de conter o gozo, ao qual não se
reconhece a origem social, resulta na chamada culpa neurótica. É essa
espécie de culpa que é sentida agora pelos agentes da especulação
financeira, na medida em que reconhecem que é preciso controlar seus
impulsos, e tentam de tudo para fazê-lo, mas jamais admitiriam que, por
constituírem a expressão subjetiva da relação-capital que personificam,
os mesmos são incontroláveis – os especuladores são neuróticos à beira
de nos tragar a todos na espiral de uma psicose alucinatória, caso
acreditemos neles. Não haveria melhor termo para lhes definir, senão o
de Freud: “heróis usurpadores”.
A política é
a forma plena da simbolização, da atribuição de sentido ao que não tem
sentido; é a tentativa de preencher o vazio da existência, de antecipar o
futuro na forma de uma aspiração, instando os indivíduos a que
compartilhem de uma mesma fantasia, tornando-a uma fantasia social. A
política é a negação da angústia ante o vazio, quer seja este o vazio do
desamparo segundo o mito científico de Freud, quer seja o da perda do
objeto original do desejo que é, grosso modo, o seio materno na versão
de Lacan, quer seja, ainda, o vazio que resta da impossibilidade
ontológica de identificação absoluta entre o eu e o outro, entre
indivíduo e sociedade. A política é a forma plena de atribuir sentido às
coisas e ao seu destino porque é uma atribuição que se faz em conjunto,
não apenas diante do Outro, tendo em vista tornar-se o objeto do seu
desejo (como supõe a dialética do reconhecimento nas mãos de Lacan,
reposição da “dialética do senhor e do escravo” de Hegel), mas por que
se faz, sobretudo, contra o Outro, tendo em vista tornar comum o objeto
que se deseja, suprimindo as condições anteriores de senhor e de
escravo.
Assim como a
política é a forma plena da simbolização, há também uma forma plena da
própria política – aquela que fora percebida por Marx. Segundo ele, a
política é uma forma histórica determinada de controle sobre as relações
de produção e distribuição da riqueza, fundada no conflito entre
aqueles que produzem a riqueza material e os que apenas se apropriam
dela. Se, como se disse inicialmente, na política não há lugar para o
vazio, no sentido do desamparo, mesmo que seja impossível suplantá-lo, é
porque, numa sociedade de classes, os indivíduos, mesmo sem se darem
conta disso, têm um lugar no mundo: a classe a que pertencem.
A postulação de György Lukács, anunciada em História e consciência de classes
(1923), traduz, a seu modo, essa condição de ser ao afirmar que, numa
sociedade de classes, a ação do indivíduo deve estar, por força de uma
necessidade histórica, em acordo com a classe a que pertence. Por isso
mesmo, a consciência de classe, diz o filósofo húngaro, não corresponde
ao que um ou outro indivíduo pensa sobre sua condição, nem mesmo ao
estágio que essa consciência pode alcançar; a questão da consciência de
classe não corresponde a um “nível” de consciência; não diz respeito,
pois, a uma questão epistemológica ou de esclarecimento – e sim a uma
questão prática, material, relativa às ações dos indivíduos. Mas não se
trata de qualquer ação, daquilo que os indivíduos fazem ou deixam de
fazer: ela corresponde ao que eles têm de fazer, por força da condição
histórica de pertencimento à classe.
Se essa
condição de classe garante um lugar aos indivíduos, nem por isso deixa
de existir o vazio. Não o vazio deixado pelo que foi perdido – que é, na
verdade, o desamparo; mas o vazio daquilo que não foi alcançado nem o
será – que constitui a eterna busca, a permanente insatisfação, aquilo
que foge ao controle, que não se pode nomear, que ainda não existe,
enfim, que é imprevisível. Afinal, quem, dentre os profetas da salvação,
poderia prever tudo isso? Quem poderia antecipar quando e onde
surgiriam os indignados? Quem poderá dizer o que está por vir?
A política
só existe enquanto existem as classes. A política é a negação do
desamparo porque impõe aos indivíduos um lugar no mundo – o lugar da
classe a que pertencem. O vazio é o lugar da invenção, do que ainda não
é, do que pode vir a ser. O lugar do vazio é a negação da política. As
classes, em seu antagonismo em torno do vazio, do futuro, do que pode
vir a ser levam a política às últimas consequências. A negação das
classes é a negação da política. A negação da política é o vazio. O
vazio é a negação da negação.
***
Paulo Massey
é Cientista Social, formado pela Universidade Estadual do Ceará. Mestre
em Geografia, com estudos sobre a dinâmica de acumulação do capital
imobiliário. É professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e membro-fundador do Centro de
Estudos do Trabalho e Ontologia do Ser Social (CETROS).
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