No mês de outubro do ano que acabou de findar, publiquei o livro O Continente do Labor.
Instigado por Marcus Orione a escrever para Juízes para Democracia,
pensei: qual é a contribuição da nossa América Latina para a democracia,
em um mundo onde os EUA se julgam os senhores, ainda que sejam seus
principais detratores? Onde o Banco Central Europeu e o FMI depõem
governantes, como o da Grécia, ainda que este fosse um servo fiel? Que
destituí o grotesco Berlusconi, impondo diretamente o (novo) nome
“confiável” do mercado para livrar a república italiana do burlesco?
Nosso
continente, que nasceu sob o signo da espoliação, foi marcado, todos
tristemente sabemos, pelo ciclo do terror de estado, pela devastação
feita pelas horripilantes ditaduras militares da tortura, do arbítrio,
das catacumbas, da polpuda corrupção, dos grandes capitais e das grandes
burguesias.
Temerosa
frente à expansão das revoluções socialistas (como Bolívia em 1952 e
Cuba em 1959), a direita latinoamericana respondeu com os golpes
militares, desencadeando uma era das contrarrevoluções, nas palavras de
Florestan Fernandes: foi a solução encontrada pelo capital para
desestruturar e derrotar os avanços sociais e políticos da classe
trabalhadora. A brutal repressão ao movimento operário, seus sindicatos e
às esquerdas; a inserção da América Latina no processo de
internacionalização do capital; a abertura do parque produtivo aos
capitais externos e a ingerência crescente dos EUA, foram vitais para a
deflagração das ditaduras.
Brasil,
Chile, Argentina, Uruguai, a lista é grande e poderia continuar. E a
nossa ditadura fez escola, ainda que a chilena e a argentina tenham sido
ainda mais vorazes. Vale destacar: os seus algozes estão definhando,
hoje, nos cárceres da Argentina e Uruguai. Triste Brasil, que só vai à
frente quando se trata de atraso!
Já que o
tema que escolhemos é o da democracia na América Latina, foi com o
socialista Salvador Allende que vivenciamos um dos mais belos momentos
da nossa história política recente. Mas podemos voltar no tempo e
recordar também a majestosa Revolução dos negros do Haiti, em 1791, a
primeira a abolir o trabalho escravo, ou ainda o nosso Quilombo dos
Palmares, que no século XVII, levou à constituição de uma comunidade
negra livra e coletiva. Ou ainda a Revolução Mexicana de 1910, popular e
camponesa, que deixou seu contributo efetivo para o que se poderia
denominar como verdadeiro poder popular na América Latina.
Mas, quando o
ciclo das ditaduras parecia se exaurir, adentramos na era da
desertificação neoliberal. A aplicação do receituário formulado no
chamado Consenso de Washington significou uma agressiva política de
privatização do setor público e estatal (siderurgia, telecomunicações,
energia elétrica, setor bancário etc), aprofundando ainda mais a
subordinação do continente latinoamericano aos interesses financeiros
hegemônicos, especialmente àqueles sediados nos Estados Unidos.
Privatização, desregulamentação, fluxo livre de capitais,
financeirização, terceirização e precarização intensificada do trabalho,
trabalho temporário (um bom exemplo encontramos nas maquiladoras no
México e nos países da América Central), desemprego estrutural, aumento
da miserabilidade, estas foram as conquistas da “democracia neoliberal”
em que tantos, tantos, acreditaram.
Mas nosso continente do labor
parece ter uma força prometeica: contra a arquitetura
institucional-eleitoral das classes dominantes, formatação cuja anatomia
se encontra na preservação a qualquer preço dos capitais, os povos
indígenas, os campesinos, os sem-terra, os operários despossuídos, as
camadas médias assalariadas e empobrecidas, os trabalhadores
precarizados, os desempregados, homens e mulheres, esboçam novas formas
de ação e de luta social e política, obstando governos e grupos que tem
sido dominantes há muito tempo.
Nos Andes,
com sua cultura indígena milenar, pré-hispânica, ressurgem as rebeliões:
a Bolívia dos povos indígenas e camponeses avança na luta contra a
exploração e a sujeição. Os morros e bairros populares de Caracas buscam
formas alternativas de organização popular, através dos conselhos
comunais. Na Argentina, especialmente durante crise de 2001, os
piqueteros expuseram o seu flagelo e os trabalhadores e trabalhadoras
sem trabalho ocuparam as fábricas denominadas como recuperadas, que
totalizaram mais de duas centenas espalhadas pelo país.
Da rebelião
de Chiapas (iniciada em 1994) até a experiência da Comuna de Oaxaca
(2005), deflagrada a partir de uma greve de professores da rede pública
daquela comunidade, ou, mais recentemente, das lutas dos estudantes e
trabalhadores no Chile, onde as famílias se endividam, vendem suas casas
para manter seus filhos nas universidades quase todas privatizadas,
cujo objetivo não é outro senão o lucro. E é esse explosivo e massivo
levante estudantil, com apoio dos pais, professores e opinião pública,
que está exigindo mudanças profundas e recuperando a história
interrompida desde a queda de Allende. Sua luta é vital, para o desenho
da democracia substantiva e o resgate do socialismo no Chile.
Qual democracia?
foi o título dado a este artigo: ela é tecida por quem e para quem? A
resposta provocativa que ofereci no livro O Continente do Labor, veio
sob a forma de interrogação: não estarão os trabalhadores e as
trabalhadoras em nossa América Latina, os povos andinos, amazônicos,
indígenas, negros, brancos, homens e mulheres, dos campos e das cidades,
operários e operárias, a proclamar que a América Latina não está mais
disposta a suportar a barbárie, a subserviência, a iniquidade que, em
nome da “democracia das elites”, assume de fato a postura do império, da
autocracia, da truculência, da miséria e da indignidade e do capital?
Não estaremos começando a redesenhar as novas vias abertas na América Latina?
* Publicado originalmente no jornal Juízes para a Democracia, publicação oficial da Associação dos Juízes para a Democracia, Ano 14 – nº 56 – Dezembro – 2011 / Fevereiro – 2012
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Ricardo Antunes é professor titular de sociologia do trabalho na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador da coleção Mundo do Trabalho, da Boitempo Editorial. Organizou os livros Riqueza e miséria do trabalho no Brasil (2007) e Infoproletários: a degradação real do trabalho virtual (2009), ambos publicados pela Boitempo. É autor, entre outros, de Adeus ao trabalho? (Cortez), Os sentidos do trabalho (1999) e O caracol e sua concha (2005), além de O continente do labor, lançado no ano passado, esses três últimos também pela Boitempo Editorial.
Um comentário:
CONTRA A AVAREZA HUMANA (a riqueza de poucos em cima da exploração de muitos), por uma sociedade mais justa e com distribuição igual de renda, do aproveitamento dos recursos naturais e intelectuais. DEMOCRACIA SEMPRE!!!
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