"Em um momento no qual o Brasil ganha importância no cenário
internacional, nossa contribuição para a reinvenção da política em uma
era nebulosa no continente europeu e nos Estados Unidos é próxima de
zero".
Há várias maneiras de despolitizar uma sociedade.
A principal delas é
impedir a circulação de informações e perspectivas distintas a respeito
do modelo de funcionamento da vida social. Há, no entanto, uma forma
mais insidiosa. Ela consiste em construir uma espécie de causa genérica
capaz de responder por todos os males da sociedade. Qualquer problema
que aparecer será sempre remetido à mesma causa, a ser repetida
infinitamente como um mantra.
Isto é o que ocorre com o problema da corrupção no Brasil. Todos os
males da vida nacional, da educação ao modelo de intervenção estatal, da
saúde à escolha sobre a matriz energética, são creditados à corrupção.
Dessa forma, não há mais debate político possível, pois o combate à
corrupção é a senha para resolver tudo.
Em consequência, a política
brasileira ficou pobre.
Não se trata aqui de negar que a corrupção seja um problema grave na
vida nacional. É, porém, impressionante como dessa discussão nunca se
segue nada, nem sequer uma reflexão mais ampla sobre as
disfuncionalidades estruturais do sistema político brasileiro, sobre as
relações promíscuas entre os grandes conglomerados econômicos e o Estado
ou sobre a inexistência da participação popular nas decisões sobre a
configuração do poder Judiciário.
Por exemplo, se há algo próprio do Brasil é este espetáculo macabro
onde os escândalos de corrupção conseguem, sempre, envolver oposição e
governo.
O que nos deixa como espectadores desse jogo ridículo no qual um lado
tenta jogar o escândalo nas costas do outro, isso quando certos setores
da mídia nacional tomam partido e divulgam apenas os males de um dos
lados.
O chamado mensalão demonstra claramente tal lógica.
O esquema de
financiamento de campanha que quase derrubou o governo havia sido
gestado pelo presidente do principal partido de oposição.
Situação e
oposição se aproveitaram dos mesmos caminhos escusos, com os mesmos
operadores. Não consigo lembrar de nenhum país onde algo parecido tenha
ocorrido.
Uma verdadeira indignação teria nos levado a uma profunda reforma
política, com financiamento público de campanha, mecanismos para o
barateamento dos embates eleitorais, criação de um cadastro de empresas
corruptoras que nunca poderão voltar a prestar serviços para o Estado,
fim do sigilo fiscal de todos os integrantes de primeiro e segundo
escalão das administrações públicas e proibição do governo contratar
agências de publicidade (principalmente para fazer campanhas de
autopromoção). Nada disso sequer entrou na pauta da opinião pública. Não
é de se admirar que todo ano um novo escândalo apareça.
Nas condições atuais, o sistema político brasileiro só funciona sob
corrupção. Um deputado não se elege com menos de 5 milhões de reais, o
que lhe deixa completamente vulnerável -para lutar pelos interesses
escusos de financiadores potenciais de campanha. Isso também ajuda a
explicar porque 39% dos parlamentares da atual legislatura declaram-se
milionários. Juntos eles têm um patrimônio declarado de 1,454 bilhão de
reais. Ou seja, acabamos por ser governados por uma plutocracia, pois só
mesmo uma plutocracia poderia financiar campanhas.
Mas como sabemos de antemão que nenhum escândalo de corrupção chegará
a colocar em questão as distorções do sistema político brasileiro,
ficamos sem a possibilidade de discutir política no sentido forte do
termo. Não há mais dis-cussões sobre aprofundamento da participação
popular nos processos decisórios, constituição de uma democracia direta,
o papel do Estado no desenvolvimento, sobre um modelo econômico
realmente competitivo, não entregue aos oligopólios, ou sobre como
queremos financiar um sistema de educação pública de qualidade e para
todos. Em um momento no qual o Brasil ganha importância no cenário
internacional, nossa contribuição para a reinvenção da política em uma
era nebulosa no continente europeu e nos Estados Unidos é próxima de
zero.
Tem-se a impressão de que a contribuição que poderíamos dar já foi
dada (programas amplos de transferência de renda e reconstituição do
mercado interno).
Mesmo a luta contra a desigualdade nunca entrou
realmente na pauta e, nesse sentido, nada temos a dizer, já que o Brasil
continua a ser o paraíso das grandes fortunas e do consumo conspícuo.
Sequer temos imposto sobre herança.
Mas os próximos meses da política
brasileira serão dominados pelo duodécimo escândalo no qual alguns
políticos cairão para a imperfeição da nossa democracia continuar
funcionando perfeitamente.
Vladimir Safatle
Um comentário:
Muito bom o texto.
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