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segunda-feira, 4 de junho de 2012

A inadiável atualização ideológica da esquerda


O semanário Brecha propôs um debate para lideranças políticas uruguaias a partir de um artigo do governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, sobre os limites e desafios, para a esquerda, de governar e, ao mesmo tempo, não abandonar a reflexão teórica e as ideias da utopia socialista. O resultado desta provocação, destaca o Brecha, está longe de ser óbvio. A Carta Maior começa a reproduzir esse debate com o artigo de Miguel Fernández Galeano, ex-vice-ministro de Saúde Pública e ex-Diretor Geral de Saúde e Programas Sociais da Prefeitura de Montevidéu.

“As tarefas do governo tendem a promover o abandono da reflexão teórica pela necessidade empírica de ‘resolver problemas’. A socialdemocracia reformista que assumiu os governos de esquerda neste período fez com que a utopia socialista fosse deixada de lado para preservar a utopia democrática”. Frases como estas formam o núcleo de um artigo que o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, publicou em abril deste ano, e que levou o semanário uruguaio Brecha a convidar lideranças políticas uruguaias para debatê-las.

O resultado desta provocação, destaca o Brecha, está longe de ser óbvio. A Carta Maior começa a reproduzir esse debate com o artigo de Miguel Fernández Galeano, ex-vice-ministro de Saúde Pública e ex-Diretor Geral de Saúde e Programas Sociais da Prefeitura de Montevidéu.


A inadiável atualização ideológica da esquerda

Na Frente Ampla está pendente um processo de atualização ideológica que até agora não deixou de ser uma boa intenção, mas nos fatos estamos longe de encontrar caminhos para avançar em conteúdos e chegar a uma nova síntese. No debate de ideias, a esquerda não está ganhando apesar de contar com todas as evidências e possibilidades reais de conseguir uma rotunda vitória intelectual.

A inércia vai ganhando e a única coisa que funciona é a estrutura de governo. O que ocorre, no máximo, é a discussão ou a reclamação sobre a gestão do governo. Sabemos que não é possível dar conta, ao mesmo tempo, do fazer com o pensar, e muito menos a planificação estratégica e o processo de discussão e síntese ideológica.

Visto desde o exercício e os resultados do governo o projeto de esquerda não está em crise, mas talvez o esteja em seu projeto histórico, se não se construir uma proposta coletiva que abra espaço para um projeto alternativo ao capitalismo, para além de gerir a economia e o governo nos marcos impostos pelo politicamente aceitável.

Há sérios riscos de que a esquerda se integre de forma irrefletida e acrítica no sistema político, no status quo, e estabeleça relações cada vez mais alienadas e distantes em relação aos movimentos sociais e aos intelectuais que procuram se envolver em sua renovação. Ao mesmo tempo, ela está atravessada por limites auto impostos que impedem repensá-la para enfrentar com eficácia o projeto ideológico da direita que tenta recuperar terreno. O governo tem que resolver os desafios que impõe a gestão de governo, administrar a coisa pública e procurar não inquietar os eleitores.

Mas qual é o papel que reservamos ao partido?

Como diz Tabaré Vázquez em sua proposta de atualização, “a ideologia não é uma moda, nem um cão de guarda do passado, nem um belo mas irrealizável plano do paraíso...sua atualização é tão permanente como necessária e inexorável. Negar-se a fazê-la é ignorar a natureza humana e, no caso dos frenteamplistas, renunciar à construção de um Uruguai melhor, que é a razão que nos une, convoca e impulsiona’.

Trata-se de assumir e hierarquizar o papel indelegável da força política como âmbito fundamental para abordar (aberto ao conjunto de seus militantes e à sociedade em seu conjunto) as definições programáticas e o marco ideológico para projetar o futuro do país por muitos anos.

A Frente Ampla deve se renovar em relação a um contexto que se expressa em múltiplas formas de participação social organizada. Isso é particularmente assim, se levamos em conta uma hi9stória que, nos últimos 40 anos, tem sido intensa, cambiante e cheia de desafios e sacrifícios dos quais, com unidade e inteligência, soubemos sair. Trata-se, além disso, de uma história que se inscreve nas transformações profundas que atravessa o próprio capitalismo.

A necessidade de projetar uma sociedade de novo tipo não está superada, construir a viabilidade de um modelo alternativo a um capitalismo que não faz outra coisa do que exacerbar suas próprias contradições e em cuja própria essência não está buscar a superação das mesmas. Não devemos confundir capitalismo global e unipolar com capitalismo definitivo.

É imperativo voltar a problematizar a realidade de que o corpo social está segmentado em classes, para além de como as definamos, e dizer que isso não é “normal” nem produto de “processos naturais de seleção da espécie”. Devemos dizer novamente que a segmentação social é produto de uma injustiça estrutural e uma inequidade na distribuição da riqueza, que determina a vida das pessoas mesmo antes delas nascerem.

Em nosso horizonte ético, mas também no campo do racional se impõe como necessidade civilizatória voltar a resgatar a ideia originária de receber de cada um segundo sua capacidade e dar a cada um segundo sua necessidade. Para além de definições setoriais, a Frente Ampla como tal nunca se definiu pelo socialismo, mas acima dos rótulos importa debater os conteúdos sobre os caminhos que devemos abrir para o aprofundamento do projeto estratégico do país para os próximos 20 ou 30 anos.

É preciso ver a perspectiva de um horizonte socialista como algo inserido nas lutas atuais pelo protagonismo popular, pela democratização das políticas públicas, pela superação de todo forma de discriminação e desigualdade, não como uma meta hipotética a alcançar onde o desenvolvimento das forças produtivas empurre a mudança das relações de produção. Se um projeto de sociedade substantivamente distinto do atual não aparece como transformador das práticas predominantes, é difícil que se chegue a acumular forças para essas mudanças estruturais. A dimensão cultural e de valores é chave.

No entanto, é preciso admitir que sabemos mais sobre o que não queremos do socialismo do que o que queremos. O impacto e a perplexidade que gerou a queda de formas autodenominadas socialistas são um fator explicativo do atraso para efetuar uma necessária e impostergável revisão de tais processos.

Para tornar possível a superação do capitalismo é imprescindível repensar o socialismo. Os modelos aplicados até o presente e suas heranças pesam muito para poder levantar suas bandeiras (ou mesmo as da esquerda) sem a obrigação ética de prestar contas com esse passado. Nos modelos de “socialismo real” que dominaram o século passado, nem a economia com o capitalismo de estado, nem a estrutura política com um estado autoritário e policial tinham alguma coisa do projeto socialista.

Chegou-se a contrapor a justiça social com a liberdade, subestimando as liberdades públicas e os direitos humanos como componentes inerentes ao socialismo, deixando nas mãos do discurso capitalista estas bandeiras; afastando deste modo a esquerda de sua essência libertária. Foram subestimadas as formas autogestionárias, cooperativas ou cogestionárias de organização econômica e social, fazendo uma mecânica identificação do socialismo com a propriedade estatal e se justificou a concentração do poder e a falta de participação dos trabalhadores em favor de um estado que, supostamente, os representava, caindo inevitavelmente no economicismo simplificador das relações sociais.

Outra grande restrição à essência dos socialismo foi a superposição do Partido, do Governo e do Estado, com a consequente concentração do poder consolidando a supremacia de um só partido sobre toda a sociedade. Esta aparece sufocada em sua diversidade, onde não se promove a trama social participativa, integradora, heterogênea, como um fator essencial da transformação socialista e não só como transição, mas sim como destino estratégico.

A reivindicação da diversidade junto com a equidade, como parte do projeto finalista de sociedade é tão clara como necessária. É um componente estruturante de uma transformação cultural que o socialismo deste novo tempo está chamado a impulsionar, rejeitando toda tentativa de pensamento único, com veladas reivindicações de um saber e um controle total.

Finalmente, em nome do socialismo, se desconsideraram as contradições que surgem das relações de desigualdade ou de opressão em outros planos como as de gênero, de raça, opção sexual e, em matéria artística, se internalizaram dogmas que empobreceram a criatividade e o espírito inovador. Devemos assumir que a esquerda não soube incluir em sua própria agenda a emancipação individual, o tempo para pensar e assumir a qualidade das relações sociais ou os potenciais de autorrealização.

Existem condições objetivas e também subjetivas para que a esquerda retome a iniciativa, hierarquizando políticas públicas e um Estado que atenda as novas realidades e o fortalecimento de uma sociedade civil protagonista, ativa, dinâmica, autônoma e independente do Estado e de qualquer outro centro de poder político e/ou econômico, com capacidade de iniciativa e proposta para incidir nas transformações estruturais.

Essa é a discussão que a Frente Ampla deve começar a fazer com vistas a uma nova síntese. Respeitando a diversidade e os tempos de distintos atores que a compõem, sem renunciar a um amplo e crescente intercâmbio que, sem violentar as definições de cada um, permita saber para onde vamos e não ficar estagnados com o piloto automático e sem estratégia, com o que isso supõe em termos de acumulação de forças para as mudanças.

Descartando qualquer tentação de abraçar modelos normativos ideais, definidos até o último detalhe, transferíveis para qualquer realidade, a ideia central passa pela democratização radical da sociedade e do Estado, aprofundando o sistema democrático na direção de uma democracia participativa, sem se opor a ou negar mecanismos representativos.

Habilitando controles sociais e desenvolvendo múltiplas formas de organização, circulação e funcionamento do poder. Superando a lógica do poder-dominação para uma lógica do poder-serviço. Criando as melhores condições para construir a viabilidade de reformas de fundo em diferentes campos e sua interação no território como lugar privilegiado para atender as necessidades e demandas da vida cotidiana das pessoas. Promovendo sujeitos populares capazes de somar com outros para empurrar as mudanças, de interagir com o Estado não só desde o plano reivindicativo, fortalecendo a capacidade de proposta e ação transformadora.

Assumir a democracia como um valor em si mesmo implica o reconhecimento da política como um campo da sociedade onde existirão distintas opções ideológicas, expressando e interesses e visões diversos, em posições encontradas ou em alianças.

Um horizonte socialista e os passos mais curtos e mais longos para alcançá-lo, constituem uma enorme e profunda transformação, mas não são um ponto de chegada. Fazem parte de um processo de conquistas políticas, econômicas, culturais e sociais que habilita caminhos para novos avanços.

Essa renovação das metas, em período pós-utopias libertadoras, é uma questão essencial para o objetivo substantivo de conseguir um desenvolvimento mais pleno dos seres humanos em equilíbrio e respeito com o ambiente.

(*) Ex-vice-ministro de Saúde Pública e ex-Diretor Geral de Saúde e Programas Sociais da Prefeitura de Montevidéu.

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