Em vez de valorizar relação única entre bola, arte e multidões, Brasil arrisca submeter-se a lógica que elitiza e apequena esporte
Por Irlan Simões | Imagem: Francisco Rebolo, Futebol (1936)
O
jornalismo brasileiro sempre teve um exército de palpiteiros e
comentaristas, que povoam todos os dias rádios, televisões, meios
impressos e online. Ainda que pouco se possa esperar dessas “opiniões”,
diante do grau de controle editorial dos meios, é cada vez mais
surpreendente a incapacidade da mídia esportiva nacional para tratar com
profundidade o futuro do futebol.
O Brasil
que vive um momento de transformações estruturais em seu esporte mais
popular. Os debates mais relevantes passam ao largo da mídia, tomada por
analises táticas intermináveis e improdutivas, discussões rasas e
geradoras de falsas polêmicas e o curioso “novo jornalismo
humorístico-esportivo”, que prolifera.
À medida
em que se aproxima a Copa do Mundo de 2014, aprofunda-se, ainda que de
forma lenta e sutil, uma política de segurança e “modernização” cada vez
mais rígida e segregadora. Ao invés de analisarmos o que acontece no
futebol, buscaremos entender o que são as forças policiais no Brasil, o
que significam e o que pretenderão, quando esse processo estiver
concluído.
Para
entendê-lo, é útil ter como parâmetro a realidade europeia, também
dominada por uma concepção de combate “aos torcedores violentos”. Alguns
setores da imprensa europeia – minoritários, mas fundamentais – vêm
cumprindo papel importantíssimo na denúncia de certos absurdos. São
iniciativas como o próprio Outras Palavras, que abre aqui esse canal de debates.
Quem deseja o “novo futebol”?
O abuso da
força e a falta de sintonia da ação policial com a realidade
sócio-econômica brasileira nunca foi novidade. No futebol, é histórica a
discussão sobre segurança em dias de jogos. Volta e meia, ela se reduz
(de forma errônea, mas também proposital) ao controle repressão das
torcidas organizadas.
Por isso, é
preciso ir além da discussão pura e crua do pragmatismo que envolve a
questão da “segurança”. Ainda mais no Brasil, marcado por uma cultura de
controle social, imposição do poder e violência do Estado e grupos
sociais dominantes. Estes valores são, em grande parte, estimulados,
provocados e apoiados pela ampla maioria dos meios midiáticos
esportivos.
A falta de
uma discussão mais profunda e séria sobre o tema se deve a dois fatores
primordiais: a conivência da mídia esportiva com o processo de
mercantilização do futebol e, principalmente, a grande despolitização da
discussão sobre o esporte.
Futebol-entretenimento e despolitização
O futebol
não é mais o mesmo dos anos 1970, que se estruturava com imensos
estádios e convidava as massas – incluindo os torcedores mais pobres,
que ainda podiam pagar ingressos. Hoje, impera em todo o mundo a
ideologia do futebol-entretenimento. Inclui grande promiscuidade entre
os interesses dos cartolas, empresários de jogadores, patrocinadores de
clubes e os das emissoras de TV – as grande detentoras dos direitos de
imagem do futebol nacional (inclusive do seu, que pagou ingresso
“prevendo” essas cláusulas). Os estádios já não podem acolher um público
que se aproxime de 100 mil pagantes, número atingido diversas vezes no
Brasil.
Essa visão
“programática” de uma reestruturação do futebol teve na Europa seu
pontapé inicial. O Brasil viverá, com a Copa do Mundo, o momento
crucial: poderá aceitá-la ou não. A proposta é diminuir os estádios,
reduzir sua capacidade e transformar o público assistente em
telespectador. Basta ver como se dão as reformas dos estádios
brasileiros: redução da capacidade em cerca de 20%; setorização e fim
das áreas populares; desenvolvimento de novos serviços alheios ao
esporte, como shows e espaços semelhantes aos de shopping centers;
aumento do valor dos ingressos, como decorrência final das mudanças.
Tais
transformações estruturais do são apresentadas pela mídia como grande
avanço, passo para a modernização do futebol brasileiro. Pior: mesmo
setores que estarão excluídos dos estádios, quando este processo estiver
concluído, comemoram…
O
“maloqueiro-sofredor” do Corinthians terá, após a Copa do Mundo, a mesma
dificuldade de assistir a um jogo no Itaquerão-Odebretch que o
“mulambo” do Flamengo enfrentará, no futuro Maracanã-Gutierrez. Mas tais
transformações são “naturalizadas”, como se fossem o único caminho
possível.
Alguns
jornalistas já declaram abertamente seu apoio ao novo modelo. É o caso
de Alberto Helena Jr., comentarista do Arena SporTV, que conseguiu
irritar inclusive colegas de profissão, ao dizer que : “A tendência natural é a grande massa vendo futebol pela TV e uma elite nos estádios”.
Em nenhum
momento, a mídia esportiva brasileira procurou mostrar os efeitos deste
retrocesso no futebol na Europa – principalmente em na sua
menina-dos-olhos, a Premier League.
Na Inglaterra o público assistente tem se limitado a homens com mais de
30 anos renda superior à grande maioria da população local.
Além de
ser condicionado a comemorar sua própria exclusão dos estádios, o
brasileiro de baixa-renda não é informado de que ele próprio está
financiando esse projeto. Em matéria para o portal UOL, o jornalista
Vinícius Kochinski reportou que
dez estádios, dos doze escolhidos para sedes da Copa do Mundo, já estão
cotados para ter administrações privadas. Isso, apesar de 97% dos
recursos aplicados nesses estádios provirem do governo federal, através
de mega-empréstimos concedidos pelo BNDES.
A
“naturalização” dessas mudanças e a confusão entre os interesses dos
torcedores e o de quem lucra com esse “novo futebol” são, antes de tudo,
consequências da despolitização do tema. Essa dissociação é mais
facilmente operada quando, em caso de confronto entre integrantes de
torcidas organizadas, o tema é tratado – e repercute intensamente, em
todas as seções dos jornais e noticiários – como “caso de polícia”.
A própria
concepção de entretenimento já caracteriza os fins desse projeto de
futebol. Entretenimento é aquilo que distrai, que espairece e desvia a
atenção. O futebol, deslocado do processo de embates políticos, torna-se
mero objeto de manipulação.
Na próxima
semana, veremos como esta concepção está sendo implantada agora, e
quais os possíveis caminhos para resistir a ele e superá-la.
–
*Irlan Simões é estudante de Comunicação Social e torcedor do Esporte Clube Vitória. Atua no Movimento Somos Mais Vitória, na Associação Nacional dos Torcedores, na Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social e acha que o futebol deve ser jogado pela ala esquerda.
*Irlan Simões é estudante de Comunicação Social e torcedor do Esporte Clube Vitória. Atua no Movimento Somos Mais Vitória, na Associação Nacional dos Torcedores, na Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social e acha que o futebol deve ser jogado pela ala esquerda.
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