Libertação de Fábio Hideki e Rafael Lusvarghi expõe aparato
repressor da PM e Justiça paulistas: de provas forjadas a magistrado que
protege racismo e se expressa como playboy fanfarrão
Por Alex Antunes, em seu blog
A manutenção da prisão dos
ativistas Fábio Hideki e Rafael Lusvarghi foi um escândalo que durou 45
dias. Foram presos em 23 de julho, após uma manifestação contra a Copa
em São Paulo, e indiciados como black blocs, pela suposta posse de
materiais explosivos, entre outras acusações.
Acontece que havia inúmeras testemunhas em
contrário. Desde o padre Júlio Lancelotti e outros presentes, que viram e
filmaram a polícia vasculhando a mochila de Hideki, já dentro do Metrô,
até o fato incontestável de que os dois não se conheciam (o que punha
por terra a acusação de que fariam parte da “mesma organização
criminosa”).
Hideki é estudante e funcionário da USP.
Pacifista e vegetariano (não na prisão, onde sua dieta foi
desrespeitada), não é adepto de práticas violentas. Já o professor de
inglês Lusvarghi foi preso sem camisa, de kilt. Gosta de games, de
vikings e de estratégia militar; já foi PM por curtos períodos, em São
Paulo e no Pará, e tentou se alistar na Legião Estrangeira da França e
no exército russo, tendo viajado bastante pelo exterior.
Ao contrário de Hideki, que é um ativista de
trajetória mais ou menos padrão, Lusvarghi é um aventureiro. De certa
forma exemplificam a variedade de tipos que foram para as ruas protestar
desde as manifestações de junho de 2013 – mas certamente não têm nada
em comum, e não configuram nenhum “modus operandi”.
Ou melhor, têm algo em comum sim. Nesta
segunda-feira soube-se que a perícia da polícia (do Gate – Grupo de
Ações Táticas Especiais e do IC – Instituto de Criminalística)
determinou que os objetos que supostamente portavam não eram explosivos,
e não tinham qualquer potencial agressivo ou destrutivo.
Uma garrafinha de nescau estaria com
Lusvarghi, com tampa de papel presa por um elástico, e uma estranha lata
estaria com Hideki – um frasco do fixador de corantes para tecidos Fix
com um barbante passando por dentro. Fazem um belo aparato de guerrilha
urbana, junto com a cândida e o pinho sol do morador de rua Rafael
Vieira, que foi condenado a cinco anos de prisão no Rio de Janeiro, por
carregá-los durante as manifestações do ano passado.
Lembra as trapalhadas da ditadura militar. E
seria ridículo, se não se tratasse da destruição da vida de cidadãos. As
recentes investigações da polícia do Rio flagraram citações a um certo
suspeito, Bakunin, que passou a ser investigado, como se estivesse vivo e
no Brasil. O episódio se parece com as apreensões por engano, durante a
ditadura, do romance A Capital, de Eça de Queiroz.
O advogado de Hideki, Luiz Eduardo Greenhalg,
entrou já na terça-feira com um novo pedido de libertação. Duas
questões se colocam, para além da grande questão da ilegalidade dessa
prisão política, baseada em (ex) provas fraudadas (aqui neste site estão todas as informações sobre Hideki).
A primeira: porque um laudo da própria
polícia se prestaria a invalidar as provas materiais – principalmente se
elas foram plantadas? Uma teoria conspiratória mas atraente é a de que o
governador Alckmin sabe que se a perícia “encontrasse” materiais
explosivos, a percepção popular seria de que as provas e o laudo foram
uma grande armação. Melhor dar um freio de arrumação no caso.
A outra é a estranha manifestação do juiz
Marcelo Matias Pereira, da 10ª. Vara Criminal de SãoPaulo, do dia 1º de
agosto, sexta-feira (antes do laudo, portanto), que naquela ocasião
negou o pedido de revogação da prisão preventiva, mantendo Hideki e
Lusvarghi presos.
Escreveu o juiz em um trecho:
“Além de descaradamente
atacarem o patrimônio particular de pessoas que tanto trabalharam para
conquistá-lo, sob o argumento de que são contra o capitalismo, mas usam
tênis da Nike, telefone celular, conforme se verifica nas imagens,
postam fotos no Facebook e até utilizam uma denominação grafada em
língua inglesa, bem ao gosto da denominada esquerda caviar”.
Denominada… por quem, excelentíssimo senhor doutor juiz Pereira?
A expressão “esquerda caviar” (que o blogueiro da Veja
Rodrigo Constantino costuma usar), além de trazer um indevido conteúdo
ideológico e fora dos autos para um despacho oficial, ainda é empregada,
no caso, de maneira errada.
“Esquerda caviar” (“gauche caviar” na França,
e seus similares “champagne socialist”, na Inglaterra, “limousine
liberal” e “radical chic” nos EUA, “salonkommunist” ou comunista de
salão na Alemanha, e outros que a Wikipedia lista)
diz respeito à época contracultural em que o socialismo e as lutas
civis ficaram chiques em alguns ambientes (de 1968 em diante).
O termo “radical chic” foi cunhado por Tom
Wolfe em um artigo de 1970, “Radical Chic: That Party at Lenny’s”, que
falava de uma festa do maestro Leonard Bernstein com seus amigos da
elite culta para obter fundos para os Panteras Negras. Na França, o
similar “caviar gauche” serviu para designar socialistas de hábitos
poucos sóbrios, a começar por François Miterrand, presidente entre 1981 e
1995.
Ou seja, o uso constantino da expressão é uma
distorção local (ainda mais) moralista. Que o blogueiro vende e que o
ilustre juiz aparentemente comprou, de maneira quase inocente. A noção
de que ativistas não deveriam calçar tênis de marca, postar no Facebook e
usar termos em inglês (como quase todos os jovens fazem) parece esperar
que os manifestantes atuais se comportem como proletários comunas
caricatos do século passado. Sendo que os próprios proletários deste século
já estão todos no Facebook. Constantino e a direita blogueira têm que
decidir se a esquerda ortodoxa é arcaica e ultrapassada, como gostam de
dizer, ou não.
Acontece que o juiz Pereira é o mesmo que
inocentou Danilo Gentili de uma acusação de racismo, quando o
“humorista” ofereceu bananas a um negro (o empresário Thiago Ribeiro),
em 2012. E o desvio de significado começa a fazer sentido. Gentili é
amigo de Constantino. Não espantam juízes conservadores – é um calo da
profissão. Mas não se espera da justiça que ela se expresse como um
playboy fanfarrão.
Na tarde de quinta-feira, diante do
novo pedido de libertação com base no laudo, e da repercussão de sua
sentença anterior, o próprio juiz Pereira finalmente mandou soltar Hideki e Lusvarghi. Um
mês e meio de estado de exceção, baseado em coisa nenhuma, a não ser na
determinação de reprimir a livre manifestação política.
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