Por Cátia Guimarães, jornalista
Passaram-se mais de 20 anos, mas a
grande imprensa brasileira não desaprendeu o seu papel como braço da
ditadura. Os personagens são outros, mas aqueles velhos instrumentos que
ajudam a explicar por que se fere a democracia em nome da própria
democracia estiveram sempre guardados e continuam afiados, exatamente
como em 1964. Não há maior evidência disso do que a cobertura que os
grandes jornais fizeram das prisões de manifestantes efetuadas no último
dia 12/7, véspera da final da Copa do Mundo no Brasil.
Numa ação orquestrada entre executivo e
judiciário, foram expedidos 26 mandados de prisão temporária preventiva
contra cidadãos que não cometeram nenhum crime, além de, em algum
momento, uns mais, outros menos, terem participado de manifestações nas
ruas. Sustentando a acusação de formação de quadrilha, a polícia civil
não teve nenhuma vergonha em declarar que o motivo das prisões foi
evitar que eles cometessem crimes que se supunha que cometeriam. Mas o
que é pior: veículos de comunicação e profissionais que julgam fazer
jornalismo também não tiveram a mínima vergonha de repetir, de forma
naturalizada, não só esse argumento como coisa muito pior.
O principal artifício ressuscitado dos
tempos da ditadura escancarada foi a criação de um inimigo público,
aquele cujo perigo justifica toda e qualquer violência e arbitrariedade.
Houve muitos durante o regime empresarial-militar. Mas o mais novo
inimigo público inventado pelo regime empresarial-falsamente democrático
chama-se Elisa Quadros e atende pelo apelido de Sininho. Não por acaso,
a chamada de quase todos os grandes jornais não informava a prisão de
dezenas de manifestantes, destacando apenas a situação dessa personagem
renascida dos porões da ditadura. “Sininho é presa por formação de
quadrilha”, diz a capa do Globo de domingo, 13/7. O “resto” aparece
embaixo, em letras menores, como uma rápida referência a “outras 18
pessoas”.
E isso basta, principalmente porque,
também como na ditadura explícita, a imagem do inimigo público está
sempre acompanhada da vítima a ele atribuída, direta ou indiretamente.
Nesse caso, a vítima (real, mas de outros algozes, e não me refiro aos
que foram presos por este crime), instrumentalizada como carniça de
urubu, é Santiago Andrade, o cinegrafista da Rede Bandeirantes que foi
morto por um morteiro em uma manifestação.
Aos fatos
Não importa que nem a inimiga pública de
agora nem nenhum dos outros presos tenha relação com a morte: no
imaginário cuidadosamente construído, os estereótipos dão conta das
relações que a realidade insiste em negar. Foi por isso que o Globo,
além do nome e da foto da inimiga pública da vez, tratou de providenciar
uma coluna de “memória” intitulada “Onda de violência acabou em morte”,
que lembra exatamente o caso do cinegrafista.
Com isso, todo o resto – toda a falta de
informação, todas as falsas evidências, todos os argumentos absurdos,
toda a vergonha alheia que a entrevista coletiva da cúpula da polícia
civil no Rio provocou – pode ser jogado para debaixo do tapete. Trata-se
de uma postura consciente por parte do jornal, passiva e conivente por
parte dos jornalistas que aceitam ser seus cúmplices, e muito eficaz no
papel ideológico que desempenha junto à massa de leitores ou
telespectadores. Junto com o inimigo público, vão-se outras dezenas de
vidas, vai-se o respeito às leis, vai-se a máscara do Estado de direito.
Se estivesse vivo, talvez Roberto Marinho repetisse os termos do seu
editorial de 1984, deixando “clara a sua crença de que a intervenção
fora imprescindível para a manutenção da democracia e, depois, para
conter a irrupção da guerrilha urbana”, nome genérico usado, naquele
tempo e ainda hoje, para designar o estranho fenômeno do povo ocupando
as ruas.
Sejamos claros: um jornalista que não só
aceita como passa adiante a informação de que a polícia encontrou
provas “robustas e consistentes” de que os prisioneiros cometeriam ações
violentas na final da Copa, sem confrontar os adjetivos com as
evidências materiais, não vale o diploma nem o crachá que exibe, seja
ele qual for. Seria cômico, se não se estivesse falando de vidas
privadas de liberdade, ver um jornal como O Diareproduzir, no melhor
estilo de narrativa policial, que “os investigadores apreenderam
máscaras de proteção contra gás, joelheiras, um pouco de gasolina dentro
de uma garrafa plástica, maconha, jornais e uma bandeira do Movimento
Estudantil Popular Revolucionário (MEPR)”. Seria incompetência, se não
fosse desonestidade, ver um jornal como o Globo escolher, dessa lista no
mínimo constrangedora, os itens que, por exporem um pouco menos o
ridículo da situação, mereceriam destaque nas suas páginas.
Assim, sobraram as “máscaras de gás e
explosivos, além de computadores e celulares”. Computadores e celulares,
como todo mundo sabe, são armas perigosíssimas. Máscaras que protegem
os olhos dos efeitos do gás lacrimogêneo para uso em manifestações
acompanhadas por uma polícia como a do Rio de Janeiro também são uma
descoberta típica das séries de detetives norte-americanas. Sobre o
explosivo, esse foi o nome genérico oportunamente encontrado para
descrever uma garrafa com gasolina, encontrada não numa mochila no meio
da rua ou de uma manifestação, mas dentro de uma residência. Nenhum
jornal esqueceu de mencionar que as prisões em flagrante foram por
“arma” (ou revólver, dependendo do gosto do jornalista) e “drogas”.
Pois bem: como foi amplamente divulgado
por veículos que se disseminam nas redes sociais – aqueles que os
jornalistas da grande imprensa costumam tratar como não-jornalísticos –,
a arma foi encontrada em uma das casas e era do pai do menor em nome de
quem estava expedido um dos mandados. Sua licença – porte de arma –
estava vencida, o que pode gerar outro processo e outra matéria, mas não
tem nenhuma relação com a prisão que os policiais foram fazer naquela
casa. Por fim, as “drogas” encontradas foram um cigarro de maconha que,
como se sabe, pelas propriedades cientificamente conhecidas, deve tornar
os manifestantes ainda muito mais violentos. Curiosamente, os jornais
esqueceram essa parte da história.
A imprensa alternativa que ocupa as
redes sociais denunciou desde muito cedo, advogados e políticos se
pronunciaram, instituições importantes e reconhecidas da tão aclamada
democracia, como a OAB, emitiram notas que ganharam espaço no pé das
matérias, apresentadas como manifestação de “repúdio” às prisões, num
mero registro protocolar do “outro lado” jornalístico. A referência ao
objetivo evidente de desmobilizar os protestos do dia seguinte – cujo
grau insano de repressão e violência só chegou às páginas da grande
imprensa porque alguns de seus jornalistas foram atingidos – foi citada
de escanteio, como a “opinião” de alguns, nunca como insumo para se
questionarem as fontes oficiais.
Nenhum jornalista ousou fazer (ou nenhum
jornal ousou publicar) o mínimo que se espera de um profissional da
informação, que é usar os conhecimentos jurídicos dessas instituições e
seus atores para questionar a legalidade e o fundamento da operação
policial e os mandados de prisão. Ninguém investigou e explicou a real
funcionalidade e pertinência jurídica de uma prisão temporária de
caráter preventivo; ninguém comparou a precaução da polícia e da justiça
nessa situação com a oposta complacência mostrada, dias antes, quando
um alvará de soltura expedido no meio da madrugada fez do executivo da
empresa ligada à Fifa – cidadão inglês, sem domicílio fixo no país e
preso com provas muito mais “robustas e consistentes” de formação de uma
quadrilha de cambistas – um foragido.
Um consenso em torno da coerção necessária
É cada vez mais concreto o quanto essa
noção abstrata de democracia e o seu correspondente Estado de direito
são dois elementos circulares de uma farsa produzida para manter ou
estabilizar as relações de dominação. Em nome da democracia e do Estado
de direito, vale tudo, até ferir a democracia e o Estado de direito,
desde que se faça isso através de instituições como a polícia, o
judiciário e a imprensa, que compõem o Estado de direito garantidor da
democracia. Há muito que a tradição marxista sabe que a forma assumida
pelo Estado – democracia, ditadura, monarquia… – representa variações
coerentes com a correlação de forças e o grau de hegemonia vigente em
cada local, em cada contexto histórico, mas que, em todas essas
situações, a função do Estado é garantir, com as armas que estiverem
disponíveis, os interesses da classe dominante. Por isso, no
capitalismo, a combinação de mecanismos de cooptação e consenso nos
regimes ditatoriais com mecanismos de violência e coerção nos contextos
democráticos é e sempre será parte do jogo.
Isso se expressa de forma muito direta
na grande imprensa que é, também, instrumento da democracia burguesa.
Por isso, ela pode pluralizar seus públicos, diversificar os colunistas,
usar de vez em quando uma imagem produzida por midiativistas, denunciar
um senhor aqui, ajudar a prender um policial violento acolá. Pode até
escrever e ler em voz alta um belo editorial de mea culpa, lamentando
seu apoio à ditadura encerrada. Mas sempre que for preciso, ela vai
afiar as ferramentas, espalhar a poeira, tirar a ferrugem e usar todas
as armas de que dispuser para, em nome da democracia, legitimar um
consenso em torno da coerção necessária. Está no seu DNA.
Fonte: Observatório da Imprensa
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