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domingo, 17 de agosto de 2014

Terceirização e neodesenvolvimentismo no Brasil


14.08.11_Neodesenvolvimentismo e terceirização no Brasil 

[Hannah Höch, Das schöne Mädchen [A garota bonita], 1920]


Na era do neodesenvolvimentismo (2003-2013), sob os governos Lula e Dilma, aumentaram as modalidades flexíveis de contratação laboral no Brasil. Na década de 2000, sob o choque de capitalismo, disseminaram-se novas formas atípicas de contratação salarial como, por exemplo, o contrato por prazo determinado, contrato por prazo parcial, suspensão de contrato; e principalmente, as relações de emprego disfarçada tais como contratação como pessoa jurídica (PJ), cooperativas de contratação de trabalho, trabalho-estágio, autônomos, trabalho em domicílio, teletrabalho e a terceirização. Interessa-nos tratar aqui da terceirização, que se manifesta de múltiplas formas, incluindo, por exemplo, algumas dessas formas de contratação atípicas (subcontratação por meio de agência de emprego, a PJ, o autônomo proletarizado, o trabalho em domicílio e a cooperativa para empresa). Entretanto, a terceirização não se reduz a elas, tendo em vista que abarca todo o processo de externalização de atividades para outras empresas ou pessoas.
A partir da década de 1990, a terceirização se constituiu na principal forma de flexibilização da contratação no Brasil. Desde que passou a ser admitida em atividades-meio de acordo com o Enunciado 363 do TST (Tribunal Superior do Trabalho), a terceirização tornou-se a forma mais evidente de flexibilização da legislação trabalhista. Na década de 1990, as políticas neoliberais promoveram a reestruturação do capitalismo no Brasil, com impactos diruptivos no mundo do trabalho, principalmente com o crescimento abrupto do desemprego aberto nas metrópoles brasileiras. Na década de 2000, com o neodesenvolvimentismo, ocorreu a reorganização do capitalismo brasileiro na base da acumulação flexível. Constituiu-se efetivamente o que denominei de “toyotismo sistêmico” (vide o livro O novo (e precário) mundo do trabalho). Na verdade, apesar da queda do desemprego aberto, a partir de 2003, ampliou-se a mancha de precariedade laboral. O “choque de capitalismo” promovido pelos governos Lula e Dilma contribuiu para a expansão da lógica do capital no plano da produção e reprodução social. Incapazes (ou indispostos) de romper o cerco do Estado neoliberal, os governos neodesenvolvimentistas (2003-2014) adequaram-se, em nome da governabilidade, à lógica do capitalismo flexível. Um dos traços do lulismo foi não confrontar o capital, buscando, deste modo, garantir os investimentos necessários para o crescimento da economia brasileira. Por isso, apesar do aumento do gasto público com as políticas sociais de transferência de renda (Bolsa-Familia, Minha Casa Minha Vida, etc) e a política de valorização do salário mínimo, que contribuiram para a redistribuição de renda e a diminuição da desigualdade social no Brasil, manteve-se e incrementou-se na era do neodesenvolvimentismo a nova dinâmica de acumulação capitalista baseada na acumulação flexível.
A expansão da terceirização na década do neodesenvolvimentismo é o traço candente (e irremediável) da nova ofensiva do capital na produção nas condições históricas do capitalismo flexível. Nesse período, instaurou-se o que denominamos de “nova precariedade salarial” no País, o novo modo de organizar o processo de trabalho e a produção do capital a partir da lógica do trabalho flexível, sendo ela caracterizada pela adoção das novas tecnologias informacionais, gestão toyotista e relações de trabalho flexíveis (contrato salarial, jornada de trabalho e remuneração flexível). É claro que a terceirização não é um fenômeno novo na produção capitalista). Entretanto, dentro do contexto da nova ofensiva do capital na produção, com a vigência do capitalismo flexível, a terceirização tornou-se moda da administração empresarial, sendo importante elemento compositivo da nova precariedade salarial e das novas formas de gestão da produção capitalista inspirada no toyotismo. Foi a “nova precariedade salarial” que deu novas roupagens à terceirização. A “nova precariedade salarial” – e com ela, a terceirização – disseminou-se, não apenas pelo setor privado – indústria, comércio e serviços – mas também pelo setor público, incluindo a administração pública, alterando não apenas a morfologia social do trabalho, mas o sociometabolismo laboral no Brasil. A “nova precariedade salarial” constituiu novas dimensões da precarização do trabalho, como, por exemplo, o que denominamos “precarização do homem-que-trabalha”, que se manifesta, por exemplo, pelo aumento dos casos de adoecimento laboral nos locais de trabalho reestruturados.
A terceirização, como elemento compositivo da “nova precariedade salarial” no plano da contratação salarial flexível, se manifestou de forma bastante distinta em diversos segmentos econômicos: desde a subcontratação de uma rede de fornecedores com produção independente, passando pela contratação de empresas especializadas de prestação de serviços de apoio e pela alocação de trabalho temporário via agência de emprego; até a contratação de pessoa jurídica ou do autônomo nas áreas produtivas e essenciais da empresa; o trabalho domiciliar (que na maioria das vezes é informal); a organização de cooperativas de trabalho, o deslocamento de parte da produção ou setores para ex-empregados etc.
Deve-se observar ainda que o fenômeno da terceirização tornou-se tão complexo que se estabeleceu a “terceirização da terceirização”, onde a empresa terceirizada sub-contrata parte do processo para outras empresas; e em alguns casos há o processo chamado de “quarteirização”, que refere-se: ora à empresa intermediadora, aquela que se coloca entre a “empresa-mãe” e a empresa terceirizada, ou seja, aquela que gerencia os contratos com as prestadoras de serviços; ora trata de um desdobramento da terceirização, representada pelo momento em que a prestadora de serviços contratada pela “empresa-mãe” repassa para outra empresa, “cooperativa de trabalho” (trabalhadores “autônomos”) ou prestador de serviços individual (Pessoa Jurídica- PJ), as atividades a serem realizadas.
A terceirização aparece também como relação de emprego triangular, isto é, a locação de mão-de-obra por meio de empresa aluguel. Nesse caso, o contrato temporário é prestado por meio de empresa interposta (fornecedora de mão-de-obra, geralmente via agência de emprego), que seleciona e remunera trabalhadores com a finalidade de prestar serviços provisórios junto a empresas clientes. Por isso, estabelece uma relação triangular, em que o local de trabalho não tem relação direta com o empregador, mas com a agência de emprego. Teoricamente, o contrato temporário, que pode ser de até 6 meses, seria uma prestação de serviços para atender necessidade transitória de substituição de pessoal ou permanência da situação que gerou aumento de serviço e conseqüente realização de contrato temporário. Mas, na prática, existem hoje milhares de empresas no Brasil que sublocam força de trabalho por meio de contratos temporários e trabalho-estágio. Elas têm, um cadastro informatizado que permite mover os trabalhadores de uma tarefa ou empresa para outra, sem que estes estabeleçam qualquer vínculo de relações profissionais ou sociabilidade com o local em que executam a atividade. Os trabalhadores são simplesmente empurrados de um casulo de atividades para outro e perdem aos poucos todo o interesse pelo ambiente em que efetivamente atuam. Seu vínculo é apenas com o cadastro da empresa de aluguel. Nesse caso, a terceirização reforça a corrosão da relação entre o trabalhador e a sua atividade profissional, que se torna cada vez mais diluída, fazendo com que a sua identidade com o trabalho fique secundarizada, o que dificulta a formação do caráter do trabalho. Finalmente, uma outra questão é que a relação triangular permite às empresas estabelecerem uma estratégia de preservar os trabalhadores mais qualificados e realizarem um turn over nos com menor qualificação, pagando-lhes menor salário e menos benefícios.
As empresas são motivadas a terceirizar não devido à especialização técnica, busca do crescimento da produtividade, desenvolvimento de produtos com maior valor agregado, ou maior tecnologia; ou ainda devido à especialização dos serviços ou produção, mas sim, visando a otimização dos seus lucros, em especial, através de baixíssimos salários, altas jornadas e pouco ou nenhum investimento em melhoria das condições de trabalho. Por isso, terceirização no Brasil implica desrespeito dos direitos dos trabalhadores, criando, deste modo, uma clivagem no mundo do trabalho formal, com o surgimento da figura do “cidadão de segunda classe”, vivendo com uma espada de Damôcles, à merce dos golpes das empresas, que fecham do dia para a noite, e não pagam as verbas rescisórias aos seus trabalhadores empregados e às altas e extenuantes jornadas de trabalho.
Portanto, as empresas terceirizadas abrigam as populações mais vulneráveis do mercado de trabalho: mulheres, negros, jovens, migrantes e imigrantes. Esse “abrigo” não tem caráter social, mas é justamente porque esses trabalhadores se encontram em situação mais desfavorável, e por falta de opção, submetem-se a esse emprego.
Entretanto, não podemos esquecer que as empresas terceiras são produtos do modo de organização da grande empresa capitalista, verdadeiros demiurgos da terceirização. Perguntemos: por que a grande empresa capitalista – como a Petrobrás, por exemplo – terceiriza para uma empresa terceira os serviços necessários à produção de suas atividades? Este é “x” da questão. No caso do Brasil, a grande empresa capitalista, imersa na voraz concorrência do mercado global, incorpora, por um lado, a lógica organizacional da empresa-rede e o espírito do toyotismo, a ideologia orgânica da produção do capital nas condições do capitalismo global (vide o meu livro Trabalho e subjetividade); e por outro lado, assume como modo cultural de consumo da força de trabalho no Brasil, a superexploração da força de trabalho, traço ontogenético do ethos capitalismo no Brasil,– articulando o historicamente novo (novas tecnologias e modernos métodos de gestão) e o historicamente arcaico (relações de trabalho espúrias com rebaixamento de salário e espoliação de benefícios trabalhistas).
Portanto, a externalização das atividades para empresas ou pessoas – a terceirização – representa a afirmação da lógica organizacional da empresa-rede, a grande empresa capitalista nas condições históricas do capitalismo global. A empresa terceira gera trabalho precário; e pior, com jornadas maiores e ritmo de trabalho exaustivo. A intensificação do trabalho, observada nas empresas privadas e públicas na década de 2000, decorre dos novos métodos de gestão acoplado às novas tecnologias informacionais, um dos traços candentes da “nova precariedade salarial” sob o espírito do toyotismo, sendo também traço compositivo da síndrome da superexploração da força de trabalho no Brasil. Sob pressão da grande empresa capitalista, a empresa terceira incorpora os novos métodos de gestão toyotista, reduzindo, deste modo, postos de trabalho, e produzindo, mais com menos pessoal.
Deste modo, combater a terceirização no Brasil significa combater a lógica organizacional do capitalismo em rede. No caso do setor privado, a rede funciona como circuito de valorização operando a transferência de valor das empresas terceiras para a grande empresa tomadora. No caso do setor público, quando a União, Estados e municípios terceirizam suas atividades para empresas e pessoas, a rede funciona como veículo de contenção do gasto público nas condições históricas do capitalismo predominantemente financeirizado e do Estado neoliberal (na era do neoliberalismo, União, Estados e municípios encontram-se constrangidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal sob a espada de Damôcles da divida pública).
Portanto, tanto a rede como circuito de transferência de valor da empresa terceira para a grande empresa; quanto a rede como contenção do gasto público, articulam o regime de acumulação flexível com o regime de acumulação por espoliação. Deste modo, temos, por um lado, a predação de direitos dos trabalhadores e benefícios trabalhistas; e por outro lado, a corrupção da coisa pública que prolifera nos contratos de terceirização do setor público no Brasil. No limite, a sociedade em rede, organizada em torno da grande empresa (pública e privada), externaliza suas atividades para empresas e pessoas, aumentando os custos para a sociedade – não apenas devido a espoliação de direitos e benefícios trabalhistas, empobrecendo trabalhadores e reforçando a concentração de renda no País; e com o desvio de dinheiro do fundo público, as fraudes em licitações, evasão fiscal, focos de corrupção, aumento das demandas trabalhistas e previdenciárias, entre outros custos como a tão propagada competitividade, mas com a perda da qualidade de serviços e produtos,
Pouco mais que ¼ do mercado de trabalho formal no Brasil está terceirizado. Segundos dados do DIEESE, os trabalhadores terceirizados no Brasil perfazem hoje cerca de 25,5% do mercado formal de trabalho. Entretanto, deve-se salientar que esse número está subestimado, tendo em vista que, parte considerável dos trabalhadores terceiros estão alocados na informalidade – além disso, não estão contidos os setores da agricultura. Portanto, a mancha da precariedade salarial é imensa.
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A terceirização contribui para a persistência da informalidade. O processo de terceirização baseado na redução de custos fortalece as relações de trabalho mais heterogêneas, incluindo o trabalho por conta própria sem proteção social e a contratação de trabalhadores sem registro como forma de obter competitividade para sobreviver no mercado.
Os impactos da terceirização sobre o mundo do trabalho são indiscutíveis, demonstrando a péssima qualidade do emprego nas empresas terceiras no Brasil. Por exemplo, no tocante a remuneração salarial, ela é menos 27,1% para os trabalhadores terceirizados. Em relação à jornada de trabalho contratada, os terceirizados realizam uma jornada de 3 horas a mais semanalmente, isso sem considerar as horas extras ou banco de horas realizadas. O tempo de emprego demonstra uma diferença ainda maior entre trabalhadores diretos e terceiros. Enquanto a permanência no trabalho é de 5,8 anos para os trabalhadores diretos, em média, para os terceiros é de 2,6 anos. Desse fato decorre a alta rotatividade dos terceirizados – 44,9% contra 22% dos diretamente contratados. Esse fato tem uma série de conseqüências para o trabalhador terceirizado, que alterna períodos de trabalho e períodos de desemprego, resultando na falta de condições para organizar e planejar sua vida, inclusive para projetos pessoais como formação profissional, mas tem também um rebatimento sobre o FAT (Fundo de Amparo do Trabalhador) uma vez que essa alta rotatividade pressiona para cima os custos com o seguro desemprego. Deste modo, a terceirização não se configura como dano existencial, na medida em que as relações de trabalho acima descritas submetem os empregados a jornadas excessivas de trabalho, causando abalo físico e psicológico, impedindo-o da fruição do direito ao lazer e ao convívio social? (os dados acima são encontrados na pesquisa da CUT/DIEESE publicada em 2011).
Quanto à distribuição dos trabalhadores subcontratados por setores de atividade observa-se uma concentração grande e crescente dos terceirizados no setor de serviços ao longo da década (o que se explica também pelo crescimento deste setor na década de 2000). Destaca-se que, apesar de executar tarefas, predominantemente, em outros setores de atividade, as empresas buscam classificar suas atividades no segmento de serviços, dado o caráter de prestação de serviços, desconsiderando sua atividade final, tendo como um dos benefícios, menores salários do que, por exemplo, no setor industrial, que teve o número de terceirizados reduzido em 4 pontos percentuais, mas isso não se reflete no número de trabalhadores que continuam exercendo atividades nas unidades industriais.
Existem argumentos que afirmam que os baixos salários dos terceirizados ocorrem em função de estarem alocados em pequenas empresas, e que estas, não tem possibilidade de pagar melhores salários. Entretanto, pelo que diz a pesquisa CUT/DIEESE indicada acima, 53,4% dos trabalhadores terceirizados trabalham em empresas com mais de 100 empregados contra 56,1% dos trabalhadores diretos, percentuais bastante próximos.
Outro argumento comumente difundido é que os trabalhadores terceirizados recebem menos porque possuem menor escolaridade. De fato, os terceiros possuem uma escolaridade menor, mas não é um hiato gigante: 61,1% dos trabalhadores em setores tipicamente terceirizados possuem ensino médio ou formação superior, enquanto entre os trabalhadores dos setores tipicamente contratantes esse percentual é de 75,7%.
Finalmente, deve-se observar que tornou-se corriqueiro na era do neodesenvolvimentismo, calotes das empresas terceirizadas aos direitos dos trabalhadores terceirizados e o crescimento de acidentes de trabalho nas empresas terceiras. Inclusive, estudos constam o vínculo entre terceirização com o trabalho análogo à escravidão (por exemplo, 90% dos 40 maiores resgates em todo o Brasil nos últimos 4 anos terem trabalhadores terceirizados, conforme destaca a reportagem do REPÓRTER BRASIL, intitulada “Terceirização e trabalho análogo ao escravo: coincidência?”).
Enfim, a expansão invisível da terceirização é apenas a “ponta do iceberg” da reorganização capitalista ocorrida no Brasil na perspectiva da afirmação do capitalismo flexível. Cada vez mais, criticar a terceirização é criticar o capitalismo como modo de organização social. Existe um vínculo orgânico entre terceirização e nova dinâmica do capitalismo global baseada no regime de acumulação flexível. No caso do Brasil, existe, como salientamos acima, a simbiose entre terceirização e superexploração da força de trabalho, traço ontogenético do capitalismo brasileiro. Nesse caso, o conceito de capitalismo significa não apenas modo de produção de mercadorias, mas significa também um ethos particular – no caso do Brasil – de valorização do capital e exploração da força de trabalho. É importante lembrar que o capitalismo brasileiro constituiu-se historicamente como um capitalismo hipertardio, dependente, de extração colonial-escravista e via prussiana, onde historicamente, o moderno se articulou com o arcaico; e o primado da iniciativa privada se impôs sobre a dignidade da pessoa humana e os direitos sociais dos trabalhadores.
Portanto, está inscrito como traço ontogenético do capitalismo brasileiro, o modo oligárquico-patrimonialista de organização da exploração da força de trabalho, com a “Casa Grande” continuando sendo movida insaciavelmente pela busca desenfreada de lucros (o que explica a ânsia da terceirização como estratégia de rebaixamento salarial e espoliação de benefícios trabalhistas). Ao mesmo tempo, a nova etapa histórica do capitalismo flexível, no plano do mercado mundial, reforça – afirma e valida – o traço estrutural do capitalismo brasileiro salientado acima.
No decorrer da década de 2000, tivemos em torno do tema terceirização, uma candente luta politica e ideológica, com propostas em disputas, inclusive dentro da Direito do Trabalho, entre aqueles que querem regulamentar; e aqueles que querem abolir a terceirização. Apesar disso, o avanço da terceirização no Brasil foi quase irremediável por conta da correlação de forças sociais e politicas; e também devido – como salientamos acima – a adequação estrutural da terceirização com a nova lógica do capitalismo global na qual o Brasil se inseriu com vigor na década do neodesenvolvimentismo. Na verdade, a terceirização tornou-se o Zeitgeist do capitalismo flexível. Combater a prática da terceirização significa ir contra natureza do capitalismo brasileiro e ir contra o espírito do regime de acumulação flexível imposto pela mundialização do capital. Terceirização e capitalismo no Brasil representam um “par perfeito”.
Portanto, a terceirização no Brasil não é traço meramente contingencial por conta da lei ou inescrupulosidade de juristas liberais ou maus capitalistas. Ela é um traço orgânico do capitalismo brasileiro. A terceirização é um modo de reafirmar a forma de ser de entificação do capitalismo brasileiro baseado na superexploração da força de trabalho (exploração da força de trabalho que articula intensificação do trabalho, alongamento da jornada laboral e rebaixamento salarial). Ao mesmo tempo, a vigência do capitalismo flexível e a constituição da “nova precariedade salarial” contribuiu para a re-afirmação do modo de entificação do capitalismo no Brasil – hipertardio, dependente, extração escravista-colonial de via prussiana – aprofundando, deste modo, os traços históricos da miséria do trabalho no Brasil no interior do próprio núcleo da modernidade salarial. Portanto, a terceirização não é a afirmação do arcaico nas relações de trabalho no Brasil mas sim a reposição histórica da dialética entre o moderno e o arcaico, característica ontogenética do desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
A persistência do Estado neoliberal no Brasil sob os governos neodesenvolvimentistas contribui não apenas para a expansão da terceirização como modo de organização empresarial, mas também para seu reconhecimento jurídico-institucional pela alta corte constitucional do País. As condições de combate contra a terceirização são bastante adversas: por um lado, temos uma sociedade política hegemonizada pelos interesses empresariais; e por outro lado, uma sociedade civil manipulada midiáticamente e hegemonizada pelos princípios liberais da livre iniciativa, mantendo-se, deste modo, apática e alienada do desmonte da cidadania salarial decorrente da legalização da terceirização como estratégia de flexibilização das relações de trabalho no Brasil.
Foi a hegemonia liberal, de extração oligárquico-politica, presente na institucionalidade juridico-politica brasileira, que contribuiu para que se aceitasse a terceirização como principio da livre iniciativa. Reduzir o combate à terceirização a discussão sobre atividade-fim e atividade-meio significa permanecer no campo do inimigo de classe, tendo em vista que, a discussão sobre atividade-fim e atividade-meio não se trata de procedimento técnico, mas sim, afirmação politica. Deste modo, o problema é quem tem a prerrogativa de definir o que é, ou não, “atividade-meio” e “atividade-fim”, num contexto de complexificação da externalização da atividade econômica. As fronteiras do que ‘pode ou não pode’ estão indefinidas. O que será considerado estratégico dependerá do observador, de seus objetivos, que estão para além da disputa sob os termos jurídicos. No caso brasileiro, com a fragilidade da organização dos trabalhadores no local de trabalho, as empresas têm grande poder para definir o processo de produção e de trabalho. No fundo, o debate sobre “atividade-meio” versus “atividade-fim” reflete uma disputa política acerca dos direitos trabalhistas e sociais. Na verdade, a controvérsia tem relação com o disposto no Enunciado 331 do TST, que, cedendo aos interesses da grande empresa capitalista, num cenário de ofensiva neoliberal, legitimou a terceirização para inúmeras atividades “tipicamente terceirizáveis” e abriu a brecha para atividades de especialização favorecendo, deste modo, a redução de custos salariais e de benefícios conferidos pelas conquistas sindicais do segmento mais estruturado.
Portanto, a repercussão geral que obriga hoje o STF (Supremo Tribunal Federal) a discutir o conceito de atividade-fim, é a síntese concreta da disputa politica – ou luta de classes – que ocorre hoje na sociedade brasileira nas condições históricas dos limites do neodesenvolvimentismo. A crise do capitalismo global e a pressão do mercado mundial exigem efetivamente uma Reforma Trabalhista no Brasil que reduza o custo do trabalho. Entramos numa nova conjuntura geopolítica de ofensiva do capital no plano internacional. Não se trata de discussão técnica, muito menos de disputa sob os termos jurídicos. O deslocamento da discussão da terceirização do Congresso Nacional – onde se debatia, por exemplo, o Projeto de Lei 4330/04 – para o STF, corte constitucional de feição historicamente liberal-conservadora na discussão trabalhista, é um “golpe politico” não apenas contra a Justiça do Trabalho, mas contra a democracia brasileira, tendo em vista tema de tal relevância social deveria ser discutido com a sociedade e com o parlamento brasileiro. Na medida em que se legitima a terceirização de modo irrestrita contribuiu-se para ampliar mais ainda o precário mundo do trabalho no Brasil, corroendo, deste modo, as perspectivas de inserção digna das gerações futuras no mercado de trabalho.
Finalmente, é importante esclarecer o seguinte: a expansão da terceirização no Brasil vincula-se à fase histórica de desenvolvimento do capitalismo global imerso na crise estrutural do capital. Por “crise estrutural do capital” entendemos a incapacidade candente do sistema de controle do metabolismo social realizar suas promessas civilizatórias. O desmonte do Estado de bem-estar social no pólo mais desenvolvido da civilização do capital – União Européia, por exemplo – é o exemplo-mor da mutação estrutural do sistema produtor de mercadoria incapaz de afirmar e ampliar direitos dos trabalhadores.
A partir de 1990, o Brasil integrou-se no processo de mudança histórica maciça da organização do capitalismo num plano mundial (a dita “globalização”). Na presente temporalidade histórica do capital, existe uma tendência de precarização estrutural do trabalho que faz parte da nova dinâmica do sistema do capital global, articulando, por um lado, acumulação flexível; e, por outro lado, acumulação por espoliação. Com o neoliberalismo, a lógica auto-expansionista do capital imprimiu sua marca nas instituições jurídico-politicas da ordem burguesa, tornando-as insensíveis aos argumentos humanísticos e valores sociais. Os Sumos Sacerdotes do mercado clamam pelo principio da iniciativa privada. Predomina no discurso das personificações do capital, o pragmatismo de ocasião, que reitera, como destino irremediável, a adaptação à nova ordem global. A palavra de ordem é flexibilizar as relações de trabalho.
O desenvolvimento da acumulação flexível/acumulação por espoliação nos “trinta anos perversos” de capitalismo global(1980-2010), ocorre no bojo das pressões estruturais para a redução de custos das grandes empresas capitalistas. Está ocorrendo aquilo que István Mészáros denominou no livro Para além do capital, de tendência à equalização descendente da taxa diferencial de exploração.
Nos países capitalistas do Ocidente, as classes trabalhadoras puderam por muito tempo gozar dos benefícios da “taxa diferencial de exploração”, inclusive construirão um Estado social democrático de direitos trabalhistas e cidadania salarial para ampla maioria da população trabalhadora. Suas condições de vida e de trabalho eram incomensuravelmente melhores do que as encontradas nos “países subdesenvolvidos” (como o Brasil, por exemplo). Os países capitalista do Ocidente eram modelo social de regulação do trabalho e muitos juristas e estudiosos do mundo do trabalho tomam como exemplo os países do capitalismo social-democrata. Entretanto, com o desenvolvimento do capitalismo global, percebemos no plano mundial, a deterioração dos direitos trabalhistas – e do próprio Direito do Trabalho – sob a ameaça da flexibilização laboral.
No Brasil, como vimos, a “nova precariedade salarial” é efetivamente um elemento das condições de deterioração do trabalho, expressando aqui, a “equalização descendente” da taxa de exploração (por exemplo, o fenômeno do “precariado”, salientado por Guy Standing é o resultado social, no plano da estrutura de classes, da “equalização descendente da taxa de exploração” nos países capitalistas europeus). Percebe-se no plano mundial, que os trabalhadores estão ameaçados em suas mais básicas condições de existência, não apenas devido o desemprego, mas, como vimos no caso do Brasil da era do neodesenvolvimentismo, a vigência da “nova precariedade salarial”, caracterizada pela expansão de relações de trabalho flexíveis. Os investidores lamentam o Custo Brasil e clamam pela Reforma Trabalhista. Como personificações do capital, expressam em si e para si, tão-somente a tendência de equalização descendente do diferencial das taxas de exploração. O ideal para eles seria aproximar as taxas de exploração do Brasil das taxas de exploração da China.
Na verdade, o acirramento da concorrência mundial por conta da entrada da China no mercado mundial, fez com que o capital social total, nas condições históricas da crise estrutural de valorização se impusesse sobre a totalidade do trabalho, obrigando, deste modo, o capital global a promover em cada país, nas últimas décadas, processos intensos de reestruturação produtiva visando desvalorizar a força de trabalho e impulsionar a ofensiva contra direitos do trabalhadores buscando, em ultima instancia, equalizar as taxas diferenciais de exploração. A fragilização do Estado-nação diante do capital global e a correlação de forças sociais e políticas, com a crise do sindicalismo e a corrupção dos partidos de esquerda – principalmente da esquerda social-democrata, que incorporou a agenda neoliberal, colocam definitivamente o trabalho organizado, na defensiva.
A tendência de equalização descendente da taxa diferencial de exploração leva ao rebaixamento civilizatório. Para um país capitalista como o Brasil, isto assume dimensões de perversidade social, tendo em vista o cenário histórico de desigualdades social no País. Enfim, na era da terceirização, aprofunda-se, por um lado, a crise do Direito do Trabalho e o declínio da instituição Justiça do Trabalho e das cortes constitucionais (como o TST). Caso o STF libere a terceirização como almeja o empresariado, a Justiça do Trabalho receberá um golpe histórico. A expansão das relações de trabalho flexíveis como ocorreu na década de 2000, torna mais opaca a luta de classes com a invisibilização das personas do capital. O disfarce da relação de emprego oculta a subalternidade estrutural do trabalho ao capital e reforça a concorrência entre os próprios trabalhadores. Portanto, a terceirização não se restringe a ser um mecanismo de rebaixamento salarial, mas é um mecanismo de ocultação ideológica, descaracterizando o conflito antagônico capital versus trabalho.
Nas condições históricas de equalização descendente da taxa diferencial de exploração, inaugurou-se a era do declive civilizatório do capital, que contém em si e para si, não apenas a corrosão de direitos dos trabalhadores, mas a degradação da consciência de classe. É por isso que, hoje mais do que nunca, a luta de classe se impõe – no plano ideológico – como elemento de resistência estratégica visando desmontar no plano do pensamento, as ilusões liberais ou social-democratas, que imaginam ser possível um capitalismo humanizado. Pelo contrário, na era da crise estrutural de civilização do capital, urge afirmar os valores do socialismo e resgatar a tarefa politica de democratização radical da sociedade capaz de resgatar efetivamente a dignidade da pessoa humana que trabalha.

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O livro mais recente de Giovanni Alves, Trabalho e subjetividade (Boitempo, 2011) já está à venda também em formato eletrônico (ebook) nas lojas da Gato Sabido e Livraria Cultura. O autor conta com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, à venda em ebook por apenas R$5 na Gato Sabido, Livraria da Travessa, dentre outras. Giovanni Alves conta também com o artigo “Trabalhadores precários: o exemplo emblemático de Portugal”, escrito com Dora Fonseca, publicado no Dossiê “Nova era da precarização do trabalho?” da revista Margem Esquerda 18, já à venda em ebook na Gato Sabido.
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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011).

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