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sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Rodrigueanos



Muito se falou recentemente entre nós do complexo de vira latas, ou seja, daquele comportamento de certo tipo de cidadão brasileiro que adora menosprezar o seu país, depreciar conquistas e feitos notáveis e – ao contrário – valorizar suas mazelas. Os anos que antecederam à recentíssima Copa do Mundo quase levaram esse complexo ao paroxismo.

Com isso, as gerações mais jovens foram informadas de que tal expressão surgiu no Brasil numa crônica esportiva do jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, cuja importância em qualquer das três atividades é inegável.

Referia-se o jornalista, no caso a propósito do futebol, que nós brasileiros estávamos (e pelos vistos ainda estamos) sempre prontos a considerar o que se faz “lá fora”, como sendo sempre de melhor qualidade, sempre mais bem feito, sempre mais organizado. Bem entendido esse “lá fora” como sendo os Estados Unidos, a Europa e o Japão.

Porque quanto ao “resto” ou são iguais ou piores do que nós.

Nelson conhecia bem a classe média brasileira e foi capaz de mostrar isso em várias de suas peças, onde os valores morais, religiosos, esquemas de comportamento ou psicológicos se amalgamavam em grandes tributos à hipocrisia. Um santuário de reacionarismo e conservadorismo num país que deve boa parte da sua formação cultural à má distribuição das terras, a uma selvagem escravidão de trezentos anos e um sincretismo religioso dos mais esdrúxulos.

Em homenagem, pois, ao espírito rodrigueano gostaria de reproduzir para os leitores dois contos de meu livro de contos eróticos O vidente da rua 46, que se constituem em duas pequenas metáforas dessa atitude de considerar melhor aquilo que supostamente não está ao nosso alcance, mas quem sabe “lá fora”, ou nos outros.

A vingança, ou aquilo que consideramos como tal, além de se constituir num perverso corolário da hipocrisia, retrata – quanto a mim – outro aspecto do viralatismo contemporâneo.


RODRIGUEANO I

“Quando você olhou para mim e disse, com a segurança de um cardeal francês, que eu não era fiel ao meu noivo, tive vontade de lhe cuspir na cara…”
“E pensa que eu não percebi? …Mas também não podia deixar de dizer aquilo. Não que eu tivesse qualquer prova da sua infidelidade, mas foi uma maneira arriscada de lhe dar uma cantada.”
“Cantada?! …É engraçado …Fiquei com aquilo martelando na minha cabeça, dias, semanas inteiras… ” 
“E … ?”
“O pior é que a raiva me fazia lembrar de você o tempo todo. De repente a raiva foi passando, passando e desapareceu… e eu continuei a pensar em você… “
“Menos mal.”
“E agora fico toda excitada só de pensar numa possibilidade… “
“Qual?”
“Quero trair o meu noivo… com você… “


RODRIGUEANO II

Toda primeira sexta-feira do mês, ali pelas nove e meia da manhã, fizesse chuva ou sol, a viúva do escriturário Maranhão visitava a sepultura do marido. E lá lhe depositava um cravo, um copo-de-leite ou mesmo uma rosa amarela, dependendo do seu estado de espírito. Ritual que cumpria com santa religiosidade.
Seios fartos, envoltos em decotes profanos, Solange descobriu, numa dessas manhãs, um gari a masturbar-se por detrás do mausoléu ao lado. Não deu queixas, nem se tomou de falsos pudores ou indignados moralismos. Por fim, ofereceu-se a oportunidade que tanto esperou para vingar-se do marido infiel e devasso.
Toda primeira sexta-feira do mês, ali pelas nove e meia da manhã, com chuva ou sol, a viúva do Maranhão continua a vestir-se como uma dama da noite e a visitar-lhe a sepultura. Só que agora leva na bolsa uma camisinha lubrificada e uma calcinha limpa. Trai o canalha em cima da lápide fria e com um gari da prefeitura…


***
Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente.

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