Por David Harvey.*
O artigo a seguir é um trecho editado do mais recente livro de David Harvey, 17 contradições e o fim do capitalismo,
em que o geógrafo britânico identifica e disseca didaticamente todas
as contradições do capital segundo a análise feita por Marx – para ele,
seriam exatamente dezessete. Neste trecho, que a Boitempo antecipa com
exclusividade em seu Blog,
Harvey procura tecer os fios de um novo humanismo revolucionário, entre
a contraditória proliferação de ONGs e as explosões violentas nas ruas,
no Brasil e no mundo.
***
Em poucas
palavras, o problema com a tradição humanista é que ela não internaliza
uma boa compreensão de suas próprias e inescapáveis contradições
internas – algo mais claramente evidenciado no caso da contradição entre
liberdade e dominação. O resultado é o que Frantz Fanon caracterizou
como “humanitarismo insípido”. Há evidências suficientes disso em seu revival
recente. A tradição burguesa e liberal de humanismo secular acaba
formando uma base ética piegas para uma moralização ineficaz sobre o
triste estado do mundo e para a construção de campanhas, igualmente
ineficazes, contra os males da pobreza crônica e da degradação
ambiental.
É
provavelmente por essa razão que o filósofo francês Louis Althusser
lançou sua ferrenha e influente campanha na década de 1960 para extirpar
do marxismo todo o falatório sobre socialismo humanista e alienação. O
humanismo do jovem Marx, conforme expresso nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, insistia Althusser, estaria separado do Marx científico d’O capital por
uma “ruptura epistemológica” – algo que estaríamos ignorando a prejuízo
próprio. O humanismo marxista, ele escrevia, é pura ideologia,
teoricamente vazio e politicamente enganoso – se não mesmo perigoso. A
devoção de um dedicado marxista como Antonio Gramsci ao “humanismo
absoluto da história humana” era, na visão de Althusser, completamente
deslocada.
O enorme
aumento e a natureza das atividades compactualizantes das ONGs
humanistas ao longo das últimas décadas parece sustentar as críticas de
Althusser. O crescimento do complexo “caridoso-industrial” reflete
principalmente a necessidade de aumentar a “lavagem de consciência” para
uma oligarquia mundial que vem dobrando sua riqueza e poder de anos em
anos em meio à estagnação econômica. Seu trabalho tem feito muito pouco
ou quase nada para lidar com a degradação e despossessão humana,
ou com a degradação ambiental que se alastra. Isto se dá,
estruturalmente, porque as organizações anti-pobreza precisam operar sem
jamais intervir na continuada acumulação de riqueza, de onde tiram seu
próprio sustento. Se todos que trabalhassem em uma organização
anti-pobreza passassem, da noite para o dia, a promover políticas
anti-riqueza, logo nos veríamos vivendo em um mundo bem diferente.
Pouquíssimos doadores caridosos – nem mesmo Peter Buffett, eu suspeito –
iriam financiar uma coisa dessas. E as ONGs, que agora estão no centro
do problema, não iriam de todo modo querer isso (apesar de haver muitos
indivíduos no interior do mundo das ONGs que estariam dispostos a tal,
mas que simplesmente não podem).
Fanon, é
claro, choca muitos humanistas liberais com seu endosso de uma violência
necessária e sua rejeição da via conciliatória. Como, ele se pergunta, a
não-violência é possível numa situação estruturada pela violência sistemática
exercida pelos colonizadores? Que sentido tem uma população faminta
declarar greve de fome? Por que, como Herbert Marcuse se perguntava,
deveríamos ser persuadidos pelas virtudes de tolerância para com o
intolerável? Em um mundo dividido, onde o poder colonial define os
colonizados como subumanos e malvados por natureza, a conciliação é
impossível.
Não levanto a
questão da violência aqui, tampouco o fez o próprio Fanon, porque sou
ou ele era favorável a ela. Ele a sublinhou porque a lógica das
situações humanas tão frequentemente se deteriora a ponto de não restar
nenhuma outra opção. Até Ghandi reconheceu isso.
Mas a ordem
social do capital é essencialmente muito diferente de suas manifestações
coloniais? Aquela ordem certamente buscou se distanciar, em casa,
do cálculo cruel da violência colonial (algo como um mal necessário a
ser aplicado sobre os outros, incivilizados, ‘de lá’ para seu próprio
bem). Ela teve de disfarçar, em casa, a inumanidade descarada que
demonstrava no exterior. ‘Do lado de lá’ as coisas poderiam ser
deslocada para fora de nosso campo de visão e de audição. Só agora, por
exemplo, a violência cruel da supressão britânica do movimento Mau Mau
no Quênia na década de 1960 está sendo completamente reconhecida.
Quando o
capital passa perto de tal inumanidade em casa ele tipicamente elicia
uma resposta semelhante àquela dos colonizados. Na medida em que ele
abraçou a violência racial em casa, como o fez nos Estados Unidos,
produziu movimentos como os Panteras Negras e a Nação de Islã com seus
lideres como Malcom X e, em seus últimos dias, Martin Luther King, que
viu a ligação entre raça e classe e sofreu as consequências decorrentes.
Mas o capital aprendeu uma lição. O quanto mais raça e classe se
entrelaçam, mais rápido o pavio revolucionário queima.
Mas o que Marx deixa tão claro em O capital é a violência diária
constituída na dominação do capital sobre o trabalho no mercado e no
ato de produção, bem como no terreno da vida diária. Quão fácil não é
pegar descrições das condições de trabalho contemporâneas, por exemplo,
nas fábricas de eletrônicos de Shenzesn, nas fábricas de roupas em
Bangladesh ou as confecções clandestinas de Los Angeles, e encaixá-las,
sem prejuízo, no clássico capítulo de Marx sobre a jornada de trabalho
n’O capital?
Quão surpreendentemente fácil não é pegar as condições de vida das
classes trabalhadoras, dos marginalizados e desempregados em Lisboa, São
Paulo e Jacarta, e as justaporem à clássica descrição de Engels em 1844
em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra?
O privilégio
e o poder oligárquicos da classe capitalista estão levando o mundo em
uma direção semelhante em quase toda a parte. O poder político –
sustentado por uma vigilância, um policiamento e uma violência
militarizada intensificantes – está sendo usado para atacar o bem-estar
de populações inteiras tidas como dispensáveis. Diariamente
testemunhamos a desumanização sistemática de povos descartáveis.
Implacável, o poder oligárquico está agora sendo exercido por uma
democracia totalitária destinada a interromper, fragmentar e suprimir
qualquer movimento político coerente organizado contra a riqueza (como o
occupy,
por exemplo). A arrogância e o desprezo com que os afluentes agora veem
os menos abastados – mesmo quando (particularmente quando) em disputa
uns com os outros por trás de portas fechadas para mostrar quem pode ser
o mais caridoso de todos – são fatos notáveis de nossa atual condição.
A “lacuna de
empatia” entre a oligarquia e o resto é imensa, e não para de crescer.
Os oligarcas confundem renda superior com valor humano superior e
consideram seu sucesso econômico como evidência de seu conhecimento
superior do mundo (ao invés de produto de seu controle superior sobre as
artimanhas da contabilidade e sobre determinadas ferramentas legais).
Eles não sabem ouvir o sofrimento do mundo porque não podem e não vão
deliberadamente confrontar seu papel na construção dessa situação. Eles
não vêem e não podem ver suas próprias contradições. Os bilionários
irmãos Koch doam caridosamente a uma universidade como a MIT ao ponto de
construírem uma linda creche para o corpo docente merecedor de lá
enquanto simultaneamente esbanjando incontáveis milhões de dólares em
apoio financeiro a um movimento político (liderado pela facção
do Tea Party) no congresso estadunidense que corta vale-alimentação e
nega bem-estar, suplementos nutricionais e creches para milhões vivendo
na ou perto da miséria absoluta.
É num clima político como este que as erupções violentas e imprevisíveis que estão ocorrendo por todo o mundo episodicamente (da Turquia e do Egito ao Brasil e à Suécia só em 2013)
parecem mais e mais como tremores prévios de um terremoto vindouro que
fará das lutas revolucionárias pós-coloniais da década de 1960 parecerem
brincadeira de criança. Se há um fim do capital, então isto é
certamente de onde ele virá e suas consequências imediatas dificilmente
se provarão felizes para qualquer um. Isso é o que Fanon tão claramente
nos ensina.
A única
esperança é que a massa da humanidade verá o perigo antes que a podridão
vá longe demais e o dano humano e ambiental se torne grande demais para
consertar. Diante do que o Papa Francisco com razão chama de
“globalização da indiferença”, é imperativo que as massas globais, como
Fanon bem disse, “resolvam despertar, sacudir o cérebro e cessar de
tomar parte no jogo irresponsável da bela adormecida no bosque.” (Os condenados da terra,
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p.85). Se a bela
adormecida despertar a tempo, então talvez possamos esperar um final
mais com cara de conto de fadas. O “humanismo absoluto da história
humana”, escreveu Gramsci, “não visa a resolução pacifica das
contradições existentes na história e na sociedade mas, ao contrário, é a
própria teoria dessas contradições”. A esperança está latente nelas,
disse Bertolt Brecht. Existem suficientes – dezessete – cativantes contradições no interior no domínio do capital para semear o solo da esperança.
(Boitempo, no prelo). A tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.
***
David Harvey
é um dos marxistas mais influentes da atualidade, reconhecido
internacionalmente por seu trabalho de vanguarda na análise geográfica
das dinâmicas do capital. É professor de antropologia da pós-graduação
da Universidade da Cidade de Nova York (The City University of New York –
Cuny) na qual leciona desde 2001. Foi também professor de geografia nas
universidades Johns Hopkins e Oxford. Seu livro Condição pós-moderna (Loyola, 1992) foi apontado pelo Independent
como um dos 50 trabalhos mais importantes de não ficção publicados
desde a Segunda Guerra Mundial. Seus livros mais recentes são O enigma do capital, Para entender O capital, livro I e O novo imperialismo.
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