O tema da
corrupção nunca foi exatamente um dos motes da esquerda brasileira.
Mesmo a ascensão do PT ao poder jamais dependeu de um discurso da
purificação moral da política. Como por aqui não tivemos algo como um
Estado de bem-estar social caracterizado por impostos pesados, mas
compatíveis com alta qualidade e extensa cobertura social nas áreas de
educação, saúde e assistência, o discurso contra a corrupção ficava um
tanto presumido pela afirmação de valores “éticos” compatíveis com uma
virada política para as questões sociais. O PSDB demorou muito para
perceber isso, insistindo em uma tática reversiva e reativa a
acontecimentos como a “Privataria Tucana”, sem se dar conta de que a
denúncia da corrupção significa coisas distintas quando o alvo é a
direita conservadora, que sempre escolheu este terreno para defender
suas teses, ou a esquerda liberal, que tendencialmente guarda reticência
para o ideal de purificação moral. É por isso que mesmo depois do
aprisionamento de parte substancial de ícones do PT, como Genoíno ou
Dirceu, casos sentidos como eticamente distintos, as pesquisas ainda
coloquem Dilma como uma candidata viável à reeleição.
O argumento
eleitoral óbvio aqui seria de que Dilma justamente patrocinou ou anuiu a
auto-purificação judiciária no interior do Governo. Mas este argumento
não será usado. O que confirma, mais uma vez, que a contabilidade dos
caçadores de corruptos sempre penderá para o Joaquim Barbosa de plantão.
Certo é que os anos Lula e Dilma foram marcados por uma espécie de
evolução da cultura da denúncia, envolvendo cascatas de escândalos,
revelações e dossiês, cuecas sujas e operações da Polícia Federal com
títulos teledramatúrgicos. Sim, a política sempre vem com estes
momentos, mas me refiro a outra coisa, a uma espécie de cultura que
começa com o impeachment de Collor. No fulcro desta cultura
talvez esteja a intuição de certo fracasso da retórica baseada na
modificação da forma da lei para representar nosso próprio processo
transformativo. Seu efeito correlato sendo a degradação da oratória
baseada na integridade, na pureza de intenções ou na retidão de
espírito.
Estas duas
operações – instrumentalização da lei e neutralização da virtude –
precisam ocorrer em co-presença para que tenhamos formado uma verdadeira
cultura do cinismo.
Axel Honneth nos ajuda a entender este fenômeno. Segundo o atual
diretor do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, entre a dialética
da justiça e da solidariedade e a dialética do amor e da amizade, existe
a função articuladora da cultura como eticidade. Ou seja, a alternativa
nem sempre se dá entre lei ou barbárie de um lado e o amor que tudo
salva do outro. Entre eles há este campo de indeterminação relativa
formado pela luta pelo reconhecimento de valores entre formas de vida.
Formas de vida concorrentes em seus ideais de realização. É neste campo
que a esquerda pretendeu estabelecer uma vitória estratégica de longo
prazo, na medida que defendia posições mais complexas do que a da
direita. Não que a substância moral de suas teses fosse necessariamente
mais verdadeira porque menos imediatamente persuasiva, mas simplesmente
porque ela apostava em minorias que de uma forma ou de outra
adiantavam-se em termos de inscrições de formas de vida. Minorias que
representavam demandas vindouras, demandas de aspiração universal ainda
não totalmente compreendidas, ainda não totalmente capturadas por
plataformas de transformação institucional. Os dos exemplos mais claros
desta estratégia são obviamente as perspectivas ecológicas e as minorias
de etnia e gênero.
Do ponto de
vista da valência cultural, estas formas de vida têm um traço em comum
muito importante. Elas compõem-se de formas de sofrimento que ainda não
são plenamente recognoscíveis por todos. São formas de sofrimento não
totalmente visíveis. Durante este processo a lei é sentida como uma
contradição entre ordenamento jurídico e as regras de reconhecimento
social. Neste momento sentimos que a lei, ela mesma, exprime uma espécie
de corrupção, que nada mais é que seu descompasso temporal com nosso
desejo. Tendo o sentimento de injustiça como sua expressão mais
evidente, a esquerda especializou-se na articulação dessas demandas de
justiça social. Confiando na corrupção temporal da lei, que se mostra de
forma cada vez mais desvestida, como a lei dos que são capazes de fazer
leis, legava-se assim para a direita a expressão de aspirações de
liberdade. Com uma exceção digna de nota: a cultura e sua gramática
expressiva.
Nesta área a
direita parece ter se especializado, também ao longo do tempo, no
“negócio da lei”. Ou seja, nas entranhas protocolares, nos editais, na
máquina de subvenção, indicação e contravenção instituída dentro da lei.
Uma vez atendido este requisito “normativo”, uma vez que o que não é
“proibido” autoriza automática e compulsoriamente as formas mais
obscenas de liberdade, a cultura entrará em sua deriva entrópica. Ela
perderá sua função de articular liberdade e justiça como valores em uma
esfera de autonomia comparativa. Esta seria uma razão para entendermos
nosso estado de minguadíssima imaginação política, recentemente sintetizado por Nuno Ramos
como incapacidade de traduzir prosperidade econômica mais além “do
Deus-PIB, em aumento de direitos a partir do Deus-cidadania”. Mais
direitos são importantes, mas mais importante que mais direitos é a
invenção de formas de vida que os tornem desnecessários.
A corrupção
dentro da lei se torna assim nosso problema de maior impacto local. Não
haverá lei que nos faça ver a limitação de uma vida baseada na defesa de
garantias, no direito ao gozo ou na moral de condomínios. É isso que
nossa direita hobessiana ainda não conseguiu entender.
***
Christian Ingo Lenz Dunker é
psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do
Fórum do Campo Lacaniano, fundador do Laboratório de Teoria Social,
Filosofia e Psicanálise da USP, autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica
(AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em
Psicologia e Psicanálise em 2012. Desde 2008 coordena, junto com
Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise.
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