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sábado, 19 de julho de 2014

A comemoração


14.07.17_Flávio Aguiar_A comemoração[Charge de Ziraldo publicada na revista Visão durante a Copa de 1970]
Dois municípios se digladiavam no interior do Rio Grande do Sul: Xurumela e Novo Säugling. A rixa era antiga. Novo Säugling, como diz o nome, era predominantemente germânico. Já Xurumela tinha mais de tudo: até alguns dissidentes de Novo Säugling que preferiram se misturar, em priscas eras, aos xurumélios. O contrário também era verdade: muitos xurumenses, sabe-se lá por que, tinham preferido passar para o lado dos säuglinguenses.
A rixa, porém, era antiga. Por exemplo: no tempo da Guerra, alguns säuglingos aderiram ao Terceiro Reich. Não eram a maioria: mas pelo barulho, deram o seu perfil ao município. Marchavam pelas ruas imitando a Wehrmacht, a passo de ganso.
Depois, quando perceberam que isto podia pegar mal, aderiram aos integralistas, camisa verde e tudo o mais. Gritavam Anauê com a mão levantada, no melhor estilo então dominante em Berlim. Isto valeu o apelido a todos os säuglingóis, de “boches” – nome herdado, na verdade, dos filmes americanos sobre a guerra, em que os alemães sempre pareciam gorilas perfilados que falavam um inglês estropiado e gutural.
Já em Novo Säugling os xurumeses tinham fama de vagabundos, que detestavam trabalhar, só pensavam em ir se deitar nas praias do rio Taquari e ficar vadiando. Tudo isto porque muitos xurumelianos adoravam fazer exatamente isto, embora trabalhassem pacas o dia e o mês inteiros. Daí se criou em Novo Säugling a expressão “xurumico” – que servia para designar os vira-latas, os cães vadios, que, aliás, a prefeitura local expulsava sempre para o município vizinho.
Mas havia entre ambas uma sociedade secreta, que se auto-chamava “Os Condestáveis”. Eram grandes empresários de um lado e do outro, que governavam as duas cidades, pois financiavam sempre os candidatos a prefeito e a maioria dos vereadores que eram eleitos. Na verdade, eles, os “Condestáveis”, se julgavam “os eleitos”. Mas preferiam governar na sombra.
Eram sempre muito racionais, embora às vezes surgissem propostas abstrusas entre eles. Por exemplo, um condestável do lado “sing”, preocupado com o excesso de xurumeios que procuravam os bordéis de Säugling”, sugeriu que se construísse um muro na divisa entre as duas cidades, para controlar a passagem. O presidente do Conselho dos Condestáveis se opôs: “logo agora que o muro lá em Berlim caiu?”. Ao que o proponente retrucou: “pois é, a gente podia aproveitar as pedras do de lá pra construir o de cá; sairia barato”.
Mas felizmente a ideia não prosperou. Porque entre as duas cidades havia uma troca intensa, por debaixo da rivalidade. Os condestáveis de Xurumela produziam muito couro e cadarços. Já os de Säugling produziam sapatos. Muitos xurumicos trabalhavam nas fábricas dos boches. E todos – os condestáveis, naturalmente – ganhavam muuuito dinheiro com isto.
Mas aí veio o grande dia do futebol. Alguém teve a ideia de promover um campeonato entre as seleções das duas cidades, em melhor de três. Era para promover a integração, mas logo começaram a surgir as piadas, de que os “boches” jogariam que nem postes e, do outro lado, que os “xurumicos” derreteriam ao sofrer o primeiro gol.
Veio o grande dia. Bandeiras agitadas, feito asas num pombal. Camisetas distendidas em corpos, como num varal. E no campo – cujas arquibancadas estavam lotadas, até com o governador do estado presente – foi um vareio: Xurumela 7 x Singóilingue 1. Uma vergonha. O povo siringóide clamava por vingança. Mas veio a segunda partida, mais sofrida. Mas depois de pênaltis não marcados, expulsões, muito sangue, suor e lágrimas, acabou com a vitória Xuru por 1 x 0.
Daí alguém xurumelo teve a ideia. Vamos fazer uma comemoração.
E fizeram. Era um desfile. Ruas cheias, povo com bandeirinhas xurumélicas na rua. E aí na frente vinha uma linha de jogadores do time xurúquico, de botas, capacete nazi, uniforme, em passo de ganso, cantando: “assim caminham os boches”. A seguir, num passe de mágica, despiam os uniformes, os capacetes, as botas, ficavam de bermuda e chinelo de dedo, entrava uma batucada, e eles a sambar gritavam: “assim caminham os xurumelos!”.
Em Zingoriunga foi um desmanche. “Racismo”, gritavam os mais exaltados. “Desrespeito pelos vencidos”, os menos. “Vergonha”, gritavam todos. “Vingança”, rugiam as ruas.
Alguém teve a ideia: vamos organizar uma dança contrária! A gente começa caminhando de cócoras, cabeça meio baixa, gritando: “assim caminham os xurumicos!”. Depois se alevanta, caminha de pé, e grita: “assim caminha a humanidade!”. Continuava a argumentação: “é o nome de um filme famoso. A gente pode dizer que é um velho costume germânico, de origem medieval – coisa que aliás estes xurumicos não têm – e assim ninguém poderá nos acusar de racismo”. Mas a ideia foi descartada pelo presidente sirigóide dos Condestáveis, temendo que o caso atraísse a atenção das autoridades do estado e até de Brasília. “Ainda mais nestes tempos que lá em Brasília e aqui no estado reinam estes comunas”, ele contou depois à mulher, no jantar.
Mas o caso deflagrou debates candentes de ambos os lados da divisa. Gente contra e a favor, gente que escrevia artigos candentes de um lado exigindo – de ambos os lados – o sangue e a cabeça dos que escreviam pelo outro lado. Grandes confusões de aprontavam no horizonte. Um dos xurumicos, que era amigo de um dos boches, observou para este: “a coisa é feia e vem se debruçando”.
Mas daí alguém – um outro alguém – teve uma ideia – uma outra ideia. Não se sabe muito bem como foi, mas o fato é que num domingo, na praça que marcava a divisa entre as duas cidades, apareceu uma banda. É, uma bandinha, destas do interior. Metade xurumicos, metade boches. Só que os xurumicos vestiam aqueles calçõezinhos de couro da Baviera, com o chapeuzinho verde de peninha em riste. E os boches vestiam de tudo: camiseta listada com sandália de dedo, bombacha de gaúcho, tinha um até vestido de baiana. Por que não?
E desandaram a tocar na manhã ensolarada. Tocavam de tudo. Rancheira, xote, baião, polca, Heimatlandmusik, yodeldideldum suíço, valsa de Viena, rocão, funk, punk, pós-jazz, tudo de tudo. Mas foi na hora do sambão que a coisa começou. Um xurumelo – que tinha uma paixão secreta – não aguentou e tirou-a pra dançar. Só que ela era do lado boche. Mas topou e caiu no samba. Daí subiu a locura. Todo mundo começou a dançar e sambaram até a Kleinenachtmusik do Mozart.
Começou assim a verdadeira comemoração. Diz que durou um mês. Ninguém trabalhou neste tempo. Todo mundo compartilhava tudo: Wurst, picanha, acarajé, cerveja, vinho, refri, água. E caía no samba. Um mês depois, foram dormir, que ninguém é de ferro.
A vida voltou ao normal. Mas nunca mais o normal foi normal. Toda a semana, tem uma festa em algum local, com a bandinha dos aloprados. Tem gente que fala até em fundir os dois municípios. E há uma nova expressão no pedaço, dirigida às novas gerações, capitaneadas por aquele casal que começou a dança: “xuruboche”, e dita com muita honra.
Por seu turno, a Associação Secreta dos Condestáveis registrou aquele mês como perdas e danos. E pediu mais isenção de impostos.

Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel

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