Blog do IMS entrevista Paulo Arantes.*
Professor aposentado do departamento de Filosofia da USP e coordenador da Coleção Estado de Sítio da Boitempo, Paulo Arantes acaba de lançar O novo tempo do mundo, e outros estudos sobre a era da emergência. Mapa
possível de nosso tempo, o livro articula ensaios sobre junho de 2013, o
extermínio colonial, a economia de guerra, a indústria dos presídios,
as UPPs, o trabalho nos campos de concentração, as revoltas nos guetos, o
golpe militar de 64, na tentativa de pensar a experiência da história
em uma era de expectativas decrescentes.
Nesta entrevista realizada via e-mail ao
Blog do IMS, em torno do livro, Paulo Arantes comenta os “dois junhos” —
o de 2013 e o de 2014 — e defende que o maior legado da Copa será o “upgrading dos aparelhos coercitivos”. Confira:
* * *
1.
Em seu livro, o senhor fala sobre o fim da era das grandes esperas, de
ciclos em que as sociedades ocidentais se mantiveram na expectativa de
uma grande mudança para o futuro, quer fosse uma guerra, uma revolução,
algo que alteraria a ordem das coisas profundamente. Hoje ninguém parece
acreditar em uma mudança radical, parece que o futuro está fadado a ser
uma versão remediada do presente. Por outro lado, você demonstra
empolgação com movimentos como as manifestações de junho do ano passado.
Esse tipo de eclosão não seria meio esvaziada de sentido uma vez que
nem seus próprios agentes parecem ambicionar uma mudança radical?
Depende do
que entendermos por mudança radical. Se for na mesma linha das grandes
expectativas modernas que durante dois séculos alimentaram o imaginário
dito progressista de sociedade orientadas para o futuro, segundo a
lógica do crescimento indefinido, está claro que as manifestações de
junho não assinalam nenhuma daquelas reviravoltas históricas pelas quais
desde sempre nos habituamos a esperar nos momentos cruciais de uma
conjuntura em transe. Como em 1964. O termo de comparação obviamente não
caiu do céu. Ou melhor, caiu sim: quis o destino, no caso, o fetichismo
das datas redondas, que os 50 anos da Ditadura que mudou radicalmente o
Brasil tenham caído em junho, mais exatamente entre dois junhos, o
histórico, do ano passado, e o que está transcorrendo agora. Salta aos
olhos o quanto o tempo brasileiro mudou de lá para cá. Ou por outra, o
quanto o tempo brasileiro passou a ritmar-se pelo novo tempo do mundo,
um regime político de esperas que não comporta mais desfechos
conclusivos, embora a contagem regressiva recomece a cada rodada. Há um
ano se diz que o Brasil nunca mais será o mesmo depois de junho, mas a
situação conflitiva que se abriu então está muito longe da terra em
transe anunciada por Glauber Rocha. Me explico. A denominação corrente
Jornadas de Junho é claramente uma reminiscência do Dezoito de brumário,
de Marx — como se há de recordar, o escrito magistral em que Marx
simplesmente inventou a análise materialista de conjuntura, no caso, a
que arrastou a Revolução de 1848 ao golpe de Luis Napoleão Bonaparte,
uma narrativa de corte balzaquiano cujo decurso, mesmo no registro
paródico, é tão teatralmente dramático quanto as incontáveis e
memoráveis jornadas insurrecionais da Grande Revolução. Mesmo descontado
o despropósito gritante da comparação, ninguém se aventuraria a
redescrever junho naqueles termos clássicos. E, no entanto, desde que o
mundo é mundo, não há agrupamento de esquerda que não principie uma
reunião com uma análise de conjuntura naqueles mesmíssimos moldes
clássicos. Junho não coube mais nessa rotina, salvo para ser
sumariamente descartado como esquerdismo de classe média. Por isso mesmo
soa ainda mais patético o sinal de alarme, não menos rotineiro nessas
circunstâncias de desobediência civil com a esquerda institucional de
passagem pelo governo: não façam marola que o espectro de 64 está à
solta — não que a direita não esteja salivando por conta de uma mudança
de guarda iminente. Mas justamente o Golpe de 64 foi desfechado depois
de uma escalada de três anos acelerados num campo de batalha no qual a
frente popular chegou desarmada no último ato. Foi nossa última
catástrofe, a origem do Brasil contemporâneo que agora está mudando de
pele. Quer dizer, a versão de agora do Brasil-potência de 50 anos atrás
se reapresentou num tempo emergencial em que o futuro perdeu seu caráter
de evidência progressista, cada vez mais Segurança e menos
Desenvolvimento, para evocar o binômio sinistro da Ditadura, que hoje
corre pelo trilho “pacificador” da gestão securitária do social, do
encarceramento em massa aos programas de transferências monetárias
condicionadas. O Brasil vive assim num clima de emergência de mão dupla.
Numa delas, requenta a parolagem arrivista do catching up apoiada
na predação regional operada por suas multinacionais. Noutra,
multiplica todo tipo de saída de emergência — por exemplo, a viração do
chamado empreendedorismo dos pobres. Numa hora em que o capitalismo é
para poucos, selecionados entre a massa trabalhadora dessocializada pelo
medo da eliminação, não faz mesmo muito sentido esperar por mudanças
sociais em profundidade, como se dizia no tempo em que a luta de classes
ainda dispunha de um poder instituinte capaz de frear a desagregação
inerente à guerra social capitalista, que passou então a ser represada
por outros dispositivos “pacificadores”. Nesse andar superior da
dominação gestionária não pode haver futuro que não seja a projeção
linear de um presente sem maiores ambições que a segurança como um fim
em si mesmo.
Na zona de
desconforto dos protestos mundo afora, todavia, há novidades. E induzida
justamente pelo “presentismo” emergencial que rege o novo tempo do
mundo. Quando o futuro se aproxima na forma de colapsos anunciados, e o
passado se resume a um amontoado de desgraças, cuja memória pressiona
quando muito por retratação, nossa relação alterada com o tempo social
muda por completo a experiência da política. Enquanto no topo da cadeia
de comando e espoliação, administra-se a percepção coletiva de que a
decomposição da ordem capitalista não encerra mais nenhuma promessa, na
base parece que se reaprende a esperar sem contar mais com o mítico “dia
que virá”, com se dizia nas canções de resistência à Ditadura. A
novidade que precisa ser saudada — daí sua impressão de “empolgação” — é
o surgimento, depois de quase duas décadas de latência, de uma esquerda
desatrelada da miragem progressista e seus custos cobrados
antecipadamente. Não é pouca coisa — a rigor uma profanação —, num país
com encontro marcado com o futuro, segundo o seu mito de origem, para
ser mais preciso, num país que nasceu como uma comunidade imaginada de
expectativas, pouco importa se regularmente frustradas, ou talvez por
isso mesmo, declarar, e agir em conformidade, nas palavras de um
ativista de junho, que a famigerada marcha do progresso pode e deve ser
interrompida e que, sendo o presente intolerável, será preciso suspender
o futuro para que justiça seja feita. Delirante ou sensata, pode faltar
tudo nessa visão, menos o desalento que a seu ver transparece na falta
de ambição transformadora na explosão de junho. De fato, nada menos
épico do que a revogação de um aumento de 20 centavos, para voltar a
falar nos treze dias que mudaram, não o mundo, mas a vida na cidade de
São Paulo. E no entanto, uma esquerda “sem futuro” — entendamos, uma
esquerda à altura de uma idade de expectativas decrescentes, encarada
tal mutação de época como um dado de realidade da dominação e não como
um equívoco filosófico — simplesmente provocou a capitulação da maior
concentração urbana de poder político e econômico do país, levando junto
no naufrágio a esquerda “com futuro” que aparentava conduzir o barco
com o tirocínio da tal correlação de forças que só os velhos marinheiros
possuem. Daí o falso problema do sempre lembrado nessas horas “fôlego
curto” das revoltas populares de junho, que obviamente só existe se
medido pelo metro enferrujado da longa duração da esquerda “com futuro”,
cujo fôlego, este sim, claramente se esgotou e por isso sua falta de ar
se tornou um problema real de morte por asfixia, o que não é o caso da
nova esquerda anticapitalista, que no entanto respira à vontade na mesma
atmosfera rarefeita de emergência e governo de exceção na qual
ingressamos. Pois se trata de um tempo novo, aliás nem tão novo assim —
na França e na Inglaterra, por exemplo, está completando 30 anos ou mais
—, de insurreições explosivas que se sucedem segundo uma lógica reativa
e antipolítica que se extinguem sem deixar outro rastro além da memória
dos ressentimentos acumulados para a próxima explosão. Aqui a coisa
nova e ruim da qual deve partir um esquerda “sem futuro” — coisa nova e
ruim que a outra, sua antecessora no exercício do poder, qualquer poder,
já opera faz algum tempo. É que no capitalismo de desastre e suas
correspondentes terapias de choque — para falar como Naomi Klein —,
constituiu-se um continuum de públicos-alvo — ninguém pode
ficar de fora —, alternada ou concomitantemente, social e punitivo.
Assim como se cadastra um sem-teto que pressione o suficiente, depois de
bater muito e conter, se “inclui” no cadastro da segurança os
amotinados da rua. Esta simbiose entre polícia e política define bem o
novo tempo brasileiro que os sucessores da Ditadura passaram a operar
desde o início dos anos 90 sob o nome de Pacificação. Mudança radical,
para voltar ao seu mote, seria encontrar a porta de saída de engrenagens
como essa, ao invés de aperfeiçoá-la com novas “conquistas”.
2.
No artigo em que trata da Ditadura, o senhor diz que estão tentando
encurtar a duração do regime e abrandá-lo em um revisionismo à
brasileira. Você acha que a tendência é que o regime militar seja
relativizado e perca importância na narrativa da história brasileira? Se
isso se concretizar, qual a consequência esperada? Quem são os agentes
desse revisionismo?
A Ditadura
só mudou o país de alto a baixo porque venceu em toda linha. E venceu
tão inapelavelmente que nos fez acreditar que a derrotamos. Talvez tenha
sido esta sua maior vitória. Esse é o mito fundador do Brasil
contemporâneo, o de uma democracia nova que emergiu vitoriosa do
tratamento de choque de um regime de aniquilação sistemática de seu
inimigos de classe, aliás cuidadosamente selecionados — não se reprimia e
desaparecia a esmo. Não que não houvesse resistência e luta. Houve, e
muita, desde a primeira hora. Mas onde há resistência, também há
colaboração, que foi abundante, para não falar na imensa terra de
ninguém dos resignados e adaptados. Trinta anos de Terror Branco no Cone
Sul e na América Central resultou por toda a parte em democracias de
baixa intensidade, para ainda falta na língua da Guerra muito pouco Fria
que deu régua e compasso ao nosso Estado de Segurança Nacional, como
pode ser abreviadamente redescrito um regime que soube combinar
desenvolvimentismo em marcha forçada e o trabalho sujo prescrito pela
chamada Doutrina da Guerra Revolucionária, que os militares franceses
derrotados em Dien-Bien-Phu trouxeram da Indochina na mochila e
aplicaram na Argélia. Decididamente não foi apenas doméstico o acerto de
contas, que de resto ainda não se encerrou. O processo de “pacificação”
em que estamos enterrados até o pescoço, por definição, não tem prazo
para acabar. Só que agora o inimigo é outro, embora a guerra continue
interna, impulsionada pela perene ansiedade das classes proprietárias:
será que o Golpe foi suficientemente assustador para apagar de vez até a
memória de que um dia houve inconformismo de verdade no país? Na
dúvida, melhor cultivar o temor reverencial dos militares. E o
“revisionismo” da esquerda, convencida de que derrotou a Ditadura porque
soube reencontrar enfim a Democracia contra a qual atentara no passado,
provocando a compreensível embora desproporcional reação dos aparelhos
coercitivos encarregados de garantir a lei e a ordem. A intensidade do
Golpe foi tal que abalou até o equivalente historiográfico da proibição
do incesto, a interdição do anacronismo, pecado mortal, como sabe
qualquer historiador. O revisionismo vive disso: a evidência
institucional de hoje — extorquida todos sabemos a que preço — retroage
até o passado, que passa a ser julgado a revelia num processo instruído
por um tribunal, que se for o da história, só pode ser a dos vencedores.
Todavia a
virada revisionista não teria conhecido a difusão avassaladora atual sem
a mutação no regime histórico da espera pela qual começamos nossa
conversa. Como ele é central, basta um exemplo. Durante meio século, o
imaginário progressista brasileiro, da esquerda revolucionária aos
liberais desenvolvimentistas (uma peculiar hibridação local), deixou-se
imantar por uma única expectativa, a de superar o flagelo social do
subdesenvolvimento, do qual passamos a ter uma consciência catastrófica a
partir dos anos 30 do século passado, nas palavras de Antonio Candido.
Essa é a corrente principal ao longo da qual fluía um tempo que só
nestes termos era nacional, apesar do antagonismo de fundo, que alargava
de tal modo seu horizonte comum que o limiar a ser ultrapassado tanto
poderia ser uma ruptura social como uma decolagem modernizadora
igualmente desestabilizadora — é só pensar no escândalo político da
moderada Sudene. A palavra à esquerda para esta linha de espera era
Revolução Brasileira, uma noção de expectativa máxima que a ninguém
ocorreria antecipar a fisionomia, embora constasse de nossa certidão de
nascença. Pois era tão forte sua irradiação que o Golpe, em princípio
desfechado para barrá-la, adotou-a com a naturalidade de um senso comum
histórico, não se acanhando de se apresentar como uma “revolução”, ainda
que reacionária, na contramão de tudo e todos, menos da geocultura
legitimadora do Desenvolvimento. Na verdade, uma contrarrevolução
preventiva, no caso, como os seus ideólogos foram os primeiros a
reclamar abertamente. Seja como for, um conceito de movimento, como seu
par antitético, que afinal não chegara sequer a sair da prancheta,
embora o campo popular se agitasse desde que conseguira abortar o ensaio
geral do golpe em 1961. Esse é o ponto cego do revisionismo e uma das
razões pelas quais demorou tanto tempo para sair do armário. Não
constava do repertório de época — e estamos falando do antigo tempo do
mundo —, a favor ou contra, Estado de Direito, Democracia etc. e
assemelhados, noções que não abrem temporalmente para nada, pelo menos
segundo os paradigmas políticos daquele século que esperou e temeu
revolução, guerra e cataclismo nuclear. Deu-se então a grande
transformação de nossa época — lendo apenas o painel do sismógrafo, no
centro do qual se encontra a redescoberta do mal absoluto, o Holocausto,
que os 30 anos de crescimento do pós-guerra relegara ao segundo plano
de uma tragédia particular. Para frente, até onde a vista alcança,
apenas segurança, precaução e estado de alerta como razões de governo
normais e permanentes, enquanto às nossas costas um passado de desgraças
e violações não cessa de crescer e atemorizar, tornando o presente um
único sinal de alarme entre duas catástrofes. Pensando bem, o
revisionismo no fundo é apenas um deles, vindo da mesma esquerda que
passou a fazer o inventário das violações da democracia por não
conseguir mais imaginar a vida depois do capitalismo.
3.
Você critica bastante a chamada esquerda tradicional, que já não seria
capaz de compreender e intervir nesse novo tempo de que trata seu novo
livro. Por outro lado, sua foto de autor no fim do volume é com um
megafone na mão, durante uma aula pública organizada pelo Movimento
Passe Livre. No meio de toda aquela manifestação, os fóruns mais amplos
que o MPL convocou não eram debates, assembléias com o resto do
movimento social, com as pessoas que estavam na rua, mas aulas públicas.
É forte essa imagem da organização que chama para si a responsabilidade
de educar. O tempo inteiro eles disseram abdicar da função de liderar,
mas não abdicaram dessa posição professoral de ensinar. Quando foram ao Roda Viva,
mandaram um representante que era professor, o tempo todo buscaram
filiação com professores, a exemplo do senhor. Isso não demonstra uma
visão ainda mais sectária do que a dos sindicalistas e seus carros de
som, a visão de um movimento que adota um tom professoral em relação a
seus pares que estão nas ruas?
À primeira
vista, um megafone de fato não recomenda muito o autor. Talvez nem a uma
segunda vista. Em todo o caso, não custa uma visita ao YouTube,
onde o leitor pode ele mesmo verificar o eventual estrago. Na
circunstância, foi um expediente diante da pane no sistema de som.
Tampouco o microfone atenua muito a desconfiança. Seja como for, o
megafone é um ancestral do famigerado carro de som e como tal um
dispositivo que em princípio aproximaria seu usuário, mesmo ocasional,
da execrada nomenclatura do ciclo que está se encerrando. Como nunca fui
um scholar de verdade, a imagem de orador de centro acadêmico
não representa propriamente uma queda. Quanto à aula pública, outro
dispositivo clássico de mobilização, sendo a extensão de uma relação
naturalmente desigual entre quem fala de cátedra e quem ouve
literalmente parterre, é por definição um multiplicador de
hierarquias sociais. Novamente só me resta sugerir confirmar ou não sua
má impressão recorrendo ao único registro disponível.
Dito isso,
passemos ao MPL. Tenho lido e ouvido muitas restrições, mas a sua é
particularmente bizarra. Nunca me ocorreria e, no entanto, é quase uma
evidência. Como o nome indica, um movimento pelo passe-livre só poderia
ter nascido num ambiente originalmente estudantil que, por sua vez, não
se compreende sem a presença (ou melhor, sem a ausência) de professores.
Que tenham se deixado contaminar pelo vírus professoral é uma hipótese
plausível, mas não me parece ser o caso, ainda que tenham de fato dado
uma aula de política à bancada do Roda Viva. Não chegaria ao
extremo de dizer que seriam hoje o sal da terra, como outrora os
estudantes russos que povoam os romances de Turgueniev e Dostoievski,
muito menos que ensaiam uma “ida ao povo” similar. De qualquer modo, o
que não faltam são afinidades próximas ou remotas, alucinadas ou
razoáveis, que não toquem o coração veterano do modesto radicalismo de
classe média que, segundo Antonio Candido, moldou o espírito
antioligárquico da Faculdade em que me formei. Resta a pretensão de
educar os demais movimentos sociais, que você lhe atribui. Acho que
estão justamente na exata contramão dessa mais do que entranhada e
perniciosa ambição do homem culto brasileiro, mandar e desmandar — e
ponha mandar nisso — em nome do esclarecimento do povo miúdo, a marcha
do progresso de que falávamos há pouco. O crime fundador de Canudos que o
diga: “O brilho da civilização através do clarão das descargas”,
escreveu Euclides, antes de passar ao capítulo da degola dos
prisioneiros, obrigados a dar vivas á República, como precisou lembrar
não faz muito Willi Bolle, estudando no Sertão de Guimarães Rosa a
guerra permanente que move nossa máquina de moer gente.
4.
Passando para o junho deste ano, você diz no livro que o verdadeiro
espólio da Copa será um aprofundamento de aparatos coercitivos de
vigilância e punição que, em ocasiões futuras, poderão ser acionados com
mais eficácia do que hoje. Fora os megaeventos de atenção
internacional, que parecem justificar aos olhos da opinião média
brasileira que o Estado suspenda a normalidade para maquiar o país de
seus problemas, que outras situações poderiam acionar esses mecanismos
de exceção?
Em toda e
qualquer situação em que o novo inimigo se apresente. Lembrando que no
Brasil o inimigo é sempre interno. Salvo a “maldita guerra” paraguaia e
nossa presença apenas coadjuvante na campanha da Itália, como os demais
latino-americanos, lembrou certa vez um estudioso europeu, fomos
poupados dos horrores da guerra internacional de grande escala, mas ao
preço de padecermos o inferno nas mãos de nossas próprias forças
armadas. E, por isso, não contamos ao longo do século XX com um dos
principais recursos de que dispuseram os cidadãos europeus e americanos
para exigir a contrapartida dos direitos e do reconhecimento social, as
guerras da nação contra seus inimigos externos. Barganha sinistra que,
no entanto, pesou na decisão dos países centrais, chegada a hora de
avançar sobre as conquistas sociais passadas, decisão de suprimir o
serviço militar e profissionalizar o “trabalho da guerra”,
transformando-o em mais um posto assalariado reservado de resto,
sobretudo nos Estados Unidos, aos seus nacionais de segunda ou terceira
linha, os filhos da desigualdade, como se diz por lá. Por essas e por
outras, nunca fomos uma sociedade propriamente nacional-militar, e por
extensão, salarial, nas quais os conflitos sociais de fundo acabam se
acertando num real campo de batalha. Com o inimigo internalizado desde
sempre, todo cuidado é pouco ao falarmos na militarização em curso no
Brasil.
Pois é disso que também estamos falando ao dizer que, meganegócios à parte, o real legado da Copa será um upgrading dos
aparelhos coercitivos. Ou inovação de gestão, como preferem dizer as
autoridades encarregadas de todo esse festival de violações, gabando-se,
por exemplo, de que com os Centros de Integração de Comando e Controle,
Secretaria Extraordinária de Segurança Pública para Grandes Eventos, e
congêneres, o “legado de gestão pública já é realidade na segurança”,
jargão para integração das variadas forças de segurança e destas com as
Forças Armadas, para não mencionar o aparato tecnológico antidistúrbios
contratado sem limites orçamentários junto aos fornecedores de sempre,
Israel, Alemanha, etc. Um outro capítulo seria a tão influente quanto
discreta e próspera indústria bélica local, reforçada ultimamente pela
entrada das mesmas empreiteiras dos megaprojetos neste ramo de negócio,
cuja quinquilharia não exportada destina-se ao controle interno das
“forças oponentes” elencadas pelo recente Manual de Garantia da Lei e da
Ordem. Como lembrou o ex-presidente do STF Cezar Peluso, “vivemos de
fato uma guerra interna no país”. Que, no entanto, não é mais a da
Ditadura. Nunca será demais insistir que o inimigo agora é outro. Sendo
um perito em recursos humanos, o subversivo clássico de ontem é hoje um
gestor estratégico precioso. Assim como o principal risco hoje é social.
Por isso multiplicam-se os públicos-alvo, e alvos existem para serem
atingidos por algum projétil, ou projeto, como se queira. Por mais
intenso e devastador que tenha sido o tratamento de choque da Ditadura,
ela não chegou propriamente a militarizar a gestão social. A segurança
pública por certo, mas é um caso de figura trivial. Deixou esta tarefa
histórica para a nossa democracia de baixa intensidade, herança maior
que transmitiu aos seus adversários de ontem, que por sua vez a
defendem, tal “democracia racionada”, com um zelo punitivo redobrado.
Sobretudo na identificação do novo inimigo: inimigo do povo — de cuja
chacina possuem a reserva de mercado; inimigo das últimas conquistas
sociais e da PM que as garante; inimigo do desenvolvimento, em todas as
suas modalidades; inimigo da pacificação e sua “guerra ao contrário” ao
crime organizado e seu duplo, o fantasma do neoliberalismo que nos
assombra de quatro em quatro anos. E por aí vamos, pois a construção
social do inimigo é interminável como a guerra sem fim que se trava
mundo afora desde que o capitalismo saciou sua histórica fome canina
pelo trabalho, tornando-se um negócio para poucos.
* Publicado originalmente no Blog do Instituto Moreira Salles em 20 de junho de 2014.
***
Paulo Eduardo Arantes é
filósofo, professor aposentado do Departamento de Filosofia da
Universidade de São Paulo (USP), onde lecionou entre 1968 e 1998.
Publicou, entre outros, Hegel: a ordem do tempo (1981), Ressentimento da dialética (1996), Extinção (2007) e O novo tempo do mundo (2014). Coordenador da coleção Estado de Sítio da Boitempo, colaborou com O que resta da ditadura: a exceção brasileira, organizado por Vladimir Safatle e Edson Teles, com o ensaio “1964, o ano que não terminou”.
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