A grotesca
anedota de que a Copa no Brasil seria importante para que enfim os
europeus soubessem que a capital do Brasil não é Buenos Aires parece ter
encontrado um eco invertido na realidade, pois a partir de imagens
descontextualizadas que venham a se divulgar dos jogos da seleção
brasileira é possível que se imagine que a melancolia e o drama do tango
argentino formam a característica da nação brasileira, que, ademais,
fisionomicamente, não se encontra completamente representada na torcida.
As partidas
da seleção brasileira, dada a carga emotiva que tomba sobre os jogadores
e a comissão técnica, estão muito mais parecidas com um tango argentino
do que com um samba brasileiro. Ou seja, se a ideia era “vender” a
imagem do Brasil, isso não está dando certo. Cumpre deixar claro que
parecer com a Argentina não é demérito algum, muito pelo contrário. Só
que, como diria Jorge de Altinho, em gravação memorável de Geraldo
Azevedo, “gosto de Juazeiro, mas adoro Petrolina”.
O problema é
que o jogo comercial e os interesses políticos, acompanhados de intensa
mídia, debruçaram sobre os ombros dos jogadores (e da comissão técnica)
da seleção brasileira a carga dos destinos da nação. E o que se tem
visto é que os jogadores estão desabando emocionalmente. Tentam, com
muito esforço, canalizar positivamente a energia, mas a carga é muito
alta e acabam ficando pesados e, no final, desabam.
É oportuno,
sobre este aspecto, fazer um paralelo com o que se tem verificado no
mundo empresarial, que já repercute também no setor público. Refiro-me
às tais novas “estratégias de gestão de pessoal”, pelas quais, começando
com elogios e estímulos, procura-se, por meio da imposição de metas
quase sempre inatingíveis, extrair dos trabalhadores a maior produção
possível, estratégias que se complementam com a pressão constante do
desemprego e a técnica de comparações, colocando-se os trabalhadores uns
contra os outros no processo de competição na busca de melhores
resultados, que são publicizados, possibilitando o desenvolvimento de um
ambiente de trabalho altamente assediante e moralmente deturpado, tudo
maquiado pelas promessas de concessão de promoções e pagamento de
prêmios, quando não se resume à mera garantia de manutenção do emprego,
chegando-se mesmo a jogar sobre os ombros dos trabalhadores a
responsabilidade pelo sucesso da empresa.
O que se
verifica com os jogadores da seleção brasileira é exatamente a mesma
coisa, com um grau de tensão, concentrada, muito maior. Primeiro, são
afagados, quase endeusados. Depois, são cobrados, comparados e, alguns,
descartados, tudo sob o peso da responsabilidade de que sua performance
seja condicionante da solução dos problemas do país, sendo que nesta
perspectiva o título é o único resultado aceitável.
O fato é que
a condição humana não suporta a tensão provocada por situações como
estas. E por mais que a ideologia empresarial tente vender a ideia de
que o trabalhador deve saber lidar com as pressões, o limite humano
sempre falará mais alto, impondo ao trabalhador uma retração do ritmo de
trabalho, seja por acometimento de uma doença, seja por uma total
aversão à situação, que provoca, ao contrário do pretendido, desestímulo
e desânimo, o que prejudica o seu desempenho e, paradoxalmente, aumenta
a cobrança que o trabalhador faz de si mesmo, gerando perda da
autoestima e, no extremo, a loucura.
Mas, se ao
meio empresarial parece cômodo lidar com essa situação, pois o
trabalhador é tratado como um elemento descartável, que pode sempre ser
substituído por outro, deixando-se o custo do assédio organizacional,
que é o exército de doentes, com a Seguridade Social, a mesma ilusão se
desfaz muito mais rapidamente quando falamos de uma seleção em um
campeonato curto como a Copa do Mundo de Futebol. Ora, se o Paulinho vai
mal, coloca-se o Fernandinho. Se o Fernandinho não corresponde,
chama-se outro… Mas, há limites, pois são apenas 23 os jogadores, e
quando se verifica que a pressão atinge o craque do time, que é
insubstituível, percebe-se, claramente, como a estratégia de gestão é
destrutiva, até porque não se fazem seleções, empresas e sociedades sem
pessoas, sem tratamento humano e sem política de salubridade e sanidade.
E a
dificuldade para os trabalhadores aumenta quando estes incorporam o
discurso organizacional e tendem a ver a pressão como normal, atraindo
para si toda a responsabilidade do sucesso próprio e da instituição.
É o que se
verifica, concretamente, com os jogadores da seleção brasileira, que
mesmo sofrendo as consequências de um assédio desumano culpam-se pelos
maus resultados (se consideradas as expectativas criadas) e minimizam os
efeitos deletérios da pressão, que são visíveis nos choros e nas
fisionomias, assumindo-os como uma característica pessoal e chegando
mesmo a encontrar uma justificativa altruísta para tanto.
O grande
goleiro Júlio César disse que chorou antes da cobrança dos pênaltis
porque é emotivo mesmo e, depois, dedicou as defesas que fez aos 200
milhões de brasileiros.
Mas, é
importante que os jogadores tenham a consciência de que não devem
suportar essa carga, que, de todo modo, é plenamente artificial, na
medida em que, concretamente, os problemas sociais do Brasil não se
resolverão caso a seleção brasileira se consagre campeã. Aliás, nem
mesmo os problemas da preparação para a Copa serão corrigidos.
Ademais, a
parte da nação brasileira que sofre as consequências da injustiça
social, que não foi convidada para a festa nos estádios, está em luta
por seus direitos e tem a plena consciência de que somente a sua atuação
política, pelos meios que tiverem à sua disposição, é que trará as
necessárias mudanças que precisam, sendo oportuno deixar claro que
muitos daqueles que têm ido aos estádios, mesmo com uma condição
econômica mais favorável, têm a consciência de que mudanças sociais são
necessárias, pois a coesão de 200 milhões, juntos em torno da seleção, é
uma ilusão que não resiste à realidade das diferenças econômicas, que
se refletem social e culturalmente.
Vários
setores da sociedade brasileira, que têm a percepção de que no modelo de
produção capitalista o que se tem em concreto é uma sociedade de
classes, estão em luta. E para os trabalhadores, por exemplo, a luta
ainda será intensa, pois a assimilação do governo à lógica empresarial
da preparação para a Copa lhes trouxe várias conseqüências negativas: a
intensificação da terceirização, que agora está em risco de se consagrar
em processo sob julgamento do Supremo Tribunal Federal; a proposta, em
trâmite no Congresso Nacional, de minimização dos efeitos do trabalho em
condições análogas à de escravo; a proposta, também em trâmite na mesma
Casa, de retroceder na limitação da jornada dos motoristas e seus
ajudantes; a suspensão, determinada pelo Ministério do Trabalho, da
aplicação da NR 12 (Segurança em Máquinas e Equipamentos); o aumento do
prazo do trabalho temporário; e a intenção, já anunciada, do governo
federal em agradar o setor empresarial, para garantir a reeleição, o que
pode viabilizar que se levem adiante propostas ainda mais
precarizantes, como a de abrir espaço ao trabalho voluntário, utilizado
em larga escala na Copa, nas atividades empresariais, conforme já chegou
a sugerir Luíza Helena Trajano Inácio Rodrigues, titular da Secretaria
da Micro e Pequena Empresa, ao mesmo tempo em que dificulta,
sobremaneira, o percurso do caminho no sentido contrário, qual seja, o
da ampliação dos direitos dos trabalhadores, que requer, com urgência, a
regulação, prometida desde 1988, da proteção contra a dispensa
arbitrária, nos termos da Convenção 158 da OIT, a garantia de um efetivo
direito de greve, inclusive no setor público, e a igualdade de direitos
às trabalhadoras domésticas.
Os próprios
jogadores de futebol, bem se sabe, pela instituição do Bom Senso Futebol
Clube, que bem se poderia chamar Movimento Passe de Classe (conforme
sugerido aqui),
estão apenas nos primeiros passos para a consagração de seus direitos,
individuais e coletivos, e muita luta ainda terão que implementar.
A superação
das injustiças sociais, como preceito jurídico, é uma obrigação que se
impõe, sendo certo que uma das maiores injustiças que se pode cometer é a
de impedir que as vítimas da injustiça social e da intolerância tenham
voz, mantendo-as órfãs de uma ação política institucional efetivamente
voltada ao atendimento de suas necessidades.
A ordem
jurídica está posta no sentido de coibir a intolerância e para reafirmar
o compromisso, assumido internacionalmente, de respeito aos Direitos
Humanos de índole social, reconhecendo, sobretudo, como fundamentais, os
direitos de liberdade de expressão e de reivindicação, e constituindo
um relevante instrumento para coibir todas as práticas repressivas,
antissociais, antissindicais, antidemocráticas e discriminatórias.
O povo
brasileiro está em ação e tem a perfeita consciência em torno da
necessidade de lutar, tendo também a compreensão de que a luta não será
fácil, carregada que segue de repressão e de criminalização, como vem
ocorrendo com bastante intensidade na política de governo do Estado de
São Paulo.
Ilustres
jogadores e membros da comissão técnica da seleção brasileira saibam,
portanto, que o povo brasileiro não está dependente da conquista do
mundial para continuar sua luta. Claro que esses lutadores querem ver a
seleção campeã, mas isso porque gostam de futebol e para poderem
desfrutar de um justo e valioso momento de alegria. Um momento em
paralelo à sua luta e não um substitutivo dela.
Só que esta
alegria depende também de certa identidade cultural com a seleção. O que
se quer ver, antes de tudo, são jogos de futebol, jogados com alegria e
boa técnica, e não dramas, pois de dramas a realidade já está cheia,
sendo certo que mesmo diante deles o povo brasileiro, como sempre realça
Ariano Suassuna, não perde a leveza de espírito e um pouco de
dramaticidade cômica.
Em suma, se
não for para se engajarem em um discurso que pontue os problemas de uma
sociedade social e economicamente injusta, denunciando os absurdos
cometidos para a realização da Copa no que tange às remoções e aos
imperativos da lógica do Estado de Exceção, apoiando, expressamente, a
luta dos excluídos (sem-teto, sem-terra e desempregados), dos
trabalhadores, dos estudantes, das mulheres, dos homossexuais, dos
negros, dos índios, dos deficientes, o que seria uma força bastante
importante, mas não essencial, até porque seria, cabe reconhecer, um ato
bastante difícil e arriscado do ponto de vista profissional, o melhor
mesmo é que os jogadores da seleção se visualizem como trabalhadores,
que percebam o quanto é imerecida, artificial, exagerada e desumana a
pressão que sofrem, e que busquem superar as dificuldades por meio de
uma união interna, ao mesmo tempo em que, tirando dos ombros o peso dos
problemas da sociedade, façam o que sabem fazer: jogar bola. E o façam
com leveza, alegria e técnica, ao ritmo e ao balanço do samba,
libertando-se do medo de errar e permitindo-se irreverência e
improvisos.
Ou seja,
deixem os problemas do país em outras mãos, não os carreguem nos ombros e
os transfiram para os seus pés, pois isso os impede de flertar com o
futebol arte, que não deixa de ser competitivo, por óbvio.
E se
chorarem, porque chorar sempre é bom, não o façam em nome de 200 milhões
de brasileiros, pois os que necessitam de mudanças estão em luta e
sabem que deverão continuar lutando qualquer que seja o resultado da
Copa e aqueles para quem a realidade está muito boa a Copa não é mais
que um motivo para comemorar.
Enfim,
fazendo um paralelo, também invertido, com o drama de Evita, a parcela
da população em luta, se chamada a se pronunciar sobre o drama que se
tem verificado nas partidas, diria: não chores por mim seleção
brasileira!
Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e colabora com os livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013) e Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?.
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