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quarta-feira, 18 de março de 2015

DA PORTA PARA DENTRO

Servilismo doméstico é uma dominação oculta, que subjuga e desumaniza a mulher

Inês Brasão

“Naquela altura nem se punha a hipótese de desobedecer ou contrariar. (...) Eu interiorizava esse sofrimento para mim mas… tomar qualquer atitude de rebeldia… nem pensar. Não me passava pela cabeça. Sofria muito”. Na história da vida privada permanece oculta uma figura feminina central: a trabalhadora doméstica. Relatos como o de Amélia Torcato sobre sua experiência na década de 1960 em Portugal trazem à tona o passado de mulheres cuja vida foi marcada pela pobreza e pelo servilismo no lar.
Gravura de Thierry Fréres descreve a sociedade colonial brasileira em 1835 [Fundação Biblioteca Nacional]

As criadas de servir são ainda hoje associadas à sujidade no corpo e na fala, pela maledicência, inveja, incúria ou amoralidade. Ainda que do seu corpo saia o esforço para instaurar uma ordem de limpeza e asseio, ele é apenas instrumento e via, não pode associar-se a uma obra ou a um produto estável e reconhecível. Este eficaz dispositivo de dominação dificulta o estudo das trabalhadoras domésticas a partir dos limites a elas impostos, das condições de habitação oferecidas, do vestuário e da alimentação proporcionados, dos códigos de relacionamento com os filhos e com a família que as emprega. Sua condição servil tem impacto na vida pessoal, na possibilidade de escolher amigos, de amar, no direito de propriedade sobre objetos pessoais ou sobre a correspondência.

Graças à progressiva validação científica das fontes orais, a memória de Amélia e outros testemunhos ajudam a reconstituir sua história – e ao fazê-lo, reconstituímos a nossa história. Significa valorizar a capacidade reflexiva dos anônimos, como escreveu Peter Burke: “não pode haver história social sem história das ideias, desde que esta frase seja entendida como a história de todas as ideias em vez de a história dos pensadores mais originais de uma determinada época”. A inclusão na história contemporânea de um olhar sobre os regimes de servilismo doméstico é um exercício de desocultação necessário, porque a sociedade luso-brasileira transformou a figura da criada em um anátema. A memória social ocultou o fato de estarmos perante uma massa de trabalhadores – análoga aos regimes de dominação ligados ao tráfico e à escravatura – preferindo uma síntese do seu significado a partir de dimensões sexualizadas da sua ação. Ainda sob o império do direito de punição e proteção dos mais fracos, esta foi uma condição profissional historicamente sujeita a enorme vulnerabilidade.

E continua sendo. A servilidade doméstica não colapsou. Ao contrário, na maior parte dos países ocidentais ela cresceu, como na Itália, na Espanha e na Grécia. Se até pouco tempo atrás as urbes se alimentavam de migrações internas do campo para a cidade, hoje essas trabalhadoras são o fruto mais exposto das novas migrações em escala global. Trata-se de uma geografia que não pode deixar de ser interpretada à luz de um novo-colonialismo entre norte/sul e Ocidente/Oriente. Afloram novas formas de servidão, reproduzindo desigualdades de gênero, desigualdades salariais, racismo e práticas laborais ocultadas pelos ambientes familiares sofisticados dos indivíduos que recrutam novas servas. Na pior versão, o trabalho doméstico representa o uso de um indivíduo para aumentar e expor prosperidade e status familiar: é como um objeto de luxo em forma humana.

Não é fácil resumir a maneira como os movimentos de emancipação feminina se relacionaram historicamente com a figura da trabalhadora doméstica. A princípio, teriam uma bandeira natural de protesto pela dignificação dessa forma de trabalho. No entanto, essa bandeira não foi levantada vezes suficientes. Uma das explicações para a ausência de verdadeiro combate nos discursos feministas pela defesa das trabalhadoras domésticas é que a emancipação da mulher de classe média e classe média-alta dependia da contratação de uma outra mulher para assumir o governo e o cuidado da casa. Nem sempre essa classe média esteve disponível para renegociar formas de exploração, até porque os seus recursos eram escassos e, em contraponto, muito altas (e legítimas) as aspirações de mobilidade social. Esta é uma das questões que trazem mais incômodo às correntes feministas. Mas não a todas: muitas vezes há um efeito de “naturalização” da mulher “feminista” como empregadora doméstica, enquanto para outras mulheres existe uma contradição absoluta nessa condição – seu combate deveria ser deslocado para a defesa efetiva de uma partilha das tarefas domésticas pelo cônjuge e/ou corresidentes.







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