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domingo, 30 de novembro de 2014

O mal-estar do neodesenvolvimentismo


14.11.27_Giovanni Alves_Mal estar no neodesenvolvimentismo[Giorgio de Chirico, Orfeo trovatore

O neodesenvolvimentismo é considerado por nós como sendo um novo modo de desenvolvimento capitalista no Brasil apoiado numa frente política composta, por um lado, pela grande burguesia interna constituída pelos grandes grupos industriais tais como as empreiteiras OAS, Odebrecht, Camargo Correia, etc, e os grupos industriais da Friboi, Brazil Foods, Vale, Gerdau, Votorantim, etc e o agronegócio exportador – todos beneficiados pelo aumento das exportações focado numa agressiva politica de financiamento através do BNDES, voltados para promover as empresas e os investimentos brasileiros no exterior; por outro lado, pelas camadas organizadas do proletariado brasileiro (velha classe operária) e setores populares – incluindo o subproletariado pobre, beneficiados pelo crescimento da economia, redução do desemprego aberto e formalização do mercado de trabalho, oferta de crédito para dinamizar o mercado interno; aumento do gasto público e políticas de transferência de renda via programas sociais (Bolsa-família, Minha Casa Minha Vida, Luz para Todos, etc).
A burguesia interna não é burguesia nacional mas sim a grande burguesia brasileira – grandes grupos industriais, que não rompendo com o capital financeiro interacional, manteriam interesses, não apenas no crescimento do mercado interno, mas na política de financiamento da exportação com recursos do BNDES visando inseri-los na concorrência no plano internacional e tráfico de influencia e acesso a recursos do Estado político-oligárquico herdado pelos governos neodesenvolvimentistas.
Diferentemente do velho nacional-desenvolvimento lastreado na burguesia nacional, o neodesenvolvimentismo baseado nos interesses da burguesia interna se resignou à mundialização do capital renunciando, deste modo, ao projeto de desenvolvimento nacional-popular (o neodesenvolvimentismo é o desenvolvimentismo capitalista na era do globalismo sob a dominância do capital financeiro). Entretanto, setores populares da frente do neodesenvolvimentismo apoiam projeto nacional-popular de desenvolvimento digladiando-se com os interesses da burguesia interna no interior da frente política (por exemplo, os governos neodesenvolvimentistas, ao mesmo tempo que contemplam o agronegócio exportador, incrementam uma política de crédito para o pequeno produtor e assentamentos dos sem-terra; ao mesmo tempo que propicia ganhos aos sindicalismo como o aumento do emprego no setor público e privado, oficialização das centrais sindicais, melhoria salarial do funcionalismo público, recuperação do salário-mínimo, aumento da formalização no mercado de trabalho, o governo neodesenvolvimentista preserva os interesses estratégicos de acumulação e exploração da burguesia interna recusando-se a promover uma recuperação dos direitos trabalhistas e sociais corroídos na década neoliberal. Pelo contrário, mantem-se indiferente à ofensiva patronal que ocorre no Congresso Nacional e STF pela disseminação da nova precariedade salarial no Pais.
Ao promover ascensão política da grande burguesia interna em aliança com setores populares – e sem romper com o bloco de poder hegemonizado pelo capital financeiro internacional – Lula criou o que poderíamos considerar um ornitorrinco político – a frente política do neodesenvolvimentismo – sendo tal arquitetura política o próprio espírito do “lulismo”.
Fazendo um balanço dos últimos dez anos de governos Lula e Dilma, percebemos que ocorreu no país um “choque de capitalismo” que, impulsionado pela oferta de crédito e renúncias fiscais em prol dos monopólios, contribuiu, deste modo, para a expansão dos negócios, especulação imobiliária e acumulação do capital, e por conseguinte, a preservação (e ampliação) de formas arcaicas e modernas de degradação do trabalho no Brasil (o neodesenvolvimentismo – como não poderia deixar de ser – traz em seu código genético, traços da “modernização conservadora” que caracteriza as entificações capitalistas hipertardias e dependentes).
A expansão capitalista na era do neodesenvolvimentismo ocorreu no interior da macroestrutura do capitalismo neoliberal hegemônico no plano do mercado mundial – o que explicita os limites do neodesenvolvimentismo. Neodesenvolvimentismo não significa pós-neoliberalismo. Na verdade, neodesenvolvimentismo expõem densas contradições orgânicas no interior da sua frente política, expostas acima, quanto na relação do governo neodesenvolvimentista com o Estado neoliberal (sociedade política e sociedade civil) herdado da ditadura civil-militar e “modernizado” pelos governos neoliberais (1990-2002). A preservação do Estado político-oligárquico adequado ao capitalismo neoliberal contribuiu para que se mantivesse (e ampliasse) a corrupção da coisa pública com tráfico de influencias e propinas nos negócios operados pelas empresas públicas e grupos industriais da burguesia interna. (vida Operação Lava Jato, etc).
Na medida em que o neodesenvolvimentismo promoveu um “choque de capitalismo” no Brasil, implementou-se o toyotismo sistêmico no plano da produção do capital. É o que temos salientado nos últimos anos: a disseminação do espirito do toyotismo nas práticas de gestão da indústria, serviços e inclusive administração público, a exacerbação do fetichismo da mercadoria e as múltiplas alienações que permeiam a vida cotidiana, a crise de sentido e os carecimentos radicais que inquietam camadas médias (e populares) e a adoção do modo de vida just-in-time contribuíram efetivamente para a inquietação social que caracteriza as metrópoles brasileiras e a agudização da crise do trabalho vivo.
Com o “choque de capitalismo” da era do neodesenvolvimentismo, o capital impulsionou o processo de desmonte da pessoa humana nos seus elementos compositivos (subjetividade, alteridade e individualidade). Na era do neodesenvolvimentismo surgiram novas formas de precarização laboral que se articulam com a nova precariedade salarial caracterizada pelas práticas de flexibilização de jornada, remuneração e contratação do trabalho. Nos dez anos de neodesenvolvimentismo, apesar dos indicadores positivos da macroeconomia do trabalho expostos acima, cresceram a rotatividade do trabalho e a prática da terceirização laboral, expondo a formação de um novo e precário mundo do trabalho. A precarização do homem-que-trabalha ou a degradação da pessoa humana se manifesta no crescimento exponencial dos adoecimentos laborais.
O neodesenvolvimentismo nos governos Lula e Dilma tinha como estratégia política, o lulismo que implementou um “reformismo fraco”, evitando o enfrentamento direto não apenas com o grande capital financeiro internacional que hegemoniza o bloco de poder do capital no Brasil, mas também evitando o enfrentamento com a grande burguesia interna que compunha a frente política do neodesenvolvimentismo. O mote do lulismo era o lema “Lula, Paz e Amor” e o lema do governo era “Um Brasil para Todos”. Na verdade, a grande argúcia política do lulismo foi construir uma estratégia política que deslocasse politicamente frações do bloco de poder do capital – a burguesia interna – para seu projeto de governo com apoio de frações da classe trabalhadora organizada e o subproletariado pobre. O lulismo e a arquitetura da frente política do neodesenvolvimentismo tornaram-se o espírito da governabilidade do projeto político de governo conduzido por um Executivo do PT num país capitalista onde a correlação de forças a favor da classe trabalhadora após o dilúvio neoliberal era bastante desfavorável no plano político-institucional.
Entretanto é preciso salientar que o neodesenvolvimentismo da década de 2000 – os governos Lula – beneficiou-se da conjuntura favorável da economia mundial baseada, por exemplo, na bolha financeira e valorização das commodities. Na medida em que a economia brasileira crescia, reduzia-se o conflito redistributivo entre as classes que compunham a própria frente do neodesenvolvimentismo e inclusive, os conflitos redistributivos no interior das classes dominantes que compunham o bloco do poder do capital. Ao mesmo tempo o realinhamento eleitoral do PT que incorporou a base política do subproletariado pobre, deu-lhe impulso político, não apenas para Lula reeleger-se mas depois, eleger a sucessora Dilma Rousseff. Os indicadores positivos da macroeconomia do trabalho na era Lula compuseram os anos dourados do neodesenvolvimentismo em contraste, por exemplo, com os anos de chumbo do neoliberalismo da década de 1990. A última grande performance do neodesenvolvimentismo foi a política macroeconômica adotada como resposta à crise de 2008, alternativa às políticas de austeridade fiscal e monetária exigidas pela direita neoliberal e adotadas na União Européia.
Entretanto, a conjuntura da economia mundial se inverteu na década de 2010. A bolha financeira estourou em 2008 e o preço das commodities despencam no mercado mundial. Esse é o ponto significativo de inflexão da conjuntura que demarcará os limites do neodesenvolvimentismo nos governos Dilma. A crise financeira de 2008 alterou a dinâmica da conjuntura da economia mundial e prolongou-se, com diferentes modulações, na década seguinte, arrastando-se num longo depresso nas economias centrais (tal como a crise de 1929). No núcleo orgânico do sistema mundial do capital, emergiu em 2010, com vigor, a crise da União Européia impulsionada depois pelas medidas de austeridades neoliberais propostas pela Troika (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Européia), atingindo principalmente, os países do sul da Europa, aumentando o desemprego e a pobreza social, desmontando os rudimentos de Welfare State construídos na era dourada do capitalismo central. A juventude altamente escolarizada que trabalha – o precariado – é a parte mais penalizada das políticas neoliberais de austeridade adotadas pelo capital financeiro nos países do sul da Europa. As perspectivas de recuperação da economia européia em 2013 frustraram-se e percebeu-se depois em 2014, sinas de desaceleração – e inclusive recessão – no carro-chefe da economia européia: a Alemanha. Ao mesmo tempo, apesar de ter saído da recessão., a economia norte-americana cresce a taxas medíocres e a economia japonesa não consegue sair da estagnação econômica de longa data. Mas um acontecimento significativo da primeira metade da década de 2010 não é apenas a persistência da crise européia e o crescimento medíocre da economia dos EUA e estagnação no Japão, mas a desaceleração da economia da China com impactos nos ditos países emergentes.
As perspectivas da segunda metade da década de 2010 não são promissoras – pelo contrário, não existem perspectivas de retomada da crise do capitalismo global, colocando dificuldades candentes para o segundo governo Dilma que herdou os limites do neodesenvolvimentismo. Internamente o bloco de poder do capital no Brasil se rearticula na década de 2010 visando não apenas desgastar e implodir a frente política do neodesenvolvimentismo, mas – no interior da própria frente política do neodesenvolvimentismo – a grande burguesia interna busca isolar e derrotar os setores populares no interior da frente política.
Por um lado, o capital financeiro, fração hegemônica do bloco de poder, que faz oposição sistemática à frente política do neodesenvolvimentista desde 2002, encontrou aliados em setores insatisfeitos da grande burguesia interna, que, num cenário de crise internacional, pressionam o governo Dilma para adotar medidas de redução do “custo Brasil”, isto é, desmonte dos direitos trabalhistas (o movimento parlamentar do PSB e do próprio PMDB indicam sinais de corrosão da frente neodesenvolvimentista).
O mal-estar do neodesenvolvimentismo ocorreu, num primeiro momento, em 2012 e 2013 – quando o governo Dilma confrontou diretamente o capital financeiro reduzindo as taxas de juros e utilizando bancos públicos para política de crédito. Naquele momento, a fração do capital financeiro hegemônica na grande mídia e frações insatisfeitas da grande burguesia interna que não conseguiram apoio do governo para implementar a Reforma Trabalhista visando reduzir direitos dos trabalhadores, sitiam o governo Dilma que encontra a partir de 2013, ano pré-eleitoral, um cenário de desgaste midiático por conta da queda do crescimento da economia devido a contenção de investimentos privados – parte do empresariado nacional num cenário de crise mundial recusou-se a investir; pressões inflacionárias, com novos conflitos distributivos entre as classes e camadas de classes; e pressões sociais por parte de camadas médias, órfãs do neodesenvolvimentismo.
As jornadas das ruas de 2013, movimento massivo impulsionado, por um lado, pelos limites do neodesenvolvimentismo, e por outro, enquadrado pela mídia neoliberal hegemônica, compõem o cenário primordial de mal-estar do neodesenvolvimentismo. As demandas sociais postas pelos protestos de rua não poderiam ser satisfeitos por um governo neodesenvolvimentista constrangido pelas contradições orgânicas da frente política e constrangido pela contradição crucial entre governo neodesenvolvimentista e Estado neoliberal. A estratégia política do lulismo construída num cenário macroeconômico favorável para redistribuição de renda sem confrontar o grande capital (década de 2000), torna-se inócuo num cenário de persistente crise econômica mundial e candentes conflitos distributivos entre classes e no interior das classes .Deste modo, as políticas do neodesenvolvismo encontram na metade da década de 2010 um cenário adverso tanto internamente quanto externamente – embora as duas situações se inter-relacionem.
Por um lado, o aprofundamento da crise do capitalismo global com a desaceleração da China, acompanhada pela desaceleração da economia alemã. No centro capitalista, pressões deflacionárias se contrastam com pressões inflacionárias no Brasil que obrigam o governo a aumentar os juros para contê-las num cenário de desaceleração da economia. Apesar do baixo crescimento, o governo Dilma mantém o gasto público com programas sociais, incomodando os setores da ortodoxia neoliberal não apenas ligados ao capital financeiro mas a grande burguesia interna que exige o ajuste fiscal. A dificuldade de fechar as contas do governo em 2014 expõem as dificuldades de manter as políticas do neodesenvolvimentismo que beneficiaram as camadas populares e ameaçam romper a frente política entre grande burguesia interna e camadas populares.
A corrosão da frente política do neodesenvolvimento em 2014 se explicita tanto no plano do processo sucessório – as últimas eleições para Presidência da República – quanto na própria governabilidade. No plano social, os limites do neodesenvolvimentismo se explicitam pelo menos desde 2013 com a pressão das ruas por reformas sociais. O governo, refém de suas contradições, constrangido pelo Estado neoliberal – e sendo ele próprio artífice do ornitorrinco político (a frente politica do neodesenvolvimentismo), proclama, como palavra de ordem, a Reforma Política visando desatar o nó gordão da governabilidade espúria. Na verdade, para que ocorram as reformas sociais necessárias para a democratização do Brasil torna-se necessária uma nova institucionalidade política capaz de representar efetivamente a vontade popular. Entretanto, o desejo do governo – pelo menos de parte dele, ligado ao setores mais avançados do PT – implica confrontar-se com os pilares da frente neodesenvolvimentista que contém larga representação de frações das classes dominantes do bloco de poder do capital.
As eleições de 2014 significaram no plano da governabilidade maiores dificuldades para o governo neodesenvolvimentista. Por um lado, um Congresso mais conservador resiste a reforma política capaz de representar a vontade popular. Por outro lado, num cenário de desaceleração e inclusive recessão econômica, o projeto de desenvolvimento com inclusão social não se sustenta. Crescer a economia tornou-se a única saída para preservar a frente do neodesenvolvimentismo. Ao mesmo tempo, crescem no interior da própria frente política hegemonizada pela grande burguesia interna, pressões para o governo Dilma adotar a agenda neoliberal que coloca como pressuposto da retomada da economia, um profundo ajuste fiscal que penaliza programas sociais e direitos dos trabalhadores.
A pressão pela agenda ortodoxa não é só da burguesia rentista mas de parcelas da burguesia interna que num cenário de aprofundamento da crise mundial, prepara uma ofensiva contra os direito dos trabalhadores no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal, por exemplo, aprovando projetos de lei da terceirização ampla e irrestrita. A alta corte constitucional no Brasil tornou-se a ferramenta da precarização do trabalho no Brasil vilipendiando a Justiça do Trabalho.
Portanto, no caso do Brasil, a explicitação dos limites do neodesenvolvimentismo leva a um profundo mal-estar social e político, colocando dificuldades candentes para o último governo Dilma, impondo-se, mais do que nunca, a pauta da construção de uma nova frente política hegemonizada pela esquerda capaz de mobilizar a sociedade brasileira e isolar as forças conservadoras e reacionárias no plano institucional. No plano da governabilidade, as imensas dificuldades exigem um salto de qualidade de intervenção política do PT, não apenas no Congresso Nacional, mas principalmente na sociedade civil, onde se dará efetivamente o embate pela preservação da democracia e conquistas populares da era do neodesenvolvimentismo e ampliação para além do próprio neodesenvolvimentismo da satisfação das necessidades sociais. A pauta da Reforma Política com constituinte exclusiva é o sine qua non para todas as reformas necessárias para democratizar o Estado e a sociedade brasileira. Inclusive, sem Reforma Política capaz de resgatar a representação da vontade popular no Congresso Nacional, a democratização dos meios de comunicação de massa não ocorrerá – como não ocorreu nos últimos dez anos de Lula e Dilma.
Entretanto, num cenário de crise da economia, caso o Brasil não cresça capaz de permitir a inclusão social e a redistribuição de renda sem confrontar os interesses do grande capital, a disputa política e a luta de classes podem tornar-se uma tarefa política inglória para setores populares num país onde não existem organizações de massa e direção política de esquerda capaz de hegemonizar o processo social. Como ocorreu em junho de 2013, num cenário de inquietação social e campanha midiática voraz, a direita deve pautar o movimento visando derrubar o governo antes mesmo do pleito de 2018.


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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011).

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