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domingo, 21 de setembro de 2014

Por que a nova política defende velhos pactos?

14.09.11_Edson Teles_Marina anistia 


























 Por Edson Teles.

Recentemente pudemos ver na mídia o anúncio da candidata à presidente da República, Marina Silva, em favor da manutenção da interpretação de que a Lei de Anistia de 1979 tornou inimputáveis os agentes do Estado que violaram os direitos humanos durante a ditadura. Em novembro de 2008, por meio de artigo publicado em jornal da grande mídia, a atual candidata defendeu o oposto: “a tortura é crime hediondo, não é ato político nem contingência histórica. Não lhe cabe o manto da Lei de Anistia. À justiça aqueles que, por decisão individual e intransferível, utilizaram esse instrumento torpe”.

A mudança de opinião não surpreende. Quando surgiu a possibilidade da nova Marina vencer as eleições próximas, seu programa político começou a sofrer remendos de governabilidade. Deixou de condenar a homofobia e de defender o direito ao casamento homoafetivo; mudou de posição sobre a energia nuclear e aproximou-se de antigos agroadversários. Também não surpreende pelo fato de as três principais candidaturas ao cargo de presidente concordarem, é certo que com discursos diferenciados, em não modificar a atual interpretação da Anistia de 79.

Sabemos que o argumento fundamental para a defesa da impunidade sobre os crimes da ditadura repousa na falácia de um pacto de reconciliação nacional obtido com a aprovação da lei naquele ano de plena ditadura. Sim, como sabemos o Congresso era biônico e recém cassado, “eleito” sob regras eleitorais manipuladoras e diante de um bipartidarismo opressor da diversidade de opiniões. Pessoas estavam presas, cassadas, exiladas, mortas e desaparecidas. Corpos sofriam, diretamente ou via trauma, as infindáveis sessões de tortura. Por que então os discursos acerca da lei de 1979, sob uma lógica de governo, apontariam para um pacto? Um grande acordo nacional? Uma reconciliação entre torturadores e seus mandantes com os lutadores pela democracia e contra a ditadura?

Uma resposta unívoca a estas questões certamente é impossível. Contudo, podemos tentar esboçar alguma análise e isto parece se tornar viável a partir do conflito entre o passado e o presente, por meio da atualização destes e daqueles discursos.

É certo que tacitamente o surgimento da Lei de Anistia em fins de 1979 deu àquele período um certo aspecto de acordo, ainda que imposto por inúmeros mecanismos de controle e repressão. Os comitês pela anistia haviam mobilizado milhares de pessoas país afora em favor da anistia aos presos e da responsabilização dos crimes, bem como pela localização dos desaparecidos. A Lei, desta forma, aparentava ser um primeiro passo nestes caminhos. Os exilados voltaram, parte dos presos foram soltos (permaneceram na cadeia os opositores envolvidos com a resistência armada ao regime ditatorial) e, logo após, houve uma pequena liberalização da organização partidária.

A chamada “redemocratização” envolvia lentas aberturas políticas convivendo com os velhos mecanismos de controle e repressão. Algumas leis da ditadura deixavam de existir e outras, como a Lei de Segurança Nacional, eram mantidas ou envernizadas para se camuflarem no novo regime democrático. Em todos os passos da redemocratização – Diretas Já!, Colégio Eleitoral, Congresso Constituinte, primeira eleição direta para presidente, entre outros – o tema da responsabilização jurídica, moral e, especialmente, política com relação aos crimes da ditadura foi silenciado, fossem quais fossem os atores em cena.

Nos anos seguintes, todos os governos democráticos, eleitos já sob a nova Constituição, mantiveram de algum modo o velho pacto. Alguns fizeram leis de indenização, outros avançaram mais ao criarem a Comissão Nacional da Verdade e mudarem a lei de acesso à informação. Porém, ainda que aspectos morais, jurídicos e históricos sobre a ditadura passaram a ser acessados pelas novas gerações e pelas instituições do Estado de Direito, a responsabilização política pelos malefícios da grave ditadura militar – e civil – vivida no país foi escamoteada e, de forma paradoxal, ao mesmo tempo de modo cada vez mais descarado e também mais astuto.

Para não retroagirmos muito, basta atentarmos para as decisões do Supremo Tribunal Federal e outras instâncias deste poder que negam, quase sistematicamente, o acesso à justiça – reinterpretação da lei de 1979 negada no STF em 2010, voto favorável de ministra do STJ contra a condenação do coronel Ustra conquistada no Tribunal de São Paulo, desembargadores alegando a anistia para não autorizar abertura de processos sob demanda do Ministério Público. O Estado brasileiro mantém o silêncio sobre a responsabilização política seja no não cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos – que exige a localização dos corpos desaparecidos e a responsabilização penal –, seja na absurda negação de informações por parte das Forças Armadas, órgão do Estado comandado por um Ministério da Defesa civil desde os anos 90. O Congresso Nacional recusa-se a apreciar o projeto da deputada Luiza Erundina determinando a reinterpretação da Lei de Anistia e, na ocasião de aprovação por acordo de líderes da lei que criou a Comissão da Verdade, repetiu o discurso oficial do antigo pacto fundado na extorquida “reconciliação nacional” (artigo primeiro da lei da CNV).

Citamos apenas algumas ocorrências para deixar evidente que os pactos, tanto o de silêncio sobre a responsabilização política acerca da ditadura, quanto sobre o casamento homoafetivo, as formas agressivas de ocupação do solo no país, entre outros, apesar de antigos, não são de fato “velhos”.

Os pactos têm funções de eficiência pragmática e instrumental. Ao mudar de posição, a candidata da nova política se mostra, ao mesmo tempo, tão velha quanto a Lei de Anistia de 1979, mas também tão nova quanto é a renovação destes acordos. Os velhos pactos renovados traduzem a pobreza da experiência política das instituições da democracia. Enquanto nas casas e ruas as pessoas se amam e vivem juntas independente de sua condição biológica ou as cidades e a política começam a serem transformadas a partir da luta conjunta das várias formas de existência já conhecidas ou que estão sendo criadas cotidianamente, as instituições, leis e pactos se mantém velhos e se renovam em seu conservadorismo.

Se há nas experimentações da vida e do social uma linguagem corporal, física, política em constante e plena inovação, há um discurso e uma ação convencional, pobre e conservadora que visa justamente exercer a função pragmática de controle das novas subjetividades e transformações.

Condenar politicamente as violações do passado seria o mesmo que mandar de volta aos quartéis as tropas estacionadas nas periferias de importantes cidades do país; seria desmilitarizar a polícia e acabar com este quarto poder da República; seria um ataque profundo na repetição insana da tortura nas dependências policiais e carcerárias do presente; seria coibir a impunidade dos agentes do Estado de ontem e de hoje; seria condenar a repressão aos movimentos sociais; seria atacar de frente as discriminações econômica e social contra as periferias.

Talvez pudéssemos inverter a questão inicial deste texto – por que a nova política defende velhos pactos? – e, ao invés de uma interrogação, afirmarmos que a velha política defende os novos pactos travestidos de antigos discursos legitimados pelo processo político da transição controlada da ditadura para a democracia.

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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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