Por Edson Teles.
Recentemente
pudemos ver na mídia o anúncio da candidata à presidente da República,
Marina Silva, em favor da manutenção da interpretação de que a Lei de
Anistia de 1979 tornou inimputáveis os agentes do Estado que violaram os
direitos humanos durante a ditadura. Em novembro de 2008, por meio de
artigo publicado em jornal da grande mídia, a atual candidata defendeu o
oposto: “a tortura é crime hediondo, não é ato político nem
contingência histórica. Não lhe cabe o manto da Lei de Anistia. À
justiça aqueles que, por decisão individual e intransferível, utilizaram
esse instrumento torpe”.
A mudança de
opinião não surpreende. Quando surgiu a possibilidade da nova Marina
vencer as eleições próximas, seu programa político começou a sofrer
remendos de governabilidade. Deixou de condenar a homofobia e de
defender o direito ao casamento homoafetivo; mudou de posição sobre a
energia nuclear e aproximou-se de antigos agroadversários. Também não
surpreende pelo fato de as três principais candidaturas ao cargo de
presidente concordarem, é certo que com discursos diferenciados, em não
modificar a atual interpretação da Anistia de 79.
Sabemos que o
argumento fundamental para a defesa da impunidade sobre os crimes da
ditadura repousa na falácia de um pacto de reconciliação nacional obtido
com a aprovação da lei naquele ano de plena ditadura. Sim, como sabemos
o Congresso era biônico e recém cassado, “eleito” sob regras eleitorais
manipuladoras e diante de um bipartidarismo opressor da diversidade de
opiniões. Pessoas estavam presas, cassadas, exiladas, mortas e
desaparecidas. Corpos sofriam, diretamente ou via trauma, as infindáveis
sessões de tortura. Por que então os discursos acerca da lei de 1979,
sob uma lógica de governo, apontariam para um pacto? Um grande acordo
nacional? Uma reconciliação entre torturadores e seus mandantes com os
lutadores pela democracia e contra a ditadura?
Uma resposta
unívoca a estas questões certamente é impossível. Contudo, podemos
tentar esboçar alguma análise e isto parece se tornar viável a partir do
conflito entre o passado e o presente, por meio da atualização destes e
daqueles discursos.
É certo que
tacitamente o surgimento da Lei de Anistia em fins de 1979 deu àquele
período um certo aspecto de acordo, ainda que imposto por inúmeros
mecanismos de controle e repressão. Os comitês pela anistia haviam
mobilizado milhares de pessoas país afora em favor da anistia aos presos
e da responsabilização dos crimes, bem como pela localização dos
desaparecidos. A Lei, desta forma, aparentava ser um primeiro passo
nestes caminhos. Os exilados voltaram, parte dos presos foram soltos
(permaneceram na cadeia os opositores envolvidos com a resistência
armada ao regime ditatorial) e, logo após, houve uma pequena
liberalização da organização partidária.
A chamada
“redemocratização” envolvia lentas aberturas políticas convivendo com os
velhos mecanismos de controle e repressão. Algumas leis da ditadura
deixavam de existir e outras, como a Lei de Segurança Nacional, eram
mantidas ou envernizadas para se camuflarem no novo regime democrático.
Em todos os passos da redemocratização – Diretas Já!, Colégio Eleitoral,
Congresso Constituinte, primeira eleição direta para presidente, entre
outros – o tema da responsabilização jurídica, moral e, especialmente,
política com relação aos crimes da ditadura foi silenciado, fossem quais
fossem os atores em cena.
Nos anos
seguintes, todos os governos democráticos, eleitos já sob a nova
Constituição, mantiveram de algum modo o velho pacto. Alguns fizeram
leis de indenização, outros avançaram mais ao criarem a Comissão
Nacional da Verdade e mudarem a lei de acesso à informação. Porém, ainda
que aspectos morais, jurídicos e históricos sobre a ditadura passaram a
ser acessados pelas novas gerações e pelas instituições do Estado de
Direito, a responsabilização política pelos malefícios da grave ditadura
militar – e civil – vivida no país foi escamoteada e, de forma
paradoxal, ao mesmo tempo de modo cada vez mais descarado e também mais
astuto.
Para não
retroagirmos muito, basta atentarmos para as decisões do Supremo
Tribunal Federal e outras instâncias deste poder que negam, quase
sistematicamente, o acesso à justiça – reinterpretação da lei de 1979
negada no STF em 2010, voto favorável de ministra do STJ contra a
condenação do coronel Ustra conquistada no Tribunal de São Paulo,
desembargadores alegando a anistia para não autorizar abertura de
processos sob demanda do Ministério Público. O Estado brasileiro mantém o
silêncio sobre a responsabilização política seja no não cumprimento da
sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos – que exige a
localização dos corpos desaparecidos e a responsabilização penal –, seja
na absurda negação de informações por parte das Forças Armadas, órgão
do Estado comandado por um Ministério da Defesa civil desde os anos 90. O
Congresso Nacional recusa-se a apreciar o projeto da deputada Luiza
Erundina determinando a reinterpretação da Lei de Anistia e, na ocasião
de aprovação por acordo de líderes da lei que criou a Comissão da
Verdade, repetiu o discurso oficial do antigo pacto fundado na
extorquida “reconciliação nacional” (artigo primeiro da lei da CNV).
Citamos
apenas algumas ocorrências para deixar evidente que os pactos, tanto o
de silêncio sobre a responsabilização política acerca da ditadura,
quanto sobre o casamento homoafetivo, as formas agressivas de ocupação
do solo no país, entre outros, apesar de antigos, não são de fato
“velhos”.
Os pactos
têm funções de eficiência pragmática e instrumental. Ao mudar de
posição, a candidata da nova política se mostra, ao mesmo tempo, tão
velha quanto a Lei de Anistia de 1979, mas também tão nova quanto é a
renovação destes acordos. Os velhos pactos renovados traduzem a pobreza
da experiência política das instituições da democracia. Enquanto nas
casas e ruas as pessoas se amam e vivem juntas independente de sua
condição biológica ou as cidades e a política começam a serem
transformadas a partir da luta conjunta das várias formas de existência
já conhecidas ou que estão sendo criadas cotidianamente, as
instituições, leis e pactos se mantém velhos e se renovam em seu
conservadorismo.
Se há nas
experimentações da vida e do social uma linguagem corporal, física,
política em constante e plena inovação, há um discurso e uma ação
convencional, pobre e conservadora que visa justamente exercer a função
pragmática de controle das novas subjetividades e transformações.
Condenar
politicamente as violações do passado seria o mesmo que mandar de volta
aos quartéis as tropas estacionadas nas periferias de importantes
cidades do país; seria desmilitarizar a polícia e acabar com este quarto
poder da República; seria um ataque profundo na repetição insana da
tortura nas dependências policiais e carcerárias do presente; seria
coibir a impunidade dos agentes do Estado de ontem e de hoje; seria
condenar a repressão aos movimentos sociais; seria atacar de frente as
discriminações econômica e social contra as periferias.
Talvez
pudéssemos inverter a questão inicial deste texto – por que a nova
política defende velhos pactos? – e, ao invés de uma interrogação,
afirmarmos que a velha política defende os novos pactos travestidos de
antigos discursos legitimados pelo processo político da transição
controlada da ditadura para a democracia.
***
Edson Teles
é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor
de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
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