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sábado, 20 de outubro de 2012

Olá Professor, há quanto tempo ...




Por João Antônio*
Texto extraído do livro Casa de Loucos, 1976.
(Ed. Civilização brasileira)



Nono andar.

Havia policial à paisana, grisalho e blusão fora da camisa na porta de entrada do edifício e com ele precisei deixar tudo, embora fosse avisando, tinha hora marcada, seis da tarde, com o professor. O homem me pegou o nome, ar, endereço, barba por fazer, a que vinha e quanto tempo ia demorar. Percebo. O professor está sendo sondado à risca, todos os movimentos. Então, abri o braço, como se já fosse desguiar:

- Meu senhor, se isso vai criar qualquer tipo de problema, não visito ninguém. Não estou aqui porque quero, estou a trabalho. Não quero galho, até já estou querendo ir embora.

O grisalho de blusão claro fora da camisa provavelmente julgou estar diante de um maluco. Acho, nessas ocasiões, melhor botar a boca no mundo ou fechar o bico de vez. Assim, passo por pirado e me tiram o olho de cima. O recurso, reconheço, não é tiro e queda. Já vi policiais batendo em doente mental. E quando a polícia mata alguém, a cidade não põe luto.

O policial garatujou, com esforço, errando duas vezes os meus dados num caderno de anotações. Não era um homem habituado a escrever e devia tomar o registro de todas as visitas do professor.

Peguei o elevador, pé atrás.

O professor havia envelhecido pouco, apesar de nunca tê-lo visto - era o mesmo homem das fotografias, onze anos antes, ministro, antes de o cassarem e de ir para o exílio. Lépido, miúdo, baixinho, rosto escanhoado, olhos firmes, vivos, alegria das pessoas dinâmicas, coisas que não tenho.

Com sotaque nosso, blusão fora da calça, me atendeu de pés no chão no seu apartamento do Posto Seis, em Copacabana. Aquele, o homem. Eu lhe apertei a mão, duas vezes; a Segunda, ele notou, para lhe olhar nos olhos.

Tímido, pelo menos a princípio chamando de senhor um homem de pés no chão do apartamento amplo, ele percebendo que eu dissimulava mal a admiração. Leve, rápido, não fumando, foi pedir café à empregada, ofereceu suco, preferimos café. Pedi para fumar. Grossura - claro que aquilo o incomodava.

Aí, lhe peguei num lance, o tamanho, personalidade. Concordou discordando, como se dissesse: "ô, rapaz, eu já me esqueci de fumar e, você vem me lembrar - tenha jeito, dê-se ao respeito". Falou como um mais velho:

- Fuma. Você pode.

Achou graça e começou a falar, engraçada, pitorescamente. Curioso alguém se interessar em como ele havia vencido o câncer. Despejou tudo de uma vez, quase tudo. Ou: o trânsito ridículo de médicos estrangeiros que lhe escondiam a doença, dizendo tuberculose. Ridículos, principalmente em Paris, onde ele exigia ver e ouvir os resultados de todos os exames. As pessoas evitavam o nome da doença como se evitassem a morte. Era um câncer mortal. Havia percebido pela primeira vez que ele era mortal e, como amasse a vida, sentiu que não iria ter nada para colocar no lugar. Afinal, câncer era coisa que podia acontecer a um primo seu, a um parente ou contra-parente distante, ao vizinho do prédio, não a ele. Nunca havia pensando, sentido, amargado, que era mortal. Confessa que lhe deu medo. E pressa. Urgente fazer as coisas, terminar um livro. Resolveu jogar franco com o médico parisiense: "O senhor pode me dar três meses de vida, lúcido?". Nada. Tinha de operar. "O senhor tem uma bomba no peito". A bomba iria explodir a qualquer momento, tomaria conta do corpo todo. Não havia ilusões, no entanto. Mesmo operando, um fato líquido e certo, noventa e cinco por cento das pessoas operadas de câncer pulmonar não escapam. Não operasse, não ficaria nem entre os ralos cinco por cento restantes. Até lhe dizerem que era câncer, passou por vários dribles dos médicos franceses. Um deles, dissimulou, com jeito, fazendo o exame clássico de tuberculose pulmonar, e o professor teve de pronunciar, repetidamente, trinta e três, em francês. Aí, o médico cometeu uma ingenuidade de bom-tom, verificando-lhe os olhos: "o senhor está pálido". O espírito brasileiro do professor universitário cortou rente com uma coisa que causa vexame ao espírito francês: "não, estou muito pálido. Na verdade, sou um mulato". Paris é o grande centro da medicina na Europa e já tinham tudo para, em três dias, operá-lo. Mas preferiu operar no Brasil. Os franceses torceram o nariz, escandalizados.

Os homens que o deixaram entrar aqui, contavam com sua morte infalível, inadiável, cancerígena. Por isso, exilado político de 64, foi deixado vir. O apartamento de sua propriedade, na rua Souza Lima, estava ocupado, alugado. Então, o permitiram num hotelzinho do Leme, sob vigia permanente. Ridículo, um homem tão miúdo e grande, guardado pelos profissionais da polícia, pequenos, broncos, patoludos. Miudinho, não se sabe tenha aprendido karatê, aikidô, kung fu ou judô lá no estrangeiro por onde andou, lecionou, trabalhou, sobreviveu estes anos todos, onze. Ele, falando, procura tirar a prisão domiciliar de letra, cariocamente. Humorado, recebe e responde à estupidez que o vigia. Oficialmente, comunicam-lhe, está protegido contra atos terroristas. Olhos miúdos, cara limpa, aconselha:

- Ótimo. Mas me protejam só a cinco metros de distância, pelo menos.

Câncer maldito mesmo. Às vezes, as pessoas que o cercavam, amigos, um irmão, parentes, amigas, botavam uma cara de pavor. Pareciam que tinham a doença e não ele, a um passo da operação delicadíssima. Noventa e cinco por cento morriam.

A diferença entre ele e os outros, uma só, esta: os outros pensaram que 95% morrem; ele, procurou encarar o outro lado - 5% se salvam. E tratou de se meter entre os 5%. Provavelmente todos, além dos homens do governo, contavam com sua morte. Os amigos, os admiradores, o geral das criaturas. Todos a um.

Ele está enroscado na poltrona e, neste momento, sou mais entrevistado que ele. Um brilho nos olhos miúdos, notando os ritus da minha cara e imediatamente jogando na linguagem um palavrão leve, uma descida para a gíria. Tem o domínio da conversa, detém o poder da mudança do tom e rumo dos assuntos. Inteligente nessa manobra, assume um liderança natural: o núcleo da conversa está em suas mãos. Sempre.

Revelou, sem modéstia. Não acreditava em suas habilidades literárias a ponto de produzir algo útil ou de exemplaridade sobre o capítulo do câncer, provavelmente o mais cavernoso (uma caverna no peito) de sua vida.

- Mas se o senhor escrevesse como fala...

As pessoas não escrevem como falam. Comportam-se, disciplinam-se, empostam-se. Há imposturas, a naturalidade vai embora, ninguém deixa passar a chance de parecer inteligente, espirituoso, um homem que, de certo modo, está acima dos outros.

- Por que você está me chamando de senhor?

Falando, é colorido, vivo, direto, humorado. Tem o poder da condução, o que já foi dito. É líder natural, está em tudo e, se não mostrou essa qualidade ao longo dos anos, terá sido por outro motivo que não a vocação.
Veio uma amiga, depois da operação, lhe disse que ele nem supunha quantos amigos o queriam bem e quantas as pessoas, das mais diversas faixas, o admiravam. Naquela tarde, por exemplo, só se falava dele no cabeleireiro.

- De mim ou do câncer?

Está aí. Mas não havia ironia, hostilidade, amargura na observação. Era o que era. Por mais que ele fosse assunto, o câncer seria repercussão nacional maior que ele.

Os homens do governohaviam mandado distribuir nota oficial, câncer. Indisfarçável, a crueldade seca da nota. Neste mundo todo, a doença queria dizer morte. Certamente contavam fazer o seu enterro. Depois, iriam recolher uma boa imagem. Foram bonzinhos, humanos, democráticos e cristãos - respeitavam a condição humana. (Embora não respeitassem a liberdade de pensamento e a ideologia de ninguém.)

Um policial o acompanha, aonde vai. Vai à praia, o protetor segue. Vai a um chopinho com amigos, no calçadão de Copacabana, ali pelos lados do Posto Seism atrás vai o policial. Atravessa o calçadão, ganha as areias, senta-se. O protetor fareja. Procura as águas, o protetor se levanta, avança na vigia. Lá no hotelzinho do Leme, uma vez, um desses policiais que o guardam dia e noite, o perde. Quando volta ao hotel, o policial está verde:

- Professor, eu pensei que tivesse perdido o senhor.
- Sim? Mas eu estou vivo, olhe aqui, não está vendo?

O policial cheio de pavor. Confessou que se o professor sumisse, morresse ou lhe houvesse acontecido algo, certamente lhe iriam botar num pau-de-arara e seria torturado até que dissesse tudo o que sabia e também o que não sabia.

O professor, sério. Rosto crispado pela primeira vez em mais de uma hora de conversa. Que regime é esse em que até os policiais que representam as mais altas autoridades da segurança, têm medo de serem torturados? O que acontecerá, em torturas, aos pobres-diabos que não são policiais, nem gente de confiança do governo?
Torturados até o limite do desmaio. Acordados a água fria, a tipos especiais de choque, a ponta de cigarros, sabe-se lá. Refeitos a comprimidos, recomeçado o interrogatório. E a tortura.

Sérios, os dois. De vez em quando olhávamos, maquinalmente, para a porta de entrada do apartamento. Devíamos falar naturalmente aquelas coisas ou baixar o tom de voz?

Faz menos de dez dias, um advogado da Rua Uruguaiana, indo a seu escritório, foi seqüestrado por homens que se disseram do DOPS. Levado ao Alto da Boa Vista, encapuçado, interrogado por policiais encapuçados. Não tinha nada a declarar. Os torturadores preferem, segundo o advogado, esse tipo de homem - o que não tem nada a declarar. Foi batido, surrado, submetido a choques, metido em cela que mal cabia um homem. Ameaçaram o homem que não tinha nada a contar: trariam sua mulher e ele iria ver as coisas. Abobalhado, dizendo nada ter a declarar, concordou. Trouxessem sua mulher, fizessem o que bem entendessem. Havia outros presos, sofrendo iguais torturas, gritos à noite e barulhos de trambolhões pesados. Sofreu três dias, aturdido ou inconsciente, o fizeram assinar uma porção de papéis de que não se lembra. A bestialidade não pode ser contada diante de mulheres ou crianças. Os encapuçados o soltaram depois, com esta frase:

- Passe bem, doutor, precisando de alguma coisa é só nos procurar.

Depois de três dias de tortura debaixo da mesma pergunta:
- Qual é o seu codinome?

Saiu. Procurou a Ordem dos Advogados do Brasil, catou os jornais, um único, O Estado de S. Paulo, publicou uma nota na edição de 8-3-1975. Mas há outro advogado sumido, provavelmente seqüestrado, mesmas condições.

O professor universitário me ouve, olhos baixos. Olhamos, quando em quando, para a porta da entrada do apartamento. O Ministro da Justiça diz que não há tortura no país.

Há medo generalizado no país, o que certamente será resultante de tanto progresso, fartura, liberdade, ordem, igualdade, segundo a ótica dos press releases oficiais. Lá fora, na França ou na Inglaterra, dizem que quando se vê um policial, imediatamente se tem a sensação de segurança e que se fica mais à vontade. Aqui, ontem, passando diante da PMGB, da Rua Toneleiros, procurei a outra calçada da rua, evitando olhar os fardados e andei depressa. Há dez anos vimos neste crescendo: policiamento; policiamento ostensivo; policiamento muito ostensivo. Hoje, temos repressão ostensiva. Seqüestros indiscriminados, interrogatórios com tortura, meios bestiais e desrespeito completo pela pessoa humana. Há tanto policial, principalmente em São Paulo, que já não os notamos mais. Estamos calejados. Estamos empedernidos com a bestialidade. Convivemos com coisas terríveis e não estaremos ficando frios, nós, um povo sentimentalóide, outrora vivendo num país cordial, onde havia, segundo um poeta, escola risonha e franca?

O professor diversifica assuntos, passamos aos desenhos de Poty, humor, jornalismo, indianismo, vida universitária, futebol, polícia, sexo, violência, literatura, futebol de novo. Atiçadamente criativo, imaginoso, me sugere, rápido, duas ou três idéias para publicação nova em que trabalho. Baixinho, poucos cabelos brancos, rosto escanhoado, enroscado na poltorna, descalço, falando simples e bem. Um homem que libera o espírito do interlocutor, embora o envolva com liderança. Literalmente, como se diz, é um otimista.
Idéias loucas tem e gosta, inda mais dos efeitos. Tem carioquice ao contá-las, saboreia os efeitos. Narrador hábil, extrapola.

Nunca pensava que pudesse e teve de deixar o cigarro. É o melhor dos vícios, nem é um vício. Chamar o cigarro de vício menor é outra impropriedade. Quando vivermos numa sociedade realmente civilizada, teremos cigarros de tudo: de proteínas, vitaminas, degustações variadas, leves e pesadas. Haverá uma geração de homens e mulheres incrivelmente elegantes, nenhuma barriga, ombros largos, nenhuma celulite. Pois, cigarros alimentícios, motivarão a chamada digestão sem excrementos. Veja, a princesinha da Inglaterra comendo chocolate. Todos sabem que ela comerá e depois fará um cocô fedido na privada real. Mas um vagabundo da Galeria Alaska fuma um cigarro e não produzirá nenhum dejeto. Tomamos café, mas café é só boca de pito, para acender a vontade do cigarro. O bom da comida fina e regalada é o cigarro que vem depois. Como é bom o cigarro, depois de duas horas de cinema em que não se pode fumar. O cigarro, como é bom. Trepar também é bom, o melhor dos esportes, o que exercita e mexe diretamente com tudo, músculos, cabeça, tronco e membros. Bobagem, essa história de agora se praticar judô, karatê, ioga. O exercício sexual é mais completo. Voltando ao cigarro, ele não é um vício, é um companheiro, uma segurança psicológica. O professor fumava três maços por dia, hoje lamenta que o cheiro do cigarro, lhe chegando, lhe faça mal. Até o beijo na boca de mulheres, naquele tempo, era melhor. Não lhes sentia o gosto do cigarro.

Trepar é bom para a saúde. Mas o bem-bom é aquele espaço entre uma trepada e outra, longamente, na hora neutra em que não se sabe se continuar ou não e, então, fuma-se um cigarro. Ah, entre uma e outra, o cigarro. O mal é que contém nicotina. Nas civilizações futuras, o homem pensará em cigarros de proteínas, vitaminas e sais minerais. Serão todos fortes e limpos, espadaúdos e sem barriga, maravilhosos e enxutos. O cigarro não mais um vício e, sim, um companheiro de utilidades.

Pensavam que ele morreria. De repente, seu nome pula nos jornais e revistas, está escrevendo coisas. Estão longe de supor tudo sobre o homem e seu despojamento. Provavelmente estejam com medo de suas verdades. E não dele, criatura miúda, naturalmente bem-humorada, ar fundamentalmente brasileiro, cara limpa.

Voltamos á vida policial da cidade. Há um mistério em Ipanema com uma garota que matou dois namorados. A conversa dá para a ruça, de novo. Ele não vai visitar os amigos, seria o mesmo que entregá-los ao DOPS. Telefona, marca encontros na porta do prédio. E sai para conviver com eles nos bancos do calçadão do Posto Seis ou nos chopes dos bares. Atento, um policial se intromete e diz que o vai proteger de algum ato terrorista ou subversivo.

- Ótimo. Mas fique a cinco metros de distância, pelo menos.

Olha-me. Passei duas horas em seu apartamento e não ouvi uma lamentação do homem cassado, perseguido, sofrido, um pulmão fora do peito, o câncer jogado fora, abriram-lhe todo o peito na operação.

Mais alegre, descontraído e saudável que eu, o professor universitário Darcy Ribeiro disse:

- A gente não pode dar trela. Senão, os policiais sentam à mesa com a gente e tomam conta.


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Biografia resumida

Darcy Ribeiro, antropólogo, educador e romancista, nasceu em Montes Claros (MG), em 26 de outubro de 1922, e faleceu em Brasília, DF, em 17 de fevereiro de 1997.
Diplomou-se em Ciências Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1946), com especialização em Antropologia. Etnólogo do Serviço de Proteção aos Índios, dedicou os primeiros anos de vida profissional (1947-56) ao estudo dos índios de várias tribos do país. Fundou o Museu do Índio, que dirigiu até 1947, e colaborou na criação do Parque Indígena do Xingu. 
Escreveu uma vasta obra etnográfica e de defesa da causa indígena. Elaborou para a UNESCO um estudo do impacto da civilização sobre os grupos indígenas brasileiros no século XX e colaborou com a Organização Internacional do Trabalho na preparação de um manual sobre os povos aborígenes de todo o mundo. 
Organizou e dirigiu o primeiro curso de pós-graduação em Antropologia, e foi professor de Etnologia da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (1955-56).
Diretor de Estudos Sociais do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais do MEC (1957-61); presidente da Associação Brasileira de Antropologia. Participou com Anísio Teixeira, da defesa da escola pública por ocasião da discussão de Lei de Diretrizes e Bases da Educação; criou a Universidade de Brasília, de que foi o primeiro reitor; foi <inistro da Educação e chefe da Casa Civil do Governo João Goulart. Com o golpe militar de 64, teve os direitos políticos cassados e se exilou.
Viveu em vários países da América Latina, conduzindo programas de reforma universitária, com base nas idéias que defendeu em A Universidade necessária. Professor de Antropologia da Universidade Oriental do Uruguai; foi assessor do presidente Salvador Allende, no Chile, e de Velasco Alvarado, no Peru. Escreveu nesse período os cinco volumes dos estudos de Antropologia da Civilização (O processo civilizatório, As Américas e a civilização, O dilema da América Latina, Os brasileiros - 1. Teoria do Brasil e Os índios e a civilização), nos quais propõe uma teoria explicativa das causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos.

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