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terça-feira, 2 de outubro de 2012

Novo Judiciário para novos tempos


por Joycemar Lima Tejo, Advogado pós-graduado em Direito Público e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros.



1. Iniciando: duas situações nada hipotéticas
Pensemos na seguinte situação. Parte da manhã, as varas do TRT da 1ª Região abarrotadas. Corredor cheio, o advogado a duras penas abre passagem até onde está seu cliente e suas testemunhas, uma delas moradora de outro município. Advogado e parte trocam impressões, aguardam o pregão e, uma vez na sala de audiências, sequer são convidados a sentar: a juíza informa, eles de pé mesmo, que o cartório não observara uma suspeição autodeclarada e, ao invés de encaminhar os autos ao substituto, mantivera a audiência na pauta da magistrada impedida- e apenas no dia perceberam o imbróglio. Resultado: não haveria audiência. Os autos seriam enviados ao substituto e, sabe-se quando, seria designada nova data. Sequer um "lamento!", sequer um pedido de desculpas; ao advogado e à parte nada restava que virar as costas (estavam de pé, mesmo) e tomar o "caminho da roça", no caso da testemunha literalmente, ele que veio de outra cidade em vão.
Outra situação, outro dia. Câmara Cível do TJ/RJ, sala lotada de advogados, todos os desembargadores em seus lugares. A sessão tem início. O advogado, ao ouvir chamarem seu feito, assoma à tribuna. Já vestira a beca quando o presidente anuncia: houve um erro na numeração da pauta- os autos lá não se encontravam. O feito seria, então, retirado de pauta, para designação de nova sessão sabe-se quando. Sequer um "lamento!", sequer um pedido de desculpas. E "aquele abraço", enquanto já convocavam o processo seguinte, sem nem esperar o advogado retirar a beca.
Os dois episódios acima são verídicos. E estão longe de serem situações isoladas ou excepcionais; diariamente se repetem nos tribunais do País, em todas as instâncias, em todos os lugares, transparecendo dois males: ineficiência do Judiciário e falta de cuidado para com o jurisdicionado.

2. O papel do Judiciário no neoconstitucionalismo
As modernas leituras dão às constituições status qualificado em relação à concepção outrora vigente; ao invés de serem consideradas meras cartas de princípios, documentos de teor puramente político sem nenhum poder vinculante, hoje as constituições são entendidas como dotadas de força normativa. As disposições programáticas saem do campo da recomendação, da intenção- da "mera orientação aos órgãos legislativos(1)-, e se convertem em comandos a serem exigidos do poder público (2).
Mas dispositivos, não raro, são desrespeitados. Hermes Lima (3) assim coloca a questão:
Surge (...) um problema importante: a quem cometer a defesa da Constituição? É o problema formulado na interrogação clássica: 'quis custodiet custodes?' - a melhor defesa estará num regime de liberdade política - liberdade de pensamento - e na formação moral e intelectual dos governantes.
Essa saída, quase ingênua -o que não é demérito, é preciso sonhar- não basta, contudo. Quando surge a necessidade de defesa da Carta, é ao Judiciário que se deve recorrer, o Judiciário, o guardião da Constituição. A proeminência que a Constituição adquire irá reverberar na proeminência do próprio Judiciário; a eficácia daquela depende da atuação deste, haja vista a postura recalcitrante dos administradores e legisladores em tornar concretos os dispositivos constitucionais.
Tal relevo institucional, como é intuitivo, deve ser acompanhado de perto pela melhora qualitativa dos serviços prestados pelo Poder. "Serviços" no sentido lato; não se está comparando aqui o Judiciário a um prestador de serviços, nos moldes da iniciativa privada, aliás, muito pelo contrário, há que repudiar a mentalidade que quer dar ao Judiciário ares de "empresa privada", com apelos de ordem econômica e robotizada à eficiência. O Judiciário é um Poder da República, detentor típico (os demais Poderes o são atipicamente) da função jurisdicional. Não pode ser gerenciado sob a ótica privatística e mecanizada, que esvazia sua função social, transforma o jurisdicionado em cliente e os serventuários -a grande massa na linha de frente cotidiana- em máquinas. Ao contrário, é preciso um Judiciário "republicano e legitimado pela soberania popular(4), em outras palavras, Poder de destaque nesses novos tempos que é, deve estar à altura da tarefa que lhe compete.

3. O papel do Advogado
O desrespeito ao advogado pressupõe, antes, o desrespeito ao jurisdicionado, que aquele representa- conforme a própria etimologia da palavra, "do latim advocatu, de ad, para junto, e vocatus, chamado, invocado, ou seja, aquele que é chamado para ajudar(5). E quando o Judiciário desrespeita o jurisdicionado, desrespeita a sua própria razão de ser; a justiça é para a sociedade e não vice-versa. Superada historicamente a lei do mais forte, é ao Estado-juiz que a parte recorre para a tutela de seus direitos; sem entrarmos aqui em considerações sobre a origem do Estado -mas podemos adiantar que é fruto da luta de classes e desaparecerá com ela- não podemos esquecer que o Ente existe (em tese) para garantir o equilíbrio social. Se não funciona, ou funciona defeituosamente, deixa de cumprir sua finalidade.
A advocacia, como se depreende do cotejo entre os artigos 133 da Constituição e 2°, §1° da lei 8.906/ 94 (Estatuto da Advocacia) é uma função essencial à justiça em cujo ministério privado se presta serviço público e se exerce função social. A definição já basta para mostrar a relevância da atividade que, além disso, se encontra em paridade em relação às carreiras do Ministério Público e da Magistratura (art. 6º, lei 8.906). Quaisquer violações às prerrogativas de advogado são, portanto, não apenas ilegais como ferem frontalmente a Carta Magna. E os advogados não têm sido violados apenas em suas prerrogativas específicas; ao contrário, têm aturado vilipêndios que a nenhuma categoria profissional deveriam ser impostos. O advogado militante, o "operário do direito", o "artesão dessa profissão jurídica"(6) cotidianamente enfrenta o panorama das serventias judiciais abarrotadas, dos processos estagnados, das audiências impontuais, para não falar das mais diversas idiossincrasias por parte dos membros do Poder, dentre as quais a arrogância é sem dúvida uma das mais usuais.
Como se vê, é hostil o ambiente no qual o advogado, na defesa dos interesses do jurisdicionado, se movimenta. Mas o ambiente onde as partes vêm pedir a realização de seus direitos mais fundamentais, conforme previstos na Constituição, poderia ser tudo- menos hostil.

4. Qualidade a aprimorar
Não se pode negar que houve avanços dentro da máquina do Judiciário, graças por exemplo ao advento do Conselho Nacional de Justiça e do uso cada vez mais disseminado da tecnologia (incluindo aí a virtualização de processos, no bojo da lei 11.419 de 2006). Mas ainda há muito por fazer.
A busca por eficiência, como falado acima, não pode cair no equívoco de dar ao Judiciário tratos de empresa privada, coisa que não é. É um Poder da República exercendo uma função estatal, e como tal deve fugir da "robotização" impessoal, avaliada por estatísticas frias. Fazer justiça, promover a jurisdição (jurisdictio, "dizer o direito") requer um trato diferenciado para com o indivíduo, coisa umbilicalmente oposta à mentalidade empresarial, cujo fim é o lucro. Em outras palavras: não se pode gerenciar o Judiciário sob a ótica da economia de mercado, como vemos ocorrendo em inúmeros entes públicos pelo Brasil afora, cada vez mais "propriedade privada".
É preciso, ainda, dar o devido valor ao serventuário, aquele que, ao lado do advogado, está nas trincheiras cotidianas. Longe do conforto dos gabinetes, o serventuário atendente de balcão também é outra vítima da ineficiência da máquina judiciária, e isso cedo ou tarde cobra seu preço, seja através de doenças decorrentes do stress seja pela deserção rumo a outros concursos públicos. É importante reiterar: quando se fala que o Judiciário deve atentar mais para o elemento humano, isso se aplica não apenas aos advogados e jurisdicionados, mas também a seu próprio servidor.
Aos magistrados, igualmente, é mister uma mudança de comportamento. A já citada arrogância ("juizite" no jargão cotidiano dos fóruns) deve dar lugar à compreensão, pelo magistrado, de que se trata, ele, de mais um servidor público (em sua pura acepção), instrumento para a realização dos direitos e garantias mais fundamentais; existe para servir e não para ser servido (7).
De resto, recursos -refiro-me agora aos econômicos- há. Os tribunais arrecadam enormidades. É preciso não suntuosidade e desperdício, e sim a racional aplicação, com sobriedade.

5. Conclusão
Estando o Judiciário elevado a posição de destaque nos novos tempos de abordagem constitucional, deve estar em condições de cumprir a tarefa histórica que lhe é imposta. Isso requer mudanças de paradigma, como o maior respeito dado ao advogado -que como dito exerce uma função essencial à justiça e faz jus a tratamento condizente- e ao jurisdicionado, que é a própria razão de ser do Judiciário- que existe para a sociedade e não o contrário. Também é preciso que se valorize o serventuário, principalmente aqueles na base da estrutura judiciária, cujo esforço cotidiano -não raro em condições precárias- é imprescindível para que a máquina funcione. Dos magistrados é esperada uma nova mentalidade, não mais encastelada em torres de marfim e sim "pé no chão", redescobrindo-se como servidores públicos, isto é, na tarefa de servir ao público. Também são necessários investimentos em infraestrutura e tecnologias, e recursos para isso os tribunais possuem.
A roda da História não para. Novos paradigmas para novos tempos; caso contrário, o Judiciário estará falhando em sua função constitucional, apesar de toda retórica e de frias estatísticas porventura dizendo o contrário.

Notas
(1) Haradja Leite Torrens, "Hermenêutica jurídica e paradigmas interpretativos. Perspectivas e fundamentos de aplicação da teoria integrativa de Ronald Dworkin em face da ordem jurídica brasileira". p.107. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004.
(2) Tornando obsoleta, nesse sentido, a tradicional classificação de José Afonso da Silva, em seu "Aplicabilidade das normas constitucionais" (7.ed. São Paulo: Malheiros, 2007), com a distinção entre normas de eficácia plena (desde já produzindo efeitos), contida (desde já produzindo efeitos mas podendo ser restringida a posteriori) e limitada (no aguardo de atuação estatal para que possa produzir efeitos). Não haveria que se falar em eficácia limitada (onde se inserem as normas de caráter programático), pois, ao contrário, todas as normas constitucionais deveriam ser consideradas em sua aplicabilidade imediata.
(3) Em sua clássica "Introdução à Ciência do Direito", p.311, 29.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989.
(4) Antonio Souza Prudente, "O perfil constitucional do juiz republicano no projeto do novo CPC do Brasil". Em http://bit.ly/GHfjqE, acesso em 26 de março de 2012.
(5) Marcus Cláudio Acquaviva, "Dicionário jurídico brasileiro Acquaviva", pp. 134- 135. 12.ed. São Paulo: Jurídica Brasileira, 2004.
(6) Expressões de Eros Grau, em apresentação ao "Conselhos aos jovens advogados" de Benedito Calheiros Bomfim (Niteroi: Impetus, 2008).
(7) Essa "falta de humildade" por parte da magistratura aparece também, por exemplo, na supervalorização da jurisprudência em detrimento da doutrina, como Lenio Luiz Streck denuncia em "Crise de paradigmas", que pode ser lido aqui - http://bit.ly/GYqtrv
Revista Jus Vigilantibus, Quinta-feira, 20 de setembro de 2012

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