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domingo, 2 de setembro de 2012

Em entrevista, antropólogo comenta a guerra aos pobres em São Paulo



Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSCar, Adalton Marques estudou em seu mestrado o “proceder”, conjunto de regras fluidas e não escritas que definem a caminhada de um preso em São Paulo. Buscando entender “o crime” a partir do que pensam e fazem seus próprios membros, e não através do uso de fontes oficiais ou de comparações com instituições estatais, Adalton realizou um trabalho muito mais amplo, fundamental para a compreensão da atual conformação do Estado (penal, racista e genocida) brasileiro.
Devido à profundidade de suas reflexões, o pesquisador credenciou-se como figura importante neste debate, rompendo felizmente o isolamento da pesquisa acadêmica e colocando-a em diálogo com movimentos sociais e meios de comunicação. Recentemente, participou da elaboração do artigo A quem serve negar o impacto do PCC? , na revista Caros Amigos, e concedeu entrevista ao portal Carta Maior, onde aponta, por exemplo, que: “contra os pobres que não entrarem no mercado informal, que não aplacarem suas frustrações e aguardarem a assistência (bolsa-qualquer coisa) ou que não investirem todas as suas forças em suas próprias qualificações profissionais, ou seja, aqueles que ‘entrarem para o crime’, nossa política de segurança reserva duas medidas: alternar os dias da vida entre a prisão e as ruas (se não for tido como um grande ‘bandido’) ou ser eliminado pela polícia, por grupos de extermínio ou por outros ‘bandidos’”.
Como a entrevista foi publicada apenas parcialmente, Adalton permitiu ao DAR o privilégio de divulgá-la na íntegra, para o que o agradecemos muito, e também à Carta Maior.

“Pretos, pobres e periféricos (3 Ps): essa é a sigla da nossa política de extermínio”
Caio Sarack

Carta Maior - Muito se fala de um equilíbrio precário entre o poder do Estado e o poder do crime organizado. Já foi falado sobre um racha no próprio comando de duas frentes. Indo um pouco mais além, como você vê o equilíbrio no próprio interior do PCC?
Adalton Marques – Em São Paulo, ao menos nos últimos 40 anos, as relações entre o “crime” e as forças de segurança do Estado não se resumiram a jogos de fuga e apreensão, de esconderijo e investigação. Tais relações também foram marcadas por acordos entre as partes, ainda que relativamente frágeis. Milhares de pequenos ou grandes “acertos” foram decisivos na definição sobre quais negócios criminosos ganhariam terreno e quais conheceriam o seu fim, sobre quem ganharia maiores margens no dia-a-dia e quem conheceria a prisão ou seria morto. Sabe-se bem que isso não é um grande segredo. As histórias sobre os pequenos e grandes “bandidos” que tiveram de “pagar um pau pros homi” ou que se tornaram a “galinha dos ovos de ouro de polícia” estão presentes nos memoriais de sobrevivência das periferias de São Paulo. Os trabalhos dos pesquisadores Daniel Hirata e Vera Telles oferecem as melhores formalizações conceituais dessa história, exatamente por combinarem pesquisa etnográfica com uma mobilização produtiva da discussão foucaultiana sobre gestão diferencial dos ilegalismos.
Já na prisão, milhares de pequenas ou grandes “injustiças” foram cometidas entre os próprios presos. Fomentando este processo, as vendas de cela e de “jega” (cama), as extorsões a familiares, os estupros contra presos e familiares, as opressões aos “presos humildes”, além da expansão do crack nos anos 1990 – a mais eficiente máquina de produzir “vermes” e “acertos de conta”, por conseguinte. Na outra ponta, milhares de pequenas e grandes “injustiças” cometidas pelo Estado contra os presos. Não contra este ou aquele preso, mas contra o signo “preso”. Pois do ponto de vista estatal, o preso é antes de tudo a falta (privação, carência) de legalidade-civilidade e, ao mesmo tempo, o excesso de desejo. O afã estatal pela “correção” do preso, ou pela sua “reeducação”, como se diz hoje, sempre foi o disparador de “injustiças” infinitesimais que deram cores (predominantemente de sangue) e cheiros (predominantemente de morte) ao plano penitenciário ideal no Brasil. A história do excesso dos castigos, das constantes suplementações da pena, é por demais conhecida.
Contra essa dupla fonte de “injustiças” da prisão surgiu o Primeiro Comando da Capital (PCC), transformando em eixos políticos alguns enunciados que animavam as resistências nas prisões desde pelo menos os anos 1970. O primeiro eixo, “paz entre os ladrões”, contra as opressões perpetradas entre os próprios presos. O segundo, “quebrar cadeia” (almejar constantemente a “liberdade”) e “bater de frente com a polícia” (marcar “oposição” às forças estatais), contra as opressões perpetradas pelo Estado – com destaque para o Massacre do Carandiru e para o “inferno” conhecido por Anexo da Casa de Custódia de Taubaté. Esses dois eixos vão remarcar as alianças que constituem o “crime” (inclusive com o surgimento de “comandos” contra o PCC), elevar o confronto com as forças estatais a um patamar inédito e introduzir novas disposições na reflexão sobre o “certo” e o “errado” no “crime”. Este último efeito, uma tensão política acerca de “igualdade” e de “justiça” voltada sobre a própria efetuação deste coletivo, magistralmente etnografado pela pesquisadora Karina Biondi, é a chave para se compreender como “irmãos” (membros “batizados” do PCC) e “parceiros que correm lado a lado” permanecem na mesma “caminhada”, na mesma “sintonia”, ou ainda, para usar a expressão política que essa autora fixou como título de seu livro, “juntos e misturados”.
Com esse quadro mínimo de considerações, é preciso dizer que equilíbrio não é uma condição primitiva das relações entre o “crime” e as forças de segurança do Estado; nem mesmo uma condição primitiva de cada uma dessas entidades tomadas separadamente. Portanto, não se trata de uma disposição de coisas que se pode reencontrar, como se fosse possível remontar cada ponto de apoio que tivesse sido derrubado. Na verdade, os equilíbrios constituídos nesse campo de batalhas são efeitos precários de múltiplos conflitos. É para eles que devemos voltar os nossos olhos, atentos para perceber o ponto em que um aumento quantitativo já se tornou uma diferenciação qualitativa – como aquelas que se processaram com a criação da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), com o surgimento do PCC, com a sua revisão de princípios após a expulsão de Geleião e Cézinha, com a legalização do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), com a Megarrebelião de 2001, com os Ataques de 2006.

Carta Maior - Em seu trabalho de mestrado, notamos, sobretudo, suas considerações sobre as posturas do Estado desde 1995. Com que razão o Estado age no enfrentamento da situação que vemos hoje na periferia?
Adalton Marques – Imagino que você esteja se referindo às considerações que fiz sobre a intensificação sem precedentes da política de encarceramento no Estado de São Paulo, iniciada com o governo Mário Covas, e sobre a criação do RDD, tecnologia punitiva que não manifesta em sua carta de princípios a intenção de transformar os indivíduos a ela submetidos  (portanto, talvez não devamos mais chamá-la de prisão; seu próprio nome explicita uma diferenciação na disciplina penitenciária). Essas considerações fazem parte de uma reflexão em andamento sobre a prisão, sobre o que faz a prisão hoje. Ainda parcial, ela tem pouco a dizer sobre o que se passa nas periferias de São Paulo. Mas ela tenta desdobrar um poderoso diagnóstico realizado por Gilles Deleuze sobre as sociedades de controle, que pode nos ajudar a afinar a crítica contra o estado de coisas intoleráveis que estamos vivendo. Diz-nos este filósofo que a “explosão dos guetos e favelas” é um dos problemas políticos a serem enfrentados por essas sociedades tendo em vista uma disposição que permanece intacta apesar das mutações do capitalismo: “a extrema miséria de três quartos da humanidade”. Lidar com essas multidões, “pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento”, é uma das tarefas atuais do Estado. Como se sabe, é uma questão de segurança.
Mas esta questão de segurança tomou contornos bastante distintos em nossas paragens, ao sul da Linha do Equador, em relação àqueles apontados por Loïc Wacquant para as “sociedades avançadas do Ocidente capitalista”. Nestas, a implementação neoliberal acirrou esta questão com políticas econômicas que implicaram em desindustrialização, perdas substanciais nos salários e expansão do mercado informal, além da  dissolução da rede de proteção social. Desde então, o remédio para o abandono da função de bem-estar social vem sendo a priorização da gestão penal dos pobres. O Estado penal em detrimento do Estado social, cujo efeito durável é a emergência de uma nova forma de produção de marginalidade urbana. Quanto ao que se passa no Brasil, esse quadro nos conviria como chave explicativa se tivéssemos vivido qualquer coisa parecida com um estado de bem-estar social; se não estivéssemos ainda tentando liquidar a distância temporal que nos separa do Primeiro Mundo (ainda que os países que o compõem sejam atravessados, cada vez com mais intensidade,  por devires-Brasil, como bem demonstra Giuseppe Cocco). Com isso, obviamente, não quero dizer que nas grandes cidades brasileiras não esteja em curso um violento processo de criminalização da pobreza. Mas que a nossa diferença histórica, digamos assim, nos coloca sempre na iminência de uma desgraça singular. Contra os pobres que não entrarem no mercado informal, que não aplacarem suas frustrações e aguardarem a assistência (bolsa-qualquer coisa) ou que não investirem todas as suas forças em suas próprias qualificações profissionais (mas, de antemão se sabe: é um caminho aberto para poucos), ou seja, aqueles que “entrarem para o crime”, nossa política de segurança reserva duas medidas: alternar os dias da vida entre a prisão e as as ruas (se não for tido como um grande “bandido”) ou ser eliminado pela polícia, por grupos de extermínio ou por outros “bandidos”. O pesquisador Antonio Rafael Barbosa sintetizou essas vias em um belo artigo no qual também fala de linhas de vida que se abrem para o jovem de favela.
Por aqui, a segurança ao mercado financeiro garantida pelo neoliberalismo não precisou fundar, como contrapartida política, uma nova técnica policial contra os pauperizados urbanos, para manter a segurança da cidade. Longe e diferente da técnica policial “parar e revistar”, talvez a que melhor ilustre as políticas de “tolerância zero” nova-iorquinas, nosso “atira primeiro, pergunta depois” sempre foi a marca da nossa polícia, antes e após o nosso neoliberalismo tupiniquim, e sempre teve como alvo privilegiado “pretos”, “pobres”, “periféricos” (3 p’s: essa é a sigla da nossa política de extermínio).
A conjuntura paulista intensifica ainda mais essa desgraça. O governo PSDBista, repetindo o erro que se especializou em cometer, finge não existir o “comando” que “bate de frente com a polícia” através de uma guerrilha descontínua (graças à marca do “crime” paulista, que preza pela discrição). Mas esse fingimento, todos sabem, é um cálculo eleitoral. O contra-ataque da segurança pública paulista é enérgico e tem alvo. Impele as forças policiais (que na verdade, em sua maioria, são preenchidas pela mesma população precarizada das periferias e subúrbios) para as “quebradas”, e a palavra de ordem é “dar o troco”.

Carta MaiorDe que forma você enxerga os acontecimentos de extermínio na periferia desde maio deste ano (média de 11 mortos por dia)?
Adalton Marques – Tais acontecimentos são lamentáveis. Na verdade, e mais precisamente, intoleráveis. Estão claramente ligados à “guerra” entre “ladrões” e polícia, bem como aos grupos de extermínio que aterrorizam as periferias, apesar do governo negar a existência de relação entre as dezenas de execuções que vêm se somando. Nesta conta somam-se criminosos, policiais e civis assassinados. Estes últimos, em esmagadora maioria, são “trabalhadores”, “pobres”, moradores de periferia, confundidos e/ou associados com “bandidos”, seja pelo modo como “gingam” (têm “estilo de maloqueiro”), pelas roupas que usam (têm “estilo PCC”), pela cor “preta” ou “parda” de suas peles (têm a “cor da criminalidade”), e claro, pelas “quebradas” em que transitam (andam por onde passa o “crime”). O pesquisador Gabriel Feltran já explicitou esses signos, chamando a atenção para a produção de uma visão geral sobre as “quebradas” e seus moradores, bem como para a identificação pública da imagem do criminoso, que autoriza a repressão policial a recair sobre aqueles que se parecem com essa figura.

Carta MaiorNa própria periferia há respostas diversas sobre os responsáveis pelos ataques e assassinatos. Esse tipo de conduta (extermínio, toques de recolher etc.) são características que podem denunciar o responsável?
Adalton Marques – Tem muitos acontecimentos em jogo e a periferia não emite uma resposta em uníssono. Pelos cantos que atravesso se fala sobre acontecimentos que envolvem “ladrões”, policiais em serviço e grupos de extermínio. Também se fala sobre acontecimentos forjados. É uma “guerra”, dizem.

Carta MaiorO que você acha da cobertura midiática sobre o assunto? Ela toca em informações cruciais ou peca por não o fazer?
Adalton Marques – A grande mídia paulista é majoritariamente PSDBista. Qualquer outro partido que fizesse administrações péssimas como essas que temos há quase 20 anos sofreria ataques ferrenhos dos grandes jornais, das grandes revistas e das grandes emissoras. Certamente perderia a reeleição no pleito seguinte.
Para a questão da segurança pública não poderia ser diferente. A grande mídia corrobora os passos do governo. Não diverge. Não cobre a divergência que parte das periferias. A grande mídia é submissa ao governo. (Devo marcar exceção à cobertura dos jornalistas André Caramante e Bruno Paes Manso, apesar de compreender diferentemente – política e conceitualmente – alguns acontecimentos apresentados em suas matérias).
 

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