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quarta-feira, 26 de março de 2014

O fracasso da cultura da punição violenta. Mas insistimos com ela ...


Que esperança de futuro estamos dando para milhões das nossas crianças? A prisão aos 16, 15, 14 anos? 
A nossa sociedade, a nossa civilização - ocidental -  tem uma obsessão pela punição. Tudo o que é considerado erro, desvio de conduta, violação das normas legais, da ética socialmente aceita, etc,  merece ser punido, penalizado. De preferência com o aprisionamento, a reclusão, a exclusão dos (as) que violam de alguma maneira tair normas em relação ao meio social ao qual pertencem. A lógica da punição, da privação da liberdade é a tônica. Em outros momentos, essa mesma lógica descambou para a agressão física pura e simples. Do espancamento em público ao assassinato de quem descumpria as regras. Aqui e ali, essa lógica da exclusão pela eliminação da vida, permanece. Em alguns países consdierados muito desenvolvidos, como em várias unidades da federação conhecida como Estados Unidos da América, matar  quem viola algumas leis é regra, notadamente quando tais violações atingem outras vidas. Por lá, em alguns estados, crianças são punidas como adultos em função dos erros que cometem. O resultado disso tudo? Há mais de dois milhões de presos atualmente nos EUA, a maior taxa do mundo. São assassinos, traficantes, ladrões, estupradores, etc. Dois milhões! Alguém pode dizer que o fato de lá existirem punições severas e leis ágeis impede que o número de crimes seja menor do que é. Mas ninguém se pergunta realmente sobre as causas de tamanha criminalidade.
Não sou nenhum defensor radical contra a punição em alguns dos termos acima apresentados. Não sou daqueles ultra românticos que acham que tudo pode ser resolvido com boa conversa e distribuição de compreensão para qualquer circunstância de violação das regras, leis e códigos de conduta socialmente construídos. Ao mesmo tempo, sou daqueles que entendem que muitas das leis e regras sociais dizem muito mais respeito aos interesses das classes dominantes e são geralmente recobertos, ou encobertos, por discutíveis interesses ideológicos voltados para manter a sua dominação sobre a grande maioria da população. Poderia ficar horas discorrendo sobre isso, mas fica para outra oportunidade.
Volto ao ponto central deste texto, a cultura da punição, do uso da violência, da exclusão, do banimento, da dor, para punir quem erra. Aqui está minha reflexão central. Vamos a ela!
A cultura ocidental é cristã. O cristianismo é hebraico/judeu nas suas raízes. A cultura judaica é punitiva na sua essência e nós herdamos de modo praticamente absoluto essa visão de que os erros precisam ser castigados. Estou ficando maluco? De modo algum! Nossa cultura, ou parte significativa dela, nossa forma de encarar o erro, o equívoco e os mecanismos utilizados há milênios para "corrigir" quem erra está umbilicalmente ligado à tradição judaica da culpa. E a raiz desse pensamento está no Velho Testamento, escrita com todas as palavras em "Gênese", ou seja, no nascimento da humanidade. Pela tradição judaica, a humanidade carrega em si o pecado, o erro, a tendência a violar as ordens divinas. E por isso merece ser punida. Muito punida. Em alguns momentos, até à extinção.
Se alguém achar que estou exagerando, é só olhar para os mitos fundadores do judaísmo: Adão e Eva (punidos com a expulsão do paraíso após Eva ter desvirtuado o bom Adão por influência da serpente malévola). Caim, após matar seu irmão Abel, foi punido com o exílio e a marca da traição em sua testa. Mais à frente, Deus - essa manifestação hebraica de intensa intolerância com o erro humano - decidiu eliminar toda a humanidade através do dilúvio - ainda que tenha se "arrependido" (palavras bíblicas, não minhas) e resolveu no último momento salvar Noé e sua família para repovoarem o mundo. A cultura da punição está absolutamente inserida e gravada em pedra (segundo a bíblia), nos Dez Mandamentos. Ao longo da sua história, conforme as narrações bíblicas, Deus puniu a torto e a direito os povos que nele se recusavam a acreditar bem como os próprios hebreus que, vez em quando, tinham recaídas religiosas ao cultuarem outros "falsos" deuses.

                          Para a primeira desobediência, o castigo eterno. Não há espaço para a remissão fora da dor ...

                                O destino eterno para quem descumpre as leis divinas: punição eterna

A cultura da punição e do uso da violência espalhou-se de maneira quase apocalípitica posteriormente na Europa e arredores, já nos tempos cristãos, pelas mãos da Igreja Católica. Quero crer que todos (as) que estejam lendo este texto conhecem minimaente o pavor que se instalou durante a Idade Média entre a massa camponesa e entre parte significativa da nobreza feudal, diante da "ira de Deus" contra os pecados humanos. Tudo era pecado. Tudo era punível. Tudo era objetivo de medo. A cultura do medo, do "isso é errado aos olhos de Deus" era alimentada com o pavor pelas  punições, a mais terrível delas, claro, a temerária temporada infinita no inferno, com castigos indizíveis a serem sofridos no reino de Satanás. A cultura do medo da ira divina, do medo da prisão, tortura e assassinato, atingiu níveis paranóicos durante a "santa" inquisição. Centenas de milhares foram mortos (as) pelas mãos inquisidoras de uma igreja que se dizia represente do Deus que tudo vê, tudo ouve, tudo sabe. Logo, herdeiros que somos desta tradição multi milenar, somos criados desde cedo para acreditar que a qualquer momento estamos sujeitos à punição divina - e a partir do século XV, XVI, sujeitos à punição estatal -  Individual e coletivamente falando. E esse medo permanece, em graus variados, nas nossas mentes e ações cotidianas. Se hoje não há punições religiosas mensuráveis em termos legais, ela ainda atemoriza milhões psicologicamente. Do menino que se masturba sozinho em algum lugar, à mulher que se sente uma pecadora contumaz por ter mais do que um (a) parceiro (a) sexual. E se hoje as nossas punições efetivas são pelas mãos do Estado, ainda assim a cultura do medo e da punição divina se faz intensamente presente. E para este medo, padres, pastores e outros menos cotados se fazem presentes como intermediários entre a humanidade e o divino.
                       A "recuperação" pela punição. Como recuperar alguém que vive nesse tipo de inferno?

Geralmente somos bastante incapazes de buscar corrigir os erros alheios, notadamente aqueles considerados erros - ou crimes - perante as leis, à justiça, fora da esfera da punição, isolamento, encarceramento ou morte. Sempre que a sociedade é assolada por determinados fenômenos recorrentes de violação das leis, da ordem ou da vida, a única solução que costumamos apontar é a punição. Geralmente clamamos por mais leis, penas maiores, mais duras, mais castradoras. Basta ver a histeria coletiva que tomou conta do noticiário e das discussões mais recentes sobre a questão da redução da maioridade penal para que a pessoa acima dos 16 anos vá para cadeia, nos termos da lei. Punir! Punir sempre e cada vez mais é a tônica do nosso debate e a sociedade geralmente se divide entre os que são a favor ou contra o aumento de penas, leis, etc. O enorme peso da herança cultural da castração divina aparece com muita força nesses momentos. Punir, punir e punir! Eis a solução!
 E como sempre aconteceu ao longo da trajetória humana, tudo continua geralmente como antes. Crimes continuam a ser cometidos, em escalas variáveis, mas continuam. E pior do que continuarem a existir, multiplicam-se os tipos de criminalidade.  Estupros, assassinatos, roubos, furtos, tráfico, corrupção, beber e dirigir...e por aí vai! Somos incapazes de perceber que simplesmente retirar uma pessoa do convívio social e jogá-la em uma masmorra - pois nossas cadeias são masmorras modernas e de modernas só têm mesmo o tempo no qual existem - além de não recuperar ninguém, geralmente, torna quem nelas passa algum tempo mais violenta ou corrompida do que era. Nosso sistema penal/punitivo acentua a violência. Nossos aparatos policiais são violentos e quanto mais o são, mais violência deles alguns segmentos sociais assustados com a escalada da criminalidade exigem.
Somos incapazes de debater às claras e racionalmente as causas da violência. Somos incompetentes para perceber que a violência sempre se estabeleceu de modo muito intenso em sociedades desiguais, nas quais uma minúscula parcela se apropria da maior parte da riqueza e relega à maior parte migalhas a serem disputadas a tapa - ou pelo roubo, pelo assassinato, pelo tráfico e outros desdobramentos violentos e artimanhas - por uma gigantesca massa de desvalidos e que parte dessa aglomeração humana de pobres e miseráveis vai descambar para o confronto aberto com as leis e com as propriedades e vidas alheias. Somos incapazes de compreender a história e com ela aprender algo efetivo, para além de nomes de figuras importantes e acontecimentos marcantes (geralmente oriundos da própria violência. Afinal, como nos ensinou o velho Marx, a violência é a parteira da História). Somos incapazes de nos livrar dos cabrestos do pensamento das elites concentradoras de renda que usam a violência que normalmente brota das camadas populares através de crimes contra a ordem e a propriedade por elas defendidas, para justificar a necessidade de impor ao conjunto social mais leis, mais punições. E cada vez mais cedo. Transferimos para nós mesmos a culpa e clamamos para que o ciclo punitivo se intensifique, se torne mais repressor. É um ciclo sem fim! 
 
A quem de fato estamos salvando? O conjunto da sociedade? Tenho imensas dúvidas!
Ao invés de interpretarmos e criarmos soluções efetivas para as causas da violência, caímos no conto de que tudo não passa de uma degeneração moral e que o degenerado moral merece a severidade, o rigor da lei. Da cadeia à morte! E ao cairmos nesse verdadeiro conto do vigário que as elites nos impõem, somos, nós próprios, coveiros do nosso futuro como sociedade. Se é verdade que avançamos um pouco na diminuição da miséria absoluta no Brasil nos últimos anos, é verdade também que ela continua muito grande pois a concentração de renda permanece elevadíssima. Poucos com muito e muitos com muito pouco, alimenta e retroalimenta a violência. Tentar resolver uma coisa sem solucionar a outra é impossível.
               O avanço relativo na renda o povo não esconde o óbvio: a concentração de renda permanece gigantesca

Diminuam a maioridade penal para 16 anos. Em breve, estaremos debatendo a diminuição para 15, 14, 13. Isso é um poço sem fundo. Ao invés de desenvolvermos um sistema de efetiva inclusão social, aprofundamos a cultura da exclusão. E seguimos em frente acreditando que a força da lei nos salvará! Ou, quem sabe, com um pouco de sorte, Deus nos protegerá dos ímpios, dos infiéis e degenerados sociais. Só não contem comigo para disseminar essa fantasia! 


por Altair Freitas em seu blog "Palavras ao Tempo"

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